sábado, 5 de março de 2011

Um novo paradigma para a execução penal dos criminosos sexuais: a hormonoterapia

Por Claudia Barrilari
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As grandes discussões do direito penal atual, em sua maior parte, giram em torno do, assim chamado, “direito penal da globalização”.(1)
Contudo, determinadas condutas são reprovadas desde os tempos antigos e, apesar de sofrerem certa mudança em função da própria evolução social, continuam inalteradas em seus núcleos estruturais. Um bom exemplo são os crimes sexuais.
Nélson Hungria(2) tece referências aos crimes de violação sexual desde a antiguidade, permitindo-nos observar que a pena cominada aos crimes de violação sexual, guardadas as peculiaridades próprias de cada época e de cada legislação, fica restrita às seguintes sanções: multa, reparação do dano pelo casamento e pena de morte.
Não houve, nas últimas décadas, com exceção da substituição da pena de morte pela pena privativa de liberdade,(3) outra alteração importante no que se refere às sanções cominadas aos crimes de violação sexual, os quais, na legislação nacional, são tipificados como estupro.
No Código Penal de 1940, ao crime de estupro era cominada pena de 3 a 8 anos, mas esta pena foi alterada em 1990, com o advento da famigerada “Lei dos Crimes Hediondos”, passando a ser de 6 a 10 anos. Referida lei, em seu art. 9º, criou uma causa de aumento de pena para o crime de estupro quando praticado contra vítima em qualquer das hipóteses do art. 224 do Código.
Em 2009, o Título VI do Código Penal sofreu várias alterações, dentre as quais se destaca a junção do estupro com o atentado violento ao pudor, configurando, no art. 213, o crime de estupro, mantida a pena de reclusão de 6 a 10 anos. Como qualificadora, o fato de a vítima ser menor de 18 e maior de 14 anos, com pena de reclusão de 8 a 12 anos. Em tipo autônomo, no art. 217-A, previu-se o estupro de vulnerável, apenando, com reclusão de 8 a 15 anos, a prática de conjunção carnal ou a de outro ato libidinoso com menor de 14 anos.
As mudanças perpetradas não representam um novo rumo ao combate ou à prevenção dos crimes sexuais. Trata-se, apenas, da conhecida (e inócua) técnica do legislador brasileiro de simplesmente aumentar as penas como resposta política à insegurança gerada pela disseminação do uso da internet e das novas formas de comunicação como meio facilitador dos crimes sexuais, principalmente com vítimas menores.
No direito estrangeiro, no entanto, algumas legislações têm procurado uma resposta que seja mais eficiente do que o simples agravamento das penas de privação de liberdade para combater o aumento dos crimes sexuais praticados.
Essas tentativas, em grande medida, têm como ponto de partida o aspecto criminológico e a individualização da conduta como modos de interferir na repetição do crime pelo autor já condenado e também como medidas de prevenção de novos delitos.
O direito penitenciário francês, há mais de uma década, vem estudando outros métodos de execução de pena, conforme noticia Pierre Darbeda.(4) Segundo este autor, a execução da pena para condenados por diversos crimes sexuais(5) sofreu significativa alteração, no ano de 1994, para que a privação da liberdade e o período posterior à liberação do condenado ensejassem um acompanhamento médico-psiquiátrico e psicológico que permitisse traçar um perfil individualizado de cada condenado e, principalmente, que possibilitasse a utilização de um tratamento cujo objetivo fosse afastar o agente da reincidência quando em liberdade.
Esse acompanhamento multidisciplinar entre juiz da execução, médico e psicólogo pode persistir após o cumprimento da pena privativa de liberdade com caráter autônomo, e é importante ressaltar que, dentre os métodos que podem ser utilizados, destacam-se os medicamentos hormonais androgênicos, com claro objetivo de diminuir ou suprimir a libido sexual do condenado
Em 20 de maio de 2010, na 64ª reunião do Conselho de Cooperação Penal do Comitê Europeu para os Problemas Criminais, realizado em Estrasburgo, França,(6) um dos pontos abordados referia-se aos criminosos perigosos, dentre os quais se discutiu a questão da castração química dos delinquentes sexuais.
Na Polônia,(7) recente alteração legislativa (2010) introduziu disposições que envolvem tratamento médico obrigatório para os condenados por violação de um menor ou de um membro da família. O tratamento médico obrigatório consiste em submeter o condenado a uma terapia farmacológica e psicoterápica que visa diminuir os impulsos sexuais.
Em nosso País, tais medidas deram origem a um projeto de lei, em tramitação desde 2007 no Senado Federal,(8) que trata da castração química.
O Projeto 552/07, de autoria do senador Gerson Camata, comina a pena de castração química para os autores dos crimes tipificados nos arts. 213, 214, 218 e 224 do Código Penal, na redação original anterior à lei 11.015/09, que forem considerados pedófilos. O projeto, nas emendas que sofreu na Comissão de Constituição e Justiça, foi aprimorado e ainda está em tramitação, aguardando a realização de audiência pública requerida para o debate da matéria.(9)
Ainda que extremamente polêmico, o tema está na ordem do dia em legislações estrangeiras, de modo que o projeto de lei em tramitação no Senado Federal pode ser o precursor de inovações no campo da execução penal para condenados por crimes sexuais graves.
Um dos principais obstáculos para a adoção da medida está no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Brasil. Para Flávia Piovesan, “pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe dá unidade de sentido”.(10)
Saber se a adoção da medida está em sintonia com a dignidade da pessoa humana é o desafio que se impõe. O que não podemos nos furtar, para além de uma criteriosa análise da compatibilidade da medida com os princípios elencados na Constituição Federal, é de encarar com seriedade as várias faces dos crimes sexuais, principalmente quando menores de idade estão envolvidos, como questão da mais alta relevância, a exigir uma resposta eficaz do Estado no combate e na prevenção desse tipo de delito.

