quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Álcool e direção: tomar consciência ou um drinque?


A vida acadêmica impõe sacrifícios, mas traz compensações que se alinham entre aquelas coisas que não têm preço, como diz a propaganda de um cartão de crédito. Escrevo esta coluna na véspera de sua veiculação, madrugada entrada desta quarta-feira (5/12). Cansado mas feliz pelo último encontro com os alunos de um curso de pós-graduação sobre escrita criativa, uma aula com comes e bebes, e a avaliação do aprendizado. Esse curso deixa a sensação do trabalho bem feito.

Na saída da sala, recebo a informação de que uma aluna a quem orientei teve o trabalho de conclusão de curso (TCC) premiado com nota 10 pela banca. Pâmela Cristovão Reis apresentara um sólido livro reportagem com histórias e bastidores do Tribunal do Júri — Justiça sem toga, um retrato do Tribunal do Júri no Fórum Criminal da Barra Funda.
Nesses momentos em que se constata que as sementes começam a dar frutos, lembro de uma entrevista feita há uns tantos anos com o brilhante jurista Modesto Carvalhosa. E o que mais marcou naquela conversa foi sua peculiar visão sobre a docência, em incentivar o aprendizado, retrucar com suavidade mesmo quando a questão colocada seja ilógica: “O senhor tem razão”, respondia Carvalhosa aos alunos, citando o “vous avez raison” que herdara de um mestre num curso na Universidade de Estrasburgo, na França. Entrevistar o professor Carvalhosa influenciou minha postura de educador. Estou certo de que seus alunos, hoje atuando em bancas de advocacia, promotorias, magistratura, devem tê-lo como um marco em suas vidas.
Há duas semanas participei como arguidor de uma banca de defesa de TCC de um grupo de quatro alunos. Tratava-se de um filme (ou documentário de vídeo) com o título de Direção Incerta, uma discussão sobre embriaguez no trânsito. Um título brando para um tema tão devastador. Poderia em nossa época de sensacionalismo e exagero ser intitulado de Direção assassina. Esse trabalho, de alto nível técnico, tratando-se de alunos (roteiro, direção de fotografia, montagem, pausas), foi orientado por um gabaritado docente, Dr. Pedro Ortiz, professor da Cásper Líbero e também diretor da TV USP. Os alunos fizeram jus à nota máxima. E o trabalho pode ser conferido no YouTube, basta escrever o título, Direção Incerta”. Recomendo: 35 minutos de reflexões necessárias. E é sobre esse tema que me alongarei hoje.
Sobre o vídeo, visualmente é um trabalho preocupado com a estética dos modernos documentários: as imagens ultraaceleradas das ruas de São Paulo criam contraponto com o depoimento de familiares das vítimas, as falas de policiais em blitz, especialistas em trânsito, médico, o conselheiro Dr. Maurício Januzzi da OAB. Reforço: em vídeo, cada segundo é composto por 24 frames, 24 imagens, 24 momentos de percepção. E Direção Incerta proporciona alta dosagem de percepção para um problema que ainda é tratado como acidente.
Os autores, Camila Lara, Felipe Elias, Julieta Mussi e Matias Lovro abordaram o tema calibrando bem o lado emocional, com profundo respeito aos entrevistados, com a abordagem técnica sobre o crime (não acidente) de dirigir sob efeito do álcool. Abordam ainda a precariedade da legislação e da aplicação da Lei Seca (que não é realmente cumprida, sob o pretexto de que é direito constitucional não produzir provas contra si mesmo) e a leviandade de quem “quer se divertir” e mata quem não tinha nada com isso.
Focaram o documentário em dois casos recentes ocorridos em São Paulo, o atropelamento, por um carrão descontrolado dirigido por uma motorista temerária, do administrador Vitor Gurman, 24 anos, que caminhava pela rua Natingui, na Vila Madalena, no dia 22 de julho de 2011; e o de Miriam Baltresca, 58 anos, e sua filha Bruna, de 28, na Marginal de Pinheiros, também atropeladas por um carro dirigido em alta velocidade por um condutor embriagado em frente ao Shopping Villa-Lobos, no dia 18 de setembro de 2011.
