sexta-feira, 13 de julho de 2012

Criminalidade organizada e democracia, por Ferrajoli


* Título de doutor honoris causa em Tucumã. O professor Luigi Ferrajoli, no dia 27 de junho de 2012, ao receber o título de Doctor Honoris Causa, da Universidad Nacional de Tucuman (Argentina), cuidou em sua lectio doctoralisdo tema “criminalidade organizada e democracia”, que sintetizaremos em seguida, agregando algumas observações e anotações nossas.

Perguntas fundamentais (mapa da exposição). Começou formulando algumas perguntas fundamentais: 1ª) Como é a criminalidade organizada?; 2ª) Como vem funcionando o sistema penal para promover o seu controle?; e 3ª) Qual seria uma resposta racional contra a criminalidade organizada?
Organizações poderosas. Em relação à primeira indagação começou afirmando que o crime organizado é poderoso e, ademais, chega a atentar contra as raízes do Estado e da Democracia, ou seja, da possibilidade de uma salutar convivência social [esse, hoje, é o caso do México, por exemplo]. Ele afeta o funcionamento normal das nossas sociedades [a América Central assim como alguns territórios brasileiros vivem diariamente esse drama], em razão, sobretudo, das suas ligações com as autoridades públicas bem como com a criminalidade ordinária.
Três grupos. Delineou três grupos de crimes organizados: 1º) o vinculado com os poderes criminais privados (organizações criminosas privadas) [do tipo PCC, por exemplo], 2º) o decorrente dos poderes econômicos (criminalidade organizada das empresas — [empresas construtoras no Brasil, por exemplo], dos bancos etc.) e 3º) criminalidade organizada estatal (dos poderes públicos, dos políticos, dos juízes, policiais, fiscais etc.).
Características do crime organizado. O crime organizado tem hoje um peso financeiro e econômico sem precedentes, visto que possui caráter global (muitas vezes) e conta, ademais, com um poder destrutivo impressionante [destruição do ser humano, da natureza, das condições necessárias para a vivência democrática etc.]. Estamos neste momento experimentando a mundialização da economia e do mercado, sem a correspondente globalização da Justiça assim como dos direitos e garantias fundamentais. A fortaleza do crime organizado (terrorismo interno ou internacional, máfias, narcotraficantes, exploração ilícita dos jogos etc.) ao se deparar com a fraqueza do sistema jurídico de controle, sobretudo internacional, conduz a um cenário de regressão social onde vigora a “lei do mais forte” (a lei selvagem).
Primeiro grupo (exploração da miséria). Uma característica relevante do primeiro grupo de crime organizado (organizações criminosas privadas) consiste na exploração da miséria, ou seja, uso dos pequenos delinquentes [que, constituindo apenas “corpos” — braços, pernas e anatomia —, sem qualquer patrimônio cultural ou econômico ou social, são exploráveis, torturáveis, prisionáveis e extermináveis]. O crime organizado privado, especialmente no que diz respeito ao mercado das drogas ou das migrações, explora a mão de obra barata do miserável, do necessitado, otimizando seus lucros e benefícios [os que contam com maior espaço de liberdade em razão dos seus poderes exploram os que são mais vulneráveis — jovens desempregados, ex-presidiários etc. —, que ostentam menos espaço de liberdade — Ruggiero 2005].
Segundo grupo. O segundo grupo de crime organizado (decorrente dos poderes econômicos nacionais ou transnacionais) atua contra o meio ambiente, no mundo financeiro etc. Os grupos internacionais são claramente favorecidos pelo “vazio de direito público” no plano global, onde então esses poderes se sentem “desregulamentados” [sobretudo sob o império do neoliberalismo], havendo inversão da equação Estado/mercado, ou seja, o mercado fala mais forte que o próprio Estado, as empresas competem com este último, daí decorrendo a exploração da miséria em dimensão globalizada, da saúde pública etc. Sublinhe-se que esse vazio de direito público, no caso do Brasil, é mais preocupante ainda, visto que até hoje não temos, na lei, o conceito de crime organizado (consoante reconheceu o STF no HC 96.007-SP).
Terceiro grupo. O crime organizado dos poderes públicos desviados é o mais infame de todos, porque envolvem crimes contra a humanidade, torturas, desaparecimentos forçados, sequestros, guerra e, sobretudo, corrupção. A mais séria ameaça contra a democracia é a emanada desses grupos organizados, que sabem fazer amplo uso da mimetização dos capitais ilícitos, ou seja, sabem, tanto quanto os poderosos econômicos, mesclar dinheiro lícito com dinheiro ilícito, dando aparência de legalidade para todo o capital. A corrupção contraria todos os fundamentos da democracia (transparência, legalidade, moralidade etc.). Afeta de modo grave a esfera pública assim como os princípios democráticos. O bem jurídico que está jogo, quando se trata de crime organizado que envolve o poder público, é a própria democracia, ou seja, o Estado de Direito. São os fundamentos dos bens públicos que entram em crise, nesse caso. A capacidade intimidativa e corruptiva do crime organizado afeta, ademais, a própria função pública de proteção e de garantia. Ela proscreve a garantia das garantias, que é a função protetiva jurisdicional.
