sábado, 19 de janeiro de 2013

Ainda se espera simetria entre crime e pena


Algumas sociologias ou movimentos sociais são imperceptíveis, ou tácitos. É como se um grande acordo fosse feito na sociedade e aplicado de forma a passar a ser assim de agora em diante. Observadores atentos percebem, invariavelmente depois de algum período de surpresa. Já a sociedade continua apenas a “sofrer” os efeitos sem desenvolver um olhar crítico explicativo para a mudança.
O direito processual penal como um sistema jurídico concebido para conflitos graves, envolvendo crimes, que a sociedade não quer ver irresolvidos evolui. Sempre evoluiu, nunca involuiu. Afora momentos de guerra ou ditaduras em que se pôde verificar certa involução episódica, o sistema acabou até se beneficiando desses períodos nefastos para exatamente sedimentar saldos evolutivos e progressistas. Isso quer dizer que a sistemática de penas impostas a crimes, observada uma imaginária linha do tempo em grande escala, nunca foi regressional, sempre melhorou e garantiu melhores condições a réus condenados.
Não se aborda, com isso, o sistema “prisional” em si, o penitenciário, ligado ao cumprimento da pena. Este é sabidamente falido e, este sim, sofreu nítida involução com o advento do crime organizado. Ficar um ano preso equivale a uma pós-graduação no crime com todas as letras e eficácias, e isso não tem nada de fantasioso ou metafórico.
Pode-se dizer que operadores do Direito estão um tanto quanto atônitos com, a um lado, certa escalada de crimes não fisicamente violentos e ao mesmo tempo descobertos por uma imprensa efetivamente livre, envolvendo na linha de frente as chamadas “autoridades” do Estado e pessoas “famosas”, e por outro lado esses mesmos infratores continuando livres, o que gera um clamor social.
Ainda se “espera”, pouco mudou, que haja uma simetria entre crime e pena, imaginando-se por pena a cadeia. Mesmo com todos os movimentos sociais liberalizantes e desprisionais — menos encarceramento — ocorridos na evolução do estudo da pena, ainda se propugna ou se reclama pela efetivação dela. Pena será, nessa ótica psicossocial, um padecimento que se quererá ver em relação ao agente criminoso, principalmente quando ele for uma “autoridade” do Estado, à qual terá certa preferência da mídia pela exposição.
O que se aborda por sistema processual penal aqui é a teleologia — modelo de pena — de o que ele reserva para o agente criminoso. Sempre se esperou, popularmente, deste sistema a cadeia, o encarceramento. Para agentes públicos, as “autoridades”, com uma imprensa livre, a demanda, ou mesmo furor pelo encarceramento foi aumentado. Ocorre que com a onda liberalizante, menos encarcerativa havida no sistema processual penal, todos indistintamente se beneficiaram. Isso obedece a uma assimetria: quando mais infamante for o crime, por exemplo, apropriação filmada de dinheiros legislativos em cuecas e calcinhas, ainda que sem violência física, a demanda por punição se mostra mais severa. O caso é que, invariavelmente, essas situações ficaram sem a célebre punição popular esperada, a cadeia; aí sua assimetria. Não adiantou o cenário ser infamante, o que deu o tônus da gravidade foi a presença ou ausência da violência física.
Neste compasso parece que o sistema processual penal descobriu "uma nova modalidade de pena: a pena-problema". O problema é algo que pode ser suave ou gravíssimo. Um câncer terminal é um problema gravíssimo. Se o sistema processual penal tiver o poder de criar um problema grave para o réu sabidamente culpado, por exemplo, pegado em flagrante, ou para o já condenado, haverá, talvez perfeitamente, um novo modelo legítimo de vingança social, punição, padecimento que poderá perfeitamente equivaler à pena de encarceramento: esta pena-problema.
Miguel Reale, quase poético (O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica) ensinava que pena de morte “não é pena” porque o sujeito morre, não fica vivo para sofrer a pena. A pena de encarceramento talvez seja, para efeito de impactação social, concentradamente um “instante” vivido: aquele ao qual o agente é encarcerado. Depois isso se “estabiliza”, as pessoas se acostumam. Todo o seu círculo social fica sabendo e “resolve” a situação. "Fulano está preso, é, que coisa", sentencia a sociedade, e ponto final, a vida continua.
Mas se um problema, grave, de acusação penal é criado pelo sistema processual penal e o sujeito é mantido solto para viver e ter que tanto digerir uma expectativa de solução, quanto explicar em cada esquina o que está passando, ou, se não explicar, ver-se entre olhares acusativos e discriminatórios da sociedade, podendo inclusive perder amigos, parentes, socialidade etc., pode-se estar diante de um problema a ser vivido, experimentado, de grande monta. Esta é a pena-problema. Não se diz que o "tempo de prisão" seja algo "leve". Óbvio que não. Mas prisões longas já se sabem que não se sustentam, salvo para crimes com violência. Colarinho branco não irá à prisão longa no Brasil. Há que se aceitar esse caldo cultural produzido pelas "autoridades" oficiais em cínica mancomunação com a impunidade. Fora disso há sonho.
