terça-feira, 22 de maio de 2012

Mulher é condenada por dar tiro de advertência


Uma decisão judicial tende a reacender tensões raciais na Flórida e acirrar as discussões sobre um conjunto de leis "estranhas", que está mexendo com os nervos da população. Uma mulher negra foi condenada a 20 anos de prisão porque deu um tiro de advertência quando se sentiu ameaçada pelo ex-marido. O tiro foi dado na parede da casa e ninguém se feriu.
Marissa Alexander, 31 anos, mãe de três filhos, um dos quais ainda bebê, alegou legítima defesa e invocou a proteção da lei estadual "Stand your ground" ("não ceda terreno", quando sob ameaça). E, no tribunal, não aceitou acordo proposto pela Promotoria de se declarar culpada, em troca de uma pena menor. Mas o júri a considerou culpada. A acusação foi a de agressão com circunstâncias agravantes pelo uso de arma fatal. 
Segundo o Huffington Post e a agência Associated Press (AP), o juiz do fórum criminal de Jacksonville James Daniel, atribuiu a aplicação da pena desproporcional à legislação estadual, que deixa os juízes de mãos amarradas. "O Legislativo me negou o arbítrio para decidir sobre a sentença", declarou. O juiz se referia a uma lei da Flórida conhecida como "10-20-perpétua", aprovada em 1999 durante o governo de Jeb Bush, irmão do ex-presidente Bush. A lei estabelece penas mínimas ou de prisão perpétua que o juiz é obrigado a sentenciar, dependendo da qualificação do crime: se a pessoa mostra uma arma durante, quando comete certos crimes, pega dez anos de prisão, automaticamente; se dispara a arma, pega 20 anos, automaticamente; se acerta o tiro, pega de 25 anos à prisão perpétua. A lei não permite ao juiz considerar, por exemplo, circunstâncias atenuantes. 
Marissa, que tem mestrado e trabalhava para uma empresa de software, não tinha antecedentes criminais. Em 1º de agosto de 2010, nove dias depois de se separar de Rico Gray, ela foi à casa que ambos haviam deixado para buscar roupas e pertences pessoais. Mas o ex-marido estava na casa e os dois começaram a discutir, na frente dos filhos. Quando se sentiu ameaçada, ela foi até o carro e pegou a arma, que portava legalmente. Para assustá-lo, segundo seu próprio depoimento, apontou a arma para ele, mas disparou um único tiro na parede, que ricocheteou no teto. Em seu depoimento, Gray disse que ela foi a agressora na história. A Promotoria argumentou que a bala, depois de ricochetear, poderia ter atingido uma das crianças. O júri decidiu que ela cometeu um crime, agravado pelo uso de arma fatal. 
Antes do julgamento, a Promotoria propôs à defesa que a ré se declarasse culpada, para evitar o julgamento pelo tribunal do júri. Em troca da confissão, a Promotoria ofereceu uma pena menor, de três anos, em um acordo que deveria ser aprovado pelo juiz. A ré, com a aprovação de seu advogado, não aceitou a proposta de acordo, convencida de que poderia provar sua inocência. Não teria de passar três anos atrás das grades e não teria de enfrentar o problema de maus antecedentes criminais. Agora sua família lamenta o fato de que Marissa, "uma mulher que só deu boas contribuições à sociedade, vai passar duas décadas na cadeia, por uma suposta violação, em que ninguém se machucou". 
O juiz negou à ré a proteção prevista na lei "Stand your ground", uma lei que, agora, está sob fogo cruzado na Flórida e em todo o país, depois que George Zimmerman, um vigilante voluntário de condomínio de 28 anos e cor branca, matou o estudante Trayvon Martin, de 17 anos e cor negra, que estava desarmado, em 26 de fevereiro, porque suspeitava que ele poderia ser um ladrão. Zimmerman, que desobedeceu a ordem de um operador da polícia de não abordar o estudante, matou Trayvon com um tiro no peito e sequer foi preso. Alegou que sua vida estava ameaçada e argumentou que estava protegido pela lei "Stand your ground". Mas, finalmente, depois de muita pressão popular, com manifestações de rua em muitas cidades dos EUA, protestos em igrejas, escolas e até no Congresso, ele foi denunciado pela mesma promotora que acusou Marissa, acusado de homicídio em segundo grau, e levado a um tribunal. Pagou fiança de US$ 125 mil e foi solto. 
A condenação da mulher provocou indignação em muitos americanos, que criticaram quatro elementos presentes na decisão: a "loucura" da lei "Stand your ground", a insensatez da lei "10-20-perpétua", as injustiças do sistema de acordo de declaração de culpa em troca de pena menor contra inocentes e a "discriminação racial" na Justiça. 
A lei "Stand your ground" reformulou o conceito de legítima defesa. A legítima defesa implica o dever da pessoa se retirar — ou tentar se retirar — antes de usar "força letal". A "Stand your ground" extingue o dever de a pessoa se retirar. Uma vez que se sinta ameaçada, pode usar força letal, em qualquer lugar no estado, na rua, em um bar ou onde for. Depois do assassinato de Trayvon Martin e a impunidade de Zimmerman, o governo do estado criou um grupo de trabalho para discutir a lei e, possivelmente, reformulá-la. Por exemplo, a lei tem sido usada, com sucesso, por traficantes que matam traficantes e alegam que o fizeram porque suas vidas estavam sob ameaça; por integrantes de gangues que se confrontam ou por maridos ciumentos em brigas de bar; e assim por diante. Graças a essa lei, apelidada de "atire primeiro, faça perguntas depois", muitos criminosos escapam da cadeia. 