NOTAS

(1) Sobre o tema, v., por todos, SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal. São Paulo: RT, 2002.
(2) Segundo o ensinamento de Nélson Hungria: “Desde os mais antigos tempos e entre quase todos os povos, a conjunção carnal violenta foi penalmente reprimida com grave malefício. Entre os hebreus, se a vítima era moça desposada (prometida em casamento), o inculpado pagava com a própria vida (...). Se, entretanto, a moça não era desposada, a pena consistia no pagamento de 50 siclos de prata ao pai da vítima, além de obrigatória reparação do mal pelo casamento. Entre os egípcios, infligia-se ao violentador a pena de mutilação. Na antiga Grécia, a princípio, a pena era de simples multa; mas, posteriormente, para conjurar os abusos, foi cominada a pena de morte, que veio a tornar-se invariável, abolindo-se a alternativa (anteriormente consentida) entre ela e o casamento sem dote. Entre os romanos, tendo-se mais em vista o emprêgo da fôrça do que a finalidade do agente, a posse sexual violenta (equiparada ao rapto violento) constituía modalidade de crimen vis, (...) e a pena era de morte. Na Idade Média, também era a pena de morte a que se aplicava aos réus de stuprum violentum (...) Refletia êsse rigor o Livro V das Ordenações Filipinas, nossa primitiva legislação penal: pena de morte contra ‘todo homem, de qualquer estado e condição que seja, que forçosamente dormir com qualquer mulher’, e não a excluía o próprio casamento do réu com a vítima” (HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1954, v. VIII, p. 104-105.
(3) O Código Penal do Império de 1830 já estabelecia pena de prisão de 3 a 12 anos, além do dote à ofendida. O Código Penal de 1890 foi mais benigno, com a previsão de prisão celular de 1 a 6 anos, além do dote e da extinção da punibilidade pelo matrimônio subsequente ao delito (idem, p. 105).
(4) DARBEDA, Pierre. L’expertise de prélibération de l’article 722 du code de procédure pénale et lês processus d’evaluation et de soins dês auteurs d’infractions à caractere sexuel. Revue de science criminelle et de droit penal compare (4), oct.-déc. 1996, p. 920. Sobre essa lei de 1994 e, também, demais considerações acerca de um outro projeto de lei apresentado em 1997, ver BOULOC, Bernard. Pénologie: exécution des sanctions adultes et mineurs. Paris: Dalloz, 1998.
(5) Afirma o autor que a lei se aplica para condenados por morte de menor de 15 anos, havendo violação sexual, tortura ou outros atos de barbárie acompanhados de violação simples ou agravada, agressão sexual simples ou agravada e atentado sexual sem violência.
(6)http://www.coe.int/t/f/affaires_juridiques/coop%E9ration_juridique/emprisonnement_et_alternatives
/comit%E9s/Documents_2010/PC-CP(2010)12%20_Rapport%2064e%20reunion__simple.pdf.
(7) Segundo dados do site Criminonet (http://criminonet.wordpress.com/2010/06/14/semaine-du-7-au-13-juin-2010/), a emenda, votada pelo Parlamento polonês em setembro de 2009, autoriza o tribunal a aplicar medida obrigatória que imponha uma terapia farmacológica e psicoterápica que vise diminuir os impulsos sexuais.
(8) http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82490.
(9) Em 07/07/2009, o senador Marcelo Crivella apresentou relatório para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal com voto pela aprovação do Projeto com duas Emendas (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/56869.pdf). Em 13/04/2010 o mesmo senador apresentou relatório na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf). Nesses dois relatórios, o Senador Marcelo Crivella de modo claro e didático faz considerações relevantes sobre a matéria em si e a constitucionalidade da mesma em face de nosso ordenamento jurídico. Em 09/06/2010 a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa aprovou requerimento do Senador José Nery (http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82490) para a realização de Audiência Pública para instruir a matéria, com o convite para participar da referida audiência entidades da sociedade política e civil como os membros do Programa Nacional de Enfrentamento da Violencia Sexual contra Crianças e Adolescentes da Secretaria de Direitos Humanos da Presidencia da República; do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; do Ministério da Justiça; do Ministério da Saúde; do Conselho Federal de Psicologia (CFP); do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entre outros. Em 07.07.2009, o senador Marcelo Crivella apresentou relatório para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal com voto pela aprovação do Projeto com duas Emendas (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/56869.pdf). Em 13.04.2010, o mesmo senador apresentou relatório na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf). Nesses dois relatórios, o senador Marcelo Crivella, de modo claro e didático, fez considerações relevantes sobre a matéria em si e a constitucionalidade da mesma em face de nosso ordenamento jurídico. Em 09.06.2010, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa aprovou requerimento do senador José Nery (http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82490) para a realização de audiência pública para instruir a matéria, com o convite para participar da referida audiência entidades da sociedade política e civil, como os membros do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério da Justiça, do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outros.
(10) Cf. PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 59.

Claudia Barrilari, Advogada em São Paulo. Mestre em direito penal pela PUC/SP.


Como citar este artigo: BARRILARI, Claudia. Um novo paradigma para a execução penal dos criminosos sexuais: a hormonoterapiaIn Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 219, p. 18-19, fev., 2011.

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