segunda-feira, 13 de agosto de 2012

“Droga não é assunto do Direito Penal”

Cristhian Rizzi/ Gazeta do Povo /
Sebastian Scheerer, criminólogo alemão


Descriminalizar o uso de drogas e tratar o usuário na condição de doente – como pretende o anteprojeto do novo Código Penal brasileiro em trâmite no Congresso Nacional – é um tema polêmico, tanto no campo das políticas públicas, como sob o ponto de vista do Direito. Autoridade no assunto, o professor Sebastian Scheerer, diretor do Instituto de Pesquisa Social de Criminologia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, formado em Direito, Pedagogia e com doutorado em Sociologia, autor de diversos livros e artigos, entretanto, defende que a droga não é assunto do Direito Penal. O Direito Penal, defende ele, é para quem assassina, mata, fere a integridade do outro. Nesta entrevista à Gazeta do Povo, concedida durante o Encontro Teuto-brasileiro de Criminologia e Política Criminal, evento realizado em Foz do Iguaçu, promovido pela Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), no último mês, Scheerer comentou o assunto.

Como o Direito trata a questão das drogas de um modo geral?

Cristhian Rizzi/ Gazeta do Povo
Cristhian Rizzi/ Gazeta do Povo / Ampliar imagem
A lei antidrogas é basicamente a mesma no mundo inteiro. Há legislações nacionais que se referem a convenções internacionais assinadas por todos os países do mundo. Há um espaço de manobra, ou seja, brechas pequenas, que alguns países utilizam mais do que outros. Por exemplo, em relação aos coffee shops da Holanda. Há 15 anos, o International Narcotics Control Boards, órgão das Nações Unidas, cita em seu relatório anual que a Holanda precisa voltar à legalidade porque assinou a convenção, a última delas realizada em 1988.
Pode-se afirmar que a Europa tem uma visão mais liberal de combate às drogas se comparada com a de outros continentes?
Sim, em países da Europa, como também no Canadá e na Austrália, há uma tendência de ver a questão das drogas mais como problema social e menos como um problema do Direito Penal.
A proposta da redução de danos está sendo mais aceita?
A ideia da redução de danos não é recente, vem dos anos 80, 90, mas é algo muito lento, bem devagar. Nos países europeus há uma tendência de desdramatizar a questão, tendo em vista que, diferente do que pensávamos, as drogas não necessariamente levam à morte da pessoa. Tem pessoas que utilizam as drogas e não são diferentes das outras pessoas da sociedade. Elas têm família, trabalho e uma vida tão produtiva quanto a de outras pessoas. Então não precisa combater as drogas em um sentido eliminatório, como as convenções querem.
Na opinião do senhor, as convenções são muito rígidas?
Sim, porque nascem de várias experiências do século 19, da China, onde massas de pobres sofreram bastante com ópio. Mas não são questões que podem ser aplicadas no século 21. Enquanto jurista, sempre vi uma contradição entre os princípios da legalidade e os princípios do Direito Penal no qual se diz que só se pode penalizar um ato que faz mal a uma outra pessoa. Se você só consome uma droga que pode fazer mal para você mesmo, é como eu comer muita manteiga e aumentar o colesterol e ter um piripaque...Mas isso não é coisa para Direito Penal. É informação para a saúde. E drogas, ao final das contas, deveriam ser mais um assunto para conselheiros de saúde, de informação, da saúde pública, da saúde da família. O instrumento do Direito Penal é para quem assassina, mata, fere a integridade do outro. É preciso diminuir os sofrimentos, os danos e ajudar as pessoas e não colocar milhares de pessoas na prisão onde irão piorar a saúde, a moral e ter um sofrimento desnecessário. E um Estado que cria um sofrimento desnecessário não é um Estado a serviço dos seus cidadãos. É um Estado a serviço de si mesmo, onde classes superiores querem ser livrar de classes baixas. Isto não é como deve ser o Estado de Direito. O Estado de Direito é de cada cidadão.
No Brasil, muitos crimes são cometidos por pessoas sob o efeito de drogas. O contexto é outro, como o senhor vê isso, esse modelo europeu funcionaria aqui?
