quarta-feira, 23 de março de 2011

ANOS DE CHUMBO: O QUE FAZER PARA QUE TUDO SEJA APENAS HISTÓRIA


Marcos Rolim[1]


O novo Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General José Elito Siqueira, afirmou, em sua posse, que a existência de desaparecidos políticos não deve ser motivo para vergonha. Segundo o General, os desaparecidos constituem, tão-somente, um “fato histórico”. O sentido da afirmação é inequívoco e demonstra que prevalece nas Forças Armadas o sentido do “dever cumprido” no que se refere ao combate à “subversão”.
Ter vergonha é uma importante capacidade para o agir moral. O sentimento comporta um tipo especialmente útil de medo, o medo de “decair perante os olhos da pessoa respeitada”, como o assinalou Piaget. Se não me envergonho, é também porque identifico no olhar do outro a aprovação ou a indiferença diante de minha conduta[2]. A ausência de vergonha nas FFAA a respeito do papel desempenhado pelo Estado nos chamados “anos de chumbo” diz, portanto, algo sobre o olhar da sociedade brasileira. Fosse outro este olhar, a própria formação oferecida na caserna teria há muito se apartado da moldura ideológica típica da “guerra fria”.
O fato é que estamos diante de uma história mergulhada na opacidade. Lembrando Faulkner, penso que nosso passado, blindado oficialmente pela conveniência política e pela covardia, ainda sequer é passado. Tudo aquilo que há de triste e revoltante nesta história, entretanto, precisará ser revirado escrupulosamente se desejarmos que os fatos não sejam mais sombras e digam respeito, finalmente, ao que nunca mais será.
O “fato histórico” ao qual se referiu o eminente servidor poderia ser resumido assim: em determinado período da história recente do Brasil, particularmente após o Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, e ao longo de toda a década de 70, aqueles que haviam chegado ao Poder através de um golpe militar em 1964 decidiram lançar mão de estratégias de repressão ilegal (fora da lei do próprio regime de exceção) contra as organizações da esquerda que existiam à margem dos estreitos limites de atuação política tolerados pela ditadura. Tais estratégias envolveram: a) a prisão dos suspeitos de atividades “subversivas” e das pessoas que os aparatos repressivos imaginassem ter informações úteis à luta contra a “subversão”; b) a montagem – com o apoio clandestino de empresários financiadores - de estruturas especiais de “contra-insurgência” como os DOI-CODIs, onde os presos seriam “interrogados” sob tortura e c) a decisão de construir versões fantasiosas de morte em “tiroteios” e “suicídios” ou de, simplesmente, sumir com os cadáveres daqueles que não resistissem às torturas ou que fossem deliberadamente assassinados.
Todas as organizações da esquerda foram atingidas por esta estratégia, inclusive aquelas – como o PCB – que nunca aderiram à luta armada. Ao contrário do que ocorreu na Argentina e no Chile, entretanto, a repressão clandestina organizada pelo Estado no Brasil foi seletiva, sendo o “foco” definido pelo objetivo de destruir as estruturas militantes da esquerda. Estas, como se sabe, possuíam efetivos pequenos ou mesmo minúsculos.
Os defensores da ditadura sempre sustentaram aquelas estratégias com base em dois artifícios: o “negacionismo” e o “argumento da proporcionalidade”. Pelo primeiro, se procurou sustentar que a tortura, os estupros e os assassinatos de presos políticos não existiram, sendo as denúncias uma “invenção” da esquerda. Com o passar dos anos, diante das evidências que amparavam as denúncias, o negacionismo recuou para a versão dos “casos isolados”, apresentando as violações, então, como “excessos” que teriam sido praticados por “pessoas despreparadas”. O segundo artifício afirma que a repressão foi uma resposta ao “terrorismo” e aos objetivos de implantar no Brasil uma “ditadura comunista”. Haveria, então, nos “excessos” uma resposta correspondente aos abusos praticados pelos opositores do regime e as suas pretensões revolucionárias. Grande parte da mídia nacional assume, ainda hoje, esta versão que aparece, por exemplo, na ideia de “excessos de ambos os lados”.
O “argumento da proporcionalidade”, uma versão da “teoria do menor dos males” (the lesser of two evils theory) é uma mentira que ganhou “pernas” por incorporar pelo menos duas verdades que a esquerda brasileira não tem disposição de reconhecer: a) o fato de que as organizações de esquerda que optaram pela luta armada não tinham compromisso com a democracia e b) o fato de que determinadas ações armadas promovidas pela esquerda caracterizaram crimes de caráter repulsivo como, por exemplo, os assassinatos do Capitão Charles Rodney Chandler e do Tenente Alberto Mendes Júnior. Chandler foi morto a tiros, quando retirava seu carro da garagem, em frente ao seu filho de 4 anos e de sua esposa. Foi escolhido para ser “justiçado” (esta era a expressão com a qual se procurava oferecer legitimidade à execução) por se tratar de um oficial americano que havia servido no Vietnan (!).  O Tenente Alberto foi capturado no Vale do Ribeira por um destacamento guerrilheiro sendo, depois, executado a coronhadas[3].  Nenhuma destas situações traduziram “luta armada” contra o regime; mas crimes marcados pela absoluta desconsideração com o outro que apenas as ideologias, as religiões e as psicopatologias podem produzir.
