sexta-feira, 27 de abril de 2012

Sistema prisional reativo não permite ressocialização


Luiz Flávio Gomes - Coluna - Spacca [Spacca]
*Com um total de 5.905 presos e 3.393.369 habitantes (uma taxa de 174,02 presos para cada 100 mil habitantes), o déficit nos presídios e penitenciárias do estado é de 1.964 vagas.

Na penitenciária de Tefé (antigo prédio residencial improvisado como prisão), as celas não possuem chuveiro e os presos se banham com a água que corre de um cano a um tonel.
Na Cadeia Pública de Vidal Pessoa, localizada em Manaus, há sete homens para cada vaga na ala masculina e o número de detentas é quase quatro vezes superior à capacidade da ala feminina.
Este foi o retrato que o último Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), realizado entre janeiro de 2010 e janeiro de 2011. Por meio de inspeções pessoais feitas pelos próprios juízes, é possível visualizar a situação do estado amazonense. Clique aqui para ler o relatório do mutirão.
Nos estabelecimentos, além de muito calor, superlotação e condições precárias de vida, há ainda uma agravante: 60% dos presos do estado são provisórios, ou seja, ainda não foram condenados definitivamente. Eles aguardam seus julgamentos encarcerados, podendo ainda ser absolvidos.
Outra barbaridade encontrada foi na cidade de Parintins, onde um adolescente de 17 anos dividia cela com presos adultos. No mesmo presídio, as grades das celas estão soltas, as paredes balançam, há diversas infiltrações e um grave risco de desmoronamento da laje sobre os detentos.
Na Casa do Albergado, situada na capital do estado, tolera-se o uso de drogas e álcool pelos detentos, em prol da “manutenção da paz” (frise-se que 2.407, ou 41%, dos detentos respondem por tráfico de enropecentes). Já no Complexo Penitenciário Anísio Jobim a segurança é tão precária que foram registradas 554 fugas em 2009.
Assim, além de insalubridade, insegurança e desumanidade, o sistema carcerário amazonense padece de verdadeira ilegalidade, além de colocar em risco a vida e a integridade de muitos seus detentos, os quais, considerada a totalidade, em sua maioria, sequer foram condenados.
A gravidade assim como a desumanidade institucional que aflige e denigre nosso sistema penitenciário fica cada vez mais evidente em cada mutirão realizado pelo CNJ. A essas denúncias dos magistrados inspetores devemos agregar as dos próprios presos, que diariamente não só reclamam dos maus-tratos senão também da insegurança em que vivem, típica de um Estado de Exceção. O pior é que tudo isso não é nada excepcional. Virou a regra, no sistema prisional brasileiro, que se caracteriza pela crueldade (daí dizer-se que o preso, no nosso país, não vai para o cárcere para cumprir seu castigo imposto em uma sentença judicial, mas sim para ser castigado, humilhado e degradado). O sistema de crueldade prisional é inequivocamente antagônico em relação ao Estado de Direito democrático desenhado pela Constituição Federal de 1988, assim como em relação ao nível de civilização pregado pelos tratados de direitos humanos. A degradação e a barbárie do nosso sistema prisional nos colocam, em termos mundiais, dentre os países “jushumanitariamente” mais atrasados.
No sistema de crueldade prisional não vigoram os direitos e garantias contemplados no Estado de Direito vigente. Como território das ilegalidades inerentes ao Estado de Exceção, é um sistema governado pela tortura sistematizada, pelas condições absolutamente desumanas assim como pela corrupção, que são notas típicas dos campos de concentração, que estão se transformando em verdadeiros campos de extermínio, sem nenhum tipo de controle judicial, seja em decorrência do ineficientismo da máquina judiciária, seja em razão da conivência (explícita ou implícita) desta máquina com a violência institucionalidade nos presídios. Esse cenário de crueldade e desumanidade não chegaria aos extremos que chegou sem a cumplicidade, ademais, dos demais poderes instituídos (sobretudo o político), que vivem embalados (inebriados) pelas demandas hiperpunitivistas populistas e midiáticas, denotando-se o que Michel Foucault chamava de “consenso social inarticulado”.
Em alguns centros penitenciários o nível de degradação chega a tal ponto que as próprias autoridades (e seus agentes) fecham os olhos para algumas ilegalidades emanadas dos próprios presos (formando-se territórios de drogas livres, por exemplo). Essa é uma forma de encobrir as ilegalidades institucionais, destacando-se a violência e o extermínio, que acabam servindo aberrantemente de “propaganda” para os governantes de mão dura (que assim procedem em razão do amplo apoio do populismo punitivo).
Quando bem analisada, verifica-se que essa política prisional rigorosa e degradante, vexatória e inconstitucional, que só existe em razão da ampla conivência das instituições públicas encarregadas da segurança, nada mais representa que a penúltima linha da política criminal populista hoje imperante (a última etapa é de responsabilidade da própria sociedade, que não aceita o egresso). O sistema de crueldade prisional nada mais retrata que a outra cara da mesma moeda das políticas de segurança reinantes em toda a América Latina, fundadas na demagogia punitivista e na utilização massiva e abusiva da prisão preventiva.
Trata-se de um modelo de política criminal marcado pela exclusividade “penal” e tendencialmente exterminador, que deita suas raízes em substratos doutrinários e ideológicos ancorados no neoconservadorismo dos anos 1970 e 1980, que é filho do capitalismo ultraliberal reinante, que tem como “inimigo” um determinado protótipo de “perigoso”: jovem (de 15 a 29 anos), majoritariamente negro (pardo ou preto), pouco escolarizado, socialmente desamparado, autor de crimes tradicionais, morador de bairros pobres, geralmente desocupado, repleto de necessidades, com baixíssimo capital social, econômico e cultural e que teve carências alimentares na infância.
Quem é esse prisionável? Esse é o “outro” (da criminologia do “outro”), que não conta com os direitos do Estado de Direito, sendo altamente vulnerável em razão precisamente da sua periculosidade de autor ou de classe, e componente, em virtude de se constituir um corpo sem alma (sem instrução, sem capital cultural, sem habilidades cognitivas), do grupo dos torturáveis, prisionáveis e mortáveis. O sistema da crueldade prisional joga suas forças contra um determinado grupo social (excluídos, marginalizados etc.), é reativo e, justamente por isso, não conta com programas de prevenção ou mesmo de ressocialização.
*Colaborou Mariana Cury Bunduky, advogada e pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.
Luiz Flávio Gomes é advogado e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG, diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Assine meu Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 26 de abril de 2012

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