Não é que a droga instiga automaticamente a violência nas pessoas, muitas vezes os assassinos e integrantes do crime organizado não são necessariamente viciados, são homens de negócio, e o negócio deles tem uma particularidade, ou seja, o não acesso à justiça. Se você compra na Colômbia 10 quilos de cocaína e eles só te entregam cinco quilos, você não pode recorrer à justiça. Então para o mercado negro e o crime organizado que não têm acesso à justiça, só há um método, que é a vingança. Isso é uma questão de economia ilegal. Os norte-americanos pagam qualquer preço pela cocaína, uma droga barata na produção, mas com alto custo no consumo. Há muita concorrência entre grupos fornecedores e eles têm muitos conflitos resolvidos por meio da violência. Este tipo de situação já ocorreu na proibição do álcool, nos Estados Unidos. A máfia moderna nasceu porque o consumo e a importação de álcool foi proibido de um dia para outro. Mas os norte-americanos não pararam nem de importar, consumir ou distribuir. Tudo ficou no subterrâneo da vida ilegal e criou uma estrutura da máfia que mata. Isso acontece hoje no setor das drogas ilegais. Nos Estados Unidos, a tentativa de proibir o álcool fracassou. Eu acho que poderíamos salvar muitas vidas se alterássemos o mercado das drogas, da proibição para a regulação.
Então, a regulação seria uma saída para a América Latina?
Seria. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, junto com ex-presidentes do México e da Colômbia, avançou nesta ideia de repensar a política antidrogas para se livrar da violência e miséria. Lamento muito que depois desta iniciativa a sociedade civil não os apoiou.
Descriminalizar o uso das drogas é um avanço para a sociedade?
Descriminalizar o uso das drogas seria muito importante para o Estado de Direito, que seria um Estado de respeito à liberdade da pessoa que não contribuiria com a miséria. A produção e a distribuição precisam ser tiradas do mercado negro, ou por via do monopólio estatal ou por via da descriminalização. Eu estou estudando esses modelos e há muita gente pensando nisso. Só que ainda há muito preconceito.
Como é a experiência na Alemanha?
Nós temos aliviado bastante o problema, especialmente a demanda. Há uma distribuição via sistema de saúde pública. Os viciados recebem heroína, metadona. Já no mercado de maconha não há muito enfoque. De uma forma geral, não há muita repressão. Não é prioridade da polícia e da procuradoria reprimir. Há muito mais trabalhos sociais, centros de atendimento e esclarecimento sobre os riscos.
O consumo é alto?
O consumo não está aumentando. Até na Holanda onde há uma política mais liberal, o consumo está diminuindo.
A América Latina é um mercado produtor de drogas e isso gera violência para nós. Como o senhor vê isso?
Quem está sofrendo a violência é a América Latina que paga o preço, enquanto Estados Unidos e Europa estão consumindo. Por isso, a urgência de regulação aqui é mais visível. Quando vemos a guerra no México, com 50 mil mortos, em pouco mais de cinco anos, percebemos que há muito mais mortos na guerra das drogas do que pessoas que morrem do efeito das drogas. Então são efeitos secundários da falta de regulação. Quanto mais se exerce pressão no transporte para o México, os grupos migram e atingem países vizinhos ao México, em primeiro lugar, Honduras, onde o índice de homicídio aumentou para um patamar inimaginável. Guatemala e El Salvador também têm índices de homicídios incríveis. Então o aumento da repressão mata muita gente, começou a matar no México e agora está se espalhando por toda América Central.
Como seria uma regularização das drogas sob o ponto de vista do Estado?
Há monopólios de tabaco e álcool em muitos países. Em países como Suécia, Noruega, Finlândia, há monopólio de álcool e está funcionando – pelo menos não há guerras de gangues e milhares de mortos. As pessoas consomem, mas também há atendimento do sistema de saúde. Nunca vamos ter um sistema de consumo de drogas sem fatalidade. É preciso chegar aos problemas sérios, que às vezes são mentais e psicológicos. Esse problema da violência sem limites é artificial e pode ser evitado. É preciso ter uma visão mais clara, empírica e pragmática, tirar um pouco da ideologia. As pessoas têm o direito de fazer com as próprias vidas o que quiserem.

Gazeta do Povo. Justiça e Direito. 02/08/2012.

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