quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

'Quanto menos governo melhor'

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ENTREVISTA/Ester Kosovski

Há 20 anos, a advogada Ester Kosovski enfrentou preconceitos por defender mudanças na política de drogas, cujo enfoque repressivo já naquela época se provava ineficaz.
Durante três anos, de 1990 a 1992, quando presidiu o Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), ela liderou os trabalhos que resultaram numa proposta que previa a despenalização do usuário, a distinção entre tráfico e consumo e uma analogia em tratamento para igualar drogas lícitas e ilícitas.
Professora emérita da UFRJ e membro das comissões sobre Política de Drogas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), Ester comemora os avanços e continua pregando a liberdade. “Quanto menos  governo, melhor.”
Como o Brasil caminhou em política de drogas nas últimas duas décadas?
Em 1992, o Confen apresentou uma proposta de política considerada muito avançada, revolucionária. Propusemos a despenalização do usuário, a distinção entre tráfico e consumo e uma analogia de tratamento para igualar drogas lícitas e ilícitas. Esse foi o grande avanço da nossa proposta. Álcool e tabaco são mais perniciosos do que um cigarrinho de maconha. Aí o Jornal do Brasil fez uma publicação, desmentida pelo Ministro da Justiça, indicativa de campanha difamatória. Chegaram a dizer que o Confen não era lugar para mulher. Mas valeu a pena, porque os avanços de hoje são resultado das sementes que plantamos há 20 anos. Fizemos um trabalho pioneiro de revisão da legislação. A lei de 2006, que descriminaliza o usuário, é baseada na proposta de 1992.

Por que era preciso mudar?
Se um indivíduo maior e vacinado tomar algo que faz mal à saúde dele, ninguém tem nada a ver com isso. É uma conduta estritamente privada, se não afeta outras pessoas. O consumo muitas vezes faz parte da cultura local. Prevenção e tratamento não têm nada a ver com polícia. Repressão policial é diferente do controle social feito pela família, a escola, as instituições que a pessoa freqüenta. As pessoas se sentem tolhidas de uma forma muito melhor do que pela polícia, como em relação ao fumo. Mas à polícia interessa a proibição, porque possibilita plantar flagrantes e prender pessoas por porte.
Que outros avanços ocorreram além da descriminalização do usuário?
Uma conquista hoje é o tratamento igualitário do álcool e das drogas. A lei não fala isso, mas na prática está conquistado. Vimos nas estatísticas policiais que a maior parte da violência doméstica não é por maconha nem cocaína, é por cachaça da pior qualidade. O resultado funesto do álcool é pior do que o das drogas. E como se diminuiu o consumo de cigarro? Com educação e prevenção. Esse é um grande exemplo a ser seguido na questão das drogas. Tudo que é proibido é mais atraente.
A Lei 11.343, de 2006, não penaliza com prisão o usuário de drogas, mas não diferencia claramente usuários de traficantes. Como essa lei poderia melhorar?
A diferenciação seria por quantidade para cada tipo de droga ilícita e pela atitude – se está vendendo ou usando. Na lei da oferta e da procura, a oferta às vezes é agressiva e a procura, tímida. Há uma diferença entre liberação, regulamentação e legalização. Liberação deixa completamente livre, e, pelas conseqüências, fica difícil aceitar. Regulamentação é o que está sendo proposto: regulamentam-se condutas. A regulamentação não tem a mesma força de lei. É o controle suave. Legalização é não proibir na lei, mas estipular, por exemplo, horários e lugares específicos para vender controlados pelo estado. Isso permitiria inclusive ter estatísticas mais confiáveis. E manter a polícia fora do esquema. Policiais e políticos não gostam da ideia porque com a proibição podem ganhar mais. Também é possível a legalização de certas substâncias e outras não. Quando se diminui o número de delitos, diminuem as despesas com todo um arcabouço que custa muito e dá poucos resultados.