Segunda premissa. No que concerne à segunda indagação (relacionada com a capacidade do sistema penal para controlar o crime organizado) o balanço, diz Ferrajoli, é negativo. Algum tipo de mudança na estrutura do direito era previsível para fazer frente às organizações criminosas. E tais mudanças aconteceram em muitas legislações. Mas vieram com características irracionais e classistas (discriminatórias). Incrementaram a seletividade do sistema penal, ou seja, a perseguibilidade prioritária dos pobres, garantindo-se a impunidade dos poderes fortes.
Dupla involução. Uma dupla involução cabe ser mencionada: (a) a legislação e o funcionamento do sistema penal garantiram a impunidade da corrupção dos poderosos, seja despenalizando alguns crimes, seja permitindo a prescrição; (b) dirigiram suas forças contra os mais débeis (pobres), aumentando penas, endurecendo os regimes da execução, criando crimes infundados relacionados com a migração clandestina, com o que forjou “a pessoa penalmente ilegal”; trata-se de uma legislação demagógica, típica do populismo penal, fundada no medo, com alta dose de ineficácia, o que coloca em xeque a função dissuasória da pena.
A impunidade dos poderosos é criminógena. De outro lado, a legislação penal repressiva transmite uma mensagem ideológica nefasta [vinculando, muitas vezes, o delinquente apenas com imagem estereotipada difundida pela criminologia midiática]. O conceito de segurança divulgado amplamente na atualidade não significa segurança dos direitos sociais. Segurança é igual segurança pública, cujas medidas se voltam contra “bodes expiatórios”, escondendo-se grandes tensões sociais não resolvidas. Confunde-se política penal com política social [menosprezando-se a Justiça social]. Neste cenário de priorização da segurança policial ou penal duas seguranças se perdem: (a) segurança dos direitos sociais; (b) segurança da liberdade frente ao poder estatal.
Terceira premissa. Diante do fracasso retumbante do sistema penal atual para fazer frente às organizações criminosas, qual seria uma resposta racional?
1) Direito penal mínimo: o Direito Penal não pode ser usado para punir bagatelas, ou seja, só contam com merecimento penal as agressões graves contra bens jurídicos relevantes. A máquina judiciária não deve cuidar de coisas pequenas;
2) Direito internacional: no âmbito da esfera pública mundial impõe-se criar um direito penal transnacional à altura da criminalidade organizada também mundial. O Tribunal Penal Internacional está apenas começando suas funções jurisdicionais. Ainda continua muito “saboteado” [pelos Estados Unidos, por exemplo]. Impõe-se ampliar sua competência para poder julgar outros crimes: terrorismo, tráfico de armas, tráfico transnacional de drogas, golpes de Estado etc. São crimes que as Justiças locais não têm capacidade de julgar. Impõe-se, de outro lado, observar a máxima independência dos órgãos jurisdicionais e persecutórios. Juízes e membros do Ministério Público deveriam desenvolver uma espécie de “politização” voltada para aplicar a lei contra todos [não somente contra os pobres];
3) Direito penal reduzido: é preciso acabar com a inflação de leis penais, abolir as contravenções penais, contemplar expressamente na lei o princípio da ofensividade (lesividade), prever a exigência de representação para os crimes patrimoniais [ao menos no que diz respeito aos crimes cometidos sem violência], incrementar a previsão e o uso das penas alternativas e introduzir a “reserva de código” (todos os crimes previstos num único código), dificultando-se a sua alteração. Diante de um legislador desordenado, nada melhor que a reserva de código.
As duas sugestões (provocações?) finais oferecidas pelo professor Luigi Ferrajoli, em sua magníficalectio doctoralis, foram:
(a) legalização das drogas: a lógica proibicionista estimula o mercado assim como o crime organizado, até porque o Estado não tem a mínima condição de fazer cumprir a legislação que ele mesmo aprova. A legalização controlada pode ser uma boa saída (tal como a que está sendo ventilada, agora, para a maconha no Uruguai);

(b) fim do comércio e tráfico de armas: as armas são feitas para matar. A violência, sobretudo com a utilização de armas de fogo, nos conduz à sociedade natural (selvagem). Se o Estado conta com o monopólio do uso da força, ninguém mais está permitido utilizá-la [salvo em casos excepcionais para a defesa da vida, por exemplo]. É preciso vencer a atual crise da razão jurídica sem ilusões, mas também sem pessimismos. Somos todos responsáveis pela construção de um mundo melhor.
* Colaborou Alice Bianchini, diretora do Instituto LivroeNet e do Portalwww.atualidadesdodireito.com.br, coordenadora do Curso de Especialização em Ciências penais da Anhanguera-Uniderp/LFG e presidente do Instituto Panamericano de Política Criminal (Ipan).

Luiz Flávio Gomes é advogado e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG, diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Assine meu Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 12 de julho de 2012

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