Rafael Baltresca perdera o pai um ano antes da fatalidade que lhe tirou mãe e irmã. Ele fizera com elas o pacto de, após a morte do chefe da família, manterem-se unidos. Ele inicia o filme com um depoimento forte, após um recorte de imagens de carros em alta velocidade: “Quando entrei no velório delas, dois caixões na mesma sala: o da minha irmã do lado esquerdo; o da minha mãe do lado direito. Minha irmã com 28 anos, minha mãe com 58. Esse foi um momento que eu nunca gostaria de ter vivido, nunca.” [Corta, tela preta]. Seguem-se trechos de diversos telejornais noticiando “acidentes” de trânsito.
O tio de Rafael, Manuel Fernandes, continua contando o pacto feito pela família desfalcada do pai. “Eles ficaram muito unidos, muito alegres. De repente, o Rafael foi comer uma pizza com a namorada, quando voltou, recebe um telefonema. Sua família não existia mais.”
O caso de Vitor Gurman é ainda mais estarrecedor. Um vídeo mostra o estudante na solenidade de formatura na ESPM, em 2010, um ano antes de sua morte. Líder, Vitor foi o orador da turma e fez referência à morte do colega Fabinho, que ao sair de uma festa perdeu o controle do carro e morreu. “A gente pensa que acidente acontece apenas com os outros. Devemos ser responsáveis para não perder o que temos de maior valor, que é nossa vida. Devemos tomar cuidado para não pagar tão caro como pagamos com a perda deste amigo. Não poderia deixar de dar esse recado”, disse premonitoriamente.
Há os depoimentos do tio de Vitor, o arquiteto Nilton Gurman (que viu a motorista que provocou a morte de Vitor deixando o carro estacionado, quando está proibida de dirigir, num evidente descumprimento da lei, pois está sem carteira de habilitação); do amigo Heitor Bonadio (um dos idealizadores do “Movimento Viva Vitão, não espere perder um amigo para mudar sua atitude no trânsito”); do Dr. Maurício Januzzi, autor do projeto de lei do “Movimento Não Foi Acidente (você vai tomar consciência ou mais um drink?)”, comentando sua proposta. Enfim, é um filme que merece ser visto.
Em todo o mundo, os acidentes de trânsito provocaram a morte de cerca de 1,3 milhão de pessoas em 2010, de acordo com relatório divulgado pelo Fórum Internacional de Transporte, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Outros 50 milhões ficaram feridos. O dado a refletir é que, segundo esse estudo, 90% dos acidentes com vítimas ocorreram em países emergentes, como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China. É fácil entender: com o aumento do número de ricos, novas Ferrari, Porsche, BMW, carrões potentes de diversas marcas, caem na mão de motoristas pouco experientes, muito deles com carteira de habilitação recente — como acontece na China. Poucos desenvolveram domínio sobre esses brinquedos, como se conclui de algumas recentes tragédias envolvendo condutores jovens a bordo de bólidos que podem chegar a 200 km/h em segundos.
Esses novos ricos também não ganharam o expertise de quem sabe que é preciso ter cautela ao ultrapassar um veículo de carga numa descida: um caminhoneiro transportando chapas de ferro, se tiver de frear seu veículo abruptamente, será esmagado pela carga, que não ficará inerte com a frenagem. O motorista com habilitação recente pode cometer qualquer barbaridade, sobretudo se à falta de intimidade com o carrão estiver com os reflexos alterados pela ingestão alcoólica.
A Companhia de Engenharia de Tráfego divulgou há pouco o balanço sobre mortes no trânsito na cidade de São Paulo em 2011. Ao todo, 1.365 pessoas morreram nas vias da cidade — 45,2% pedestres, 37,5% motociclistas, 17,3% motoristas: os pedestres não tinham airbag ou cintos de segurança, foram simplesmente arremessados ou estraçalhados, como Vitor Gurman, Miriam e Bruna Baltresca.
“Acidente é um ato involuntário. Acreditamos que quando alguém bebe ou dirige em alta velocidade não respeita os códigos de convivência social. Isso não é acidente, é crime e deve ser punido”, diz no filme Nilton Gurman. O médico Sérgio Dualibi, professor da Unifesp e pesquisador do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e outras Drogas, emenda: “O direito individual nunca pode suplantar o direito coletivo. E o direito coletivo é o direito que cada pessoa tem de não se envolver em um desastre porque outra pessoa bebeu.” Por isso ele é a favor da adoção da tolerância zero.
Com a palavra os juristas.
Carlos Costa é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.
Revista Consultor Jurídico, 5 de dezembro de 2012

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