Prisão não é solução?
A prevalência da política de repressão como tem sido desde a década de 1970 não deu resultado, apenas encheu as penitenciárias de usuários, em vez de bandidos. Foi uma cópia dos Estados Unidos, onde também está sendo revista a posição. Não interessa prender por crimes sem vítima, ou onde a vítima é a própria pessoa que os comete. Os pequenos aviõezinhos são aliciados entre os mais pobres, crianças sem perspectivas. Ele só faz o papel de condutor, não pressiona nem alicia. Quando pegos, os menores de idade vão para instituições onde dão início a uma carreira no crime. Os maiores são presos por tráfico. Na prisão, o sujeito tem mais contato com a droga do que fora e com elementos profissionais no crime. Fica desarraigado da família, do mercado de trabalho, de uma vida sexual normal. Os malefícios da prisão estão sendo reconhecidos. Nos custos e benefícios à sociedade, a prisão é um custo maior.
Como a senhora vê a demissão do ex-secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay, que assumiria a Senad, após dar entrevista ao Globo em que defendeu o fim da prisão de pequenos traficantes que hoje superlotam as cadeias?
De início, todos ficaram revoltados. Ele é aberto, evoluído, preparado, com vontade de fazer e teve muito sucesso como secretário nacional de Justiça. Ele foi provado, não caiu do céu por acaso. Mas como secretário, não tinha tanta exposição. Como foi para a posição no início de governo, com tanta susceptibilidade, acredito que a demissão nem foi pelo posicionamento, mas pela iniciativa de fazer a declaração e dar a proposta. Foi um pouco impulsivo. Talvez ele merecesse um puxão de orelha, e não uma demissão. Mas a presidente teve que demonstrar sua autoridade, e outras pessoas devem ter dado palpites no ouvido dela. É uma pena, porque ele ia prosseguir na evolução de privilegiar a sociedade e não a repressão. Espero que a pessoa que foi para o lugar dele mantenha a mesma linha . Quem quer o benefício da sociedade sem a força das armas tem uma visão equilibrada e democrática .
A Senad está avançando?
Por incrível que pareça, alguns militares têm uma visão menos conservadora que muitos civis. O general Paulo Roberto Uchoa (que até o governo Lula presidia a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – Senad) tinha como braço direito a Paulina Duarte (hoje titular da pasta), que é uma pessoa técnica, competente, com uma compreensão e uma visão mais atual do problema. Em 2008, a Senad e o Conad, antigo Confen, mudaram informalmente o “Antidrogas” dos seus nomes para “Política sobre Drogas”. “Anti” quer dizer contra. A droga não é desejável, mas “anti” é muito negativo.

A legalização está próxima?
Não vai acontecer tão cedo, mas gradativamente já se dão alguns passos, como a proteção do usuário. A legalização se inicia com não punir o usuário e oferecer tratamento a quem aceita. Tem que haver colaboração da sociedade, não pode vir de cima para baixo nem de legislador corrupto. Estamos caminhando para uma maior compreensão. Mas tem gente interessada em criar proibições, como no caso do jogo do bicho. Em quem faz as leis prevalece o interesse de quem paga mais e não os interesses da sociedade. Por isso fizemos uma proposta de regulamentação e legalizar seria o próximo passo, dando ênfase à prevenção e ao tratamento.

Quem precisa de tratamento?
Qualquer substância pode gerar dependência, dependendo da pessoa. Hoje há dependentes de água, que tomam tanta que chega a fazer mal, porque perdem sais minerais. É preciso diferenciar quem é dependente e quem é usuário de droga. O usuário é eventual, usa socialmente, não fica obsessivo atrás daquilo. O dependente tem conseqüências psico-físicas, perde as medidas. Quem cria dependência, seja por drogas lícitas ou ilícitas, precisa de tratamento. E tem que ser voluntário, porque se for apenas compulsório ele volta para a droga. O tratamento é um trabalho público a ser feito pelo estado. Recursos têm, mas são mal empregados.
O crack merece atenção especial?
Ele assusta muito porque agora está atingindo a classe média, e seu efeito é rápido e danoso. Há uma pressão maior da família, que tem que arcar com o ônus de ter um drogado na família. Alguns parentes vão ao tratamento junto, outros se revoltam. Isso tem muito peso na sociedade. O crack realmente tem que ter um controle maior do que qualquer outra substância, porque além dos danos que causa é barato.
Como foi o processo de regulamentação do uso ritual da Ayahuasca?
Foi um processo antigo que começou na década de 1980 com a gestão de Tecio Lins e Silva no Confen. O uso da Ayahuasca é cultural. Há pressões policiais para que seja considerado ilícito como alucinógeno, mas é uma coisa dos povos da floresta. As pessoas ficam clarividentes. O parecer estudado e elaborado por Domingos Bernardo Gialluisi Sá concluiu que a proibição não favoreceria ninguém senão as batidas de policiais que intimidavam as pessoas. O parecer foi aprovado no Confen unanimemente, até pelos representantes da Polícia Federal e da Receita Federal. As próprias igrejas tomam atualmente cuidado e fiscalizam  para que o chá não seja levado para fora do contexto religioso.

Hoje o uso medicinal da maconha é aceito em diversos países. Como a senhora vê a possibilidade?
Se ela pode ser usada para cura, como medicamento, não pode ser proibida. Ou se deveriam proibir também inúmeras substâncias que enriquecem as indústrias farmacêuticas.

O uso recreativo das drogas é um direito humano?
Faz parte dos direitos humanos, sem dúvida alguma, como o lazer. A interferência do estado tem que diminuir cada vez mais. O laissez faire, laissez passer tem que ser para as pessoas também.

Como seria a política de drogas ideal, na sua opinião?
Ela depende das circunstâncias e das mentalidades. Não adiantaria impor uma política contra a posição da maioria. A política deve atender ao máximo o bem estar indivudual, assegurado pelas declarações de direitos humanos, o direito à privacidade, à liberdade pessoal desde que não afete os outros. Não sou anarquista, mas acho que tem que haver um governo mínimo com responsabilidade social, só para manter a paz social. Quanto menos governo, melhor.

Comunidade Segura. Marina Lemle 09/02/2011 - 03:45.

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