Marissa não escapou. O juiz decidiu que a lei não poderia ser aplicada no caso. Afirmou que, quando ela foi ao carro buscar a arma, deveria ter aproveitado e ido para casa. Marissa teria o sangue esquentado: voltou armada à briga com o ex-marido. E depois desse incidente, ela voltou a confrontar o ex-marido, em outra situação. A deputada federal Corrine Brown, democrata de Jacksonville que tem advogado em favor de Marissa, declarou: "A justiça criminal da Flórida enviou uma mensagem bem clara, hoje: a lei ‘Stand your grounds" não se aplica a mulheres que são vítimas de violência doméstica e tentam se defender". A promotora Angela Corey, que acusou Marissa, mas também está encarregada de acusar Zimmerman, terá de impedir a aplicação dessa lei para colocar o assassino de Trayvon Martin na cadeia. 
As leis que criaram sentenças mínimas obrigatórias (mandatory-minimum sentencing) são repudiadas pelos juízes americanos de todos os estados. Elas retiram dos juízes — e dos júris — o poder de sentenciar com base em todas as circunstâncias que envolvem um crime, como atenuantes. No caso, o trabalho do tribunal do júri consiste apenas em determinar se o réu é culpado ou "não-culpado" (nos EUA, "guilty" or "not guilty"). No caso da lei "10-20-perpétua", o tribunal do júri também qualifica o crime. Isto feito, o juiz aplica a pena mínima prevista na lei, sem qualquer margem para suas próprias considerações. Pior que essa lei, é a que estabelece pena obrigatória de prisão perpétua para crianças e adolescentes consideradas culpadas por crime de morte. A Suprema Corte dos EUA já pediu a reformulação dessa lei, ao examinar o caso de uma criança negra que foi condenada a prisão perpétua porque um de seus amigos matou com um tiro uma funcionária de uma loja de discos, durante uma tentativa de roubo em que ele estava por perto. 
A lei, que estabeleceu um modelo adotado por dois terços dos estados americanos, foi criticada pelo diretor do grupo "Famílias contra sentenças mínimas obrigatórias", Greg Newburn. "Ninguém está dizendo que ela é totalmente inocente. Mas acreditamos que ela teria uma sentença justa, se o juiz tivesse autoridade para levar em consideração as circunstâncias únicas do caso", declarou. O deputado estadual Victor Crist, que ajudou a redigir a lei "10-20-perpétua" em 1999, disse que a condenação de Marissa a 20 anos de prisão, por haver dado um tiro para assustar o ex-marido, não representa o que os legisladores imaginaram. "Ao aprovar essa lei, estávamos atrás do criminoso que entra em uma loja de bebidas para roubar, ameaça com uma arma ou atira para matar", declarou. 
A legislação que permite aos promotores negociar com o réu e a defesa a confissão de culpa, em troca de uma pena menor para evitar o julgamento, produz resultados, considerados absurdos por muitos, na Justiça americana. A lei pode ser extremamente traiçoeira para pessoas inocentes que, por isso, acham que vão ser absorvidas e não vão ser submetidas à pena alguma, mas que, no final das contas, são consideradas culpadas pelo júri – especialmente quando a pena prevista está associada com a lei "10-20-perpétua". Foi o caso de Marissa: ela recusou uma oferta de três anos para se declarar culpada, foi a julgamento, foi condenada e pegou 20 anos. Na outra extremidade, a lei beneficia criminosos. Pessoas que realmente cometeram um crime em que a lei é aplicável, declaram-se culpadas e pronto: pegam três anos, por exemplo, em vez de 20. 
O diretor do grupo "Famílias contra sentenças mínimas obrigatórias", Greg Newburn, disse que esse é um problema de cruza as fronteiras raciais. Há alguns anos, também na Flórida, um homem branco, Orville Lee Wollard, foi condenado à 20 anos de prisão porque disparou um tiro dentro de casa que, segundo ele, tinha apenas a intenção de espantar o importuno namorado da filha de dentro de casa. Os promotores convenceram os jurados de que ele atirou para matar, mas errou o tiro. Ele havia recusado um acordo, em que a Promotoria lhe propôs uma pena de liberdade vigiada, fora da prisão, se confessasse a culpa. Depois de considerado culpado, o juiz Donald Jacobsen declarou: "Eu sou obrigado a aplicar a lei "10-20-perpétua". 
Mas todos esses fatores somados, pesando forte na vida de uma mulher negra, meses depois de um homem branco escapar deles, sob protestos generalizados no país, remexem na ferida mais persistente da história americana: a discriminação racial — agravada por sua incorporação no sistema judicial. "A Justiça da Flórida mandou uma segunda mensagem à população", disse a deputada federal Corrine Brown. "Quando você é uma pessoa negra, o sistema irá tratar você de forma diferente", disse.
A Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP – National Association for the Advancement of Colored People) foi a primeira a se manifestar. "Os promotores e juízes se tornam excessivamente zelosos na aplicação dessa lei, quando o réu é uma pessoa de cor", declarou uma "deputada distrital afro-americana", representando a associação. Do lado de fora do fórum, um grupo de pessoas acompanhou o julgamento e protestou contra a condenação.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2012

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