Para aceitar a ideia da “proporcionalidade”, entretanto, seria preciso, primeiro, sepultar a milenar tradição jurídica que assegura o direito de resistência às autocracias, desde o tiranicídio medieval a os ensinamentos de São Tomas de Aquino para quem a violação do direito natural por parte dos governantes poderia justificar a resistência da população pela força. Esta tradição que procurou assegurar aos indivíduos a liberdade diante dos usurpadores adentrou a modernidade com a Declarações das revoluções americana e francesa. Atualmente, várias constituições modernas tratam explicitamente do direito à resistência. A Constituição alemã de 1949, por exemplo, afirma: “todos os alemães terão direito de se insurgir contra quem tentar subverter essa ordem, quando não lhes restar outro recurso”. Na mesma linha, a Constituição portuguesa de 1982 sustenta: “todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”
Não há proporcionalidade, então, entre golpistas e resistentes e cogitar dela significa já desprezar a democracia e o direito. Os que resistiram à ditadura no Brasil – com ou sem armas – estavam em seu pleno direito. Mais: exerceram obrigação cidadã. Com efeito, não se perdoa uma Nação que permite que suas instituições democráticas sejam violadas sem resistência. A ideologia dos resistentes ou seus sonhos revolucionários – por mais equívocos que fossem – não impugnam o direito à resistência, nem os golpistas estão legitimados a falar em nome da “democracia” que aviltaram. Por isso, o “argumento” de que os grupos de esquerda pretendiam implantar o comunismo no Brasil é tão verdadeiro quanto ridículo. Por acaso devemos condicionar o apoio aos que lutam contra as ditaduras nos países árabes à apresentação de um atestado ideológico?  Devemos solicitar dos dissidentes cubanos o compromisso com a democracia para valorizar sua luta contra o regime totalitário de partido único?  
No mais, é preciso lembrar que os militantes da esquerda que se envolveram na luta armada são conhecidos, possuem nome e endereço. Os que não foram mortos passaram anos na prisão; muitos enfrentaram a tortura, outros tantos foram obrigados ao exílio. Os agentes públicos – membros das Forças Armadas e das polícias – que praticaram os crimes de tortura, que estupraram prisioneiras e que assassinaram pessoas que estavam sob a guarda do Estado permanecem, pelo contrário, nas sombras. Nenhum foi sequer processado e muitos foram promovidos. O projeto de lei que deu origem à Anistia foi elaborado pela ditadura para assegurar a impunidade de seus crimes. Mais de três décadas depois, seria inútil pretender punir os que, naquele tempo, nos mostraram que matar está longe de ser o pior que se pode fazer a uma pessoa. Isto, entretanto, é totalmente distinto de esquecer. Afinal, como o disse Hannah Arendt, “há crimes que não se pode punir, nem perdoar”.   
A ideia de criar no Brasil uma “Comissão Nacional da Verdade”, proposta enviada ao Congresso em maio de 2010 (PL 7.376/10), pretende investigar e descrever os atos de violação aos direitos humanos, inclusive a autoria de tortura, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. Não há uma só linha no projeto de lei que fale em punir os responsáveis por tais atos. Assim, o que o Congresso deverá decidir é se o Brasil terá a chance de conhecer de fato a autoria, a natureza e a extensão das violações, especialmente no período onde a democracia foi suprimida por um ato de força.
Quando o trabalho tiver se encerrado e o País for informado sobre tudo, haverá motivos de sobra para vergonha. Bem-vinda vergonha que irá nos redimir e nos proteger das barbaridades emboscadas no futuro.



[1] Jornalista, doutorando em sociologia pela UFRGS, professor da Cátedra de Direitos Humanos do IPA.

[2] É claro que nem toda reprovação pública equivale à vergonha. É preciso que, nesta reprovação, o sujeito também se reprove. Por esta razão a definição de Spinoza parece mais acertada quando assinala: “a vergonha é a tristeza que acompanha a idéia de alguma ação que imaginamos censurada pelos outros e que o é por nós mesmos”.
[3] Ambas as ações foram realizadas pela “Vanguarda Popular Revolucionária” (VPR), cujo dirigente mais conhecido foi o ex-capitão do Exército Brasileiro, Carlos Lamarca.

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