Lalau, o seriíssimo juiz do trabalho, talvez seja um exemplo assim. Não precisou ir para a cadeia para ter sua vida arruinada, ganhar um apelido público de ladrão e ter sua até então inatacável honra e bom nome jogados à lama. Lalau foi punido severamente? Será que somente a cadeia fá-lo-ia sofrer? Parece que foi e sofre até hoje, há se admitir responsavelmente. Collor pode ter sido outro exemplo. A desmoralização e inelegibilidade por 8 anos impostas representaram uma pena gravíssima para aquela figura vaidosa, arrogante e empafiosa que passou a andar com o Dicionário de Política de Norberto Bobbio embaixo do braço para se vender como intelectual e que conseguiu chegar à Presidência da República? Parece que não há dúvida. Se, após exauridos esses momentos,  ele volta como senador não há qualquer resquício de problema. Não há penas perpétuas. Collor padeceu o inferno em vida por tempo certo, perdeu a mulher, estima-se que tenha experimentado o degredo e a zombaria sociais, inclusive na vizinhança de sua casa, cidade, estado e até país, e, passada essa experiência imposta, pôde voltar normalmente.
Parece que advogados que atuam no crime aprenderam uma lição: apresentam o cliente ao Judiciário e sabem que ele ficará preso alguns meses. Isso é combinado e acertado com o cliente. Esses meses são o momento crítico da pena-problema. Há um “trato” feito. O réu não foge; se curva ao sistema processual penal; mostra que não é arrogante; se coloca num plano inferior ao juiz mesmo que seja lindo e bilionário (isso é o que parece mais contar — autoridades adoram a subserviência, mesmo que safada, mentirosa e cínica); e passados alguns meses é solto para nunca mais voltar ao encarceramento. Estão aí as novas regras do jogo.
A pena-problema para "autoridades" e pessoas públicas não é fácil de ser enfrentada. Pode envolver este encarceramento inicial. Paralelamente há um processo penal público ao qual o Judiciário e a sociedade se sentirão bastante vingados se a imprensa expuser o acusado às entranhas do ridículo. Há a questão de honorários advocatícios que podem funcionar como um agravante financeiro imenso, o que é bom neste diapasão da vingança social: sangrar financeiramente o criminoso. Não é raro acusados desfazerem-se de imóveis, fazendas, para pagar honorários. A perda pode ser imensa. Outro fator cruciante é o tempo. Como a Justiça é dolosamente lenta, o sujeito padecerá por longos anos, considere-se, por baixo, uma década, pendurado à pena-problema, o que, reconheça-se não é pouco.
A pena-problema não aparece aí como uma “proposta” cínica de punição meia boca. Ela já existe. Quando Carlinhos Cachoeira se dirige feito boi manso ao cárcere, ele faz a alegria do Judiciário que comemora com uma festinha a portas fechadas na vara criminal que determinou a prisão: nós vencemos, nossa autoridade é mais forte que o dinheiro dele, todos riem e comemoram. Faz também a alegria da sociedade que se sente vingada e com uma visão de que até o Cachoeira, marido da lindona que desperta ódio nas jornalistas (todas), é “prendível”. Faz a festa da imprensa que consegue faturar com audiência e anunciantes. A pena-problema agrada a todos, não esquece de ninguém. Aí, passados 6 meses é claro que haverá alguém a soltar o pobre-coitado com a certeza implícita de que, jamais ele retornará à prisão. Este é o trato social.
O sujeito continuará a gastar com advogados, a ser “alguma” manchete na imprensa. Mas, por outro lado, viverá melhor porque “afinal” uma “autoridade” superior o soltou. Isso é uma meia absolvição. Esta semana foi a vez do contador de Cachoeira, se curvar, se entregar, se humilhar e se oferecer à imprensa para sua expiação. Já se sabe, é o trato. Seis meses preso e depois, rua. A pena-problema não cessará, continuará a arder para ele, por anos. É o preço.
A pena-problema é uma realidade. Principalmente para um sistema processual penal bastante discriminatório e preconceituoso como o brasileiro que se blinda numa tal Constituição Cidadã, aliado a um sistema penitenciário esquizofrênico e impotente a falanges e organizações criminosas (secretários de assuntos penitenciários perdem o emprego, não podem ter distúrbios em suas pastas, daí cedem se pressionados; essa mecânica já foi desmascarada). Faz sentido pegar alguém que não é um assaltante de banco, um estuprador, um assassino (rotineiro!), um traficante e impor a pena-problema? Acaba fazendo, ela é o que há no sistema. Ela pode ser um tormento gravíssimo a clivar personalidades antes inatingíveis, blindadas pela arrogância, empáfia e poder do dinheiro ou outro qualquer. Aí pode estar um mote educativo penal até interessante. Heterodoxo, mas interessante.
A pena-problema já está em uso no Brasil. Ela aparece, socialmente, não como uma elucubração genial de um pensador jurídico, mas como um tumor oriundo de um sistema paquidermicamente doente e sem cura. Mas consegue se regenerar e se repaginar. É como se usasse uma roupa de carnaval durante todo o ano para mostrar algum sintoma de alegria ou diferença. A pena-problema comportará graus, de leve a gravíssimo, conforme também a gravidade do crime do agente.
Talvez a pena-problema seja uma visão antropológica carcomida de um fenômeno cultural que veio para ficar. Suavemente, sob outros nomes sérios e formalistas como “pena alternativa”, “movimento anti-encarcerativo” etc. Mas ela é o pus de um sistema impagável, recheado de impunidade quando se falam em "autoridades" e pessoas socialmente poderosas. Só que com o advento da imprensa livre, que hipertrofia a pena-problema tornando-a imunda e dolorosa, conseguiu deixar de ser esse pus e talvez tenha se transformar apenas em uma água turva. Não potável, mas uma que serve a diversas coisas, inclusive a apagar incêndios sociais.
Jean Menezes de Aguiar é advogado, professor de Processo Civil e Direito Econômico da Pós-Graduação da FGV management, da pós-graduação do Inpg, da Uninove, da ESA/OAB-SP. É também diretor geral do portal www.netjuridica.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2013

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog