sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Artigo: Políticos não conhecem as causas da delinquência

Por Luiz Flávio Gomes
  Luiz Flávio Gomes - Coluna - Spacca - Spacca
"A violência implica uma autopurificação completa, tanto quanto seja humanamente possível, do homem para o homem." (Gandhi)
Está cada vez mais evidente, especialmente na América Latina e no Brasil, que a resposta dada pelos políticos (legisladores e gestores públicos) ao fato da delinquência, sobretudo a urbana, não está dirigida a ele, mas, sim, à projeção midiática construída a partir dele. Atua-se em torno da realidade projetada, não diretamente sobre ela. E essa realidade projetada está submetida, com frequência, à subinformação (informação cortada) ou à desinformação (informação falsa).[1]
Os políticos e a mídia não questionam as causas profundas da criminalidade, não apresentam (nem discutem) planos voltados para a sua prevenção, as variáveis prováveis de cada tipo de delito, a insegurança objetiva e subjetiva etc. Claro que, na atualidade, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro constituem uma exceção. Mas são ainda uma experiência muito recente para que delas possamos extrair conclusões definitivas.
Os políticos (legisladores e gestores públicos), como bem enfatiza Zaffaroni,[2] “pressionados pela projeção midiática, respondem discursivamente e condicionam a ela (projeção) a resposta ao próprio fato, a ponto de omitir-se em relação a ele (fato). Não existem observatórios, estatísticas sérias e orientadas para a prevenção, ninguém se ocupa em investigar com visão preventiva o fato da delinquência urbana em si mesmo, enquanto os comunicadores sociais e os políticos se concentram na projeção midiática do fato e operam com algumas estatísticas pouco confiáveis e bastante inúteis para efeitos preventivos. Enfrenta-se a construção da realidade, e não a realidade, da qual, ao que parece, ninguém procura se aproximar”.
A prova mais evidente de que tais políticos (legisladores e gestores públicos) não estão muito preocupados com o fato e, sim, com a projeção do fato, consiste na penúria dos orçamentos públicos para o estudo das causas do delito (frequência, dinâmica, modalidades de atuação, programas de prevenção vitimaria, situações de risco, grupos de risco, programas educativos dirigidos a esses grupos de risco etc.).
A mídia, a opinião pública e os políticos sabem reagir emotivamente ao fato da delinquência, mas não o conhece. Aliás, nem conhecem nem procuram conhecer. Se para prevenir o delito é fundamental conhecê-lo, quem não o conhece não tem a mínima condição de estabelecer qualquer tipo de política preventiva. Tudo o que a mídia e os políticos podem oferecer, destarte, é um placebo (um calmante sem efetividade para as iras e clamores da opinião pública). Se nada sabem sobre as causas do problema, não podem nunca solucionar o problema. Quem não conhece as causas de uma doença não pode nunca curá-la. O legislador brasileiro tem produzido muita legislação placebenta. Por quê?
Porque as causas do delito continuam sendo ignoradas. Delas quem cuida é o cientista criminal (o criminólogo), que bem sabe, no entanto, das limitações do poder político para solucionar o problema, que não é só dos réus, das vítimas e do Estado, senão também (e, sobretudo) da sociedade, que sabe reagir passionalmente ao delito, clamar por mais rigor penal, mas ainda não descobriu o seu verdadeiro papel na prevenção dele.
É preciso reconhecer duas coisas: (a) a perda de poder dos Estados nacionais na era da globalização e (b) o mau gerenciamento do dinheiro público, que muitas vezes é desviado das finalidades mais nobres da república.
Os políticos, mesmo os que conseguem fugir do leito de Procusto[3] imposto pela mídia e pela opinião pública (populista), sabem dos seus limites para implantar políticas públicas que implicam reformas estruturais que resolvam os problemas sociais mais graves (muito ligados à violência urbana). Diante dessa impossibilidade (real ou aparente) acabam optando por medidas puramente ou quase que totalmente simbólicas (ou seja: placebentas, porque de efetividade bastante duvidosa).
Uma dessas medidas ilusionistas consiste, para atender o clamor midiático e popular, no persistente endurecimento do rigor penal, como se isso fosse solução para o problema criminal. Endurecem a lei penal e, ao mesmo tempo, 86 mil inquéritos policiais, instaurados até 2007, para apuração de homicídios, acham-se praticamente parados, sem descobrir a autoria e as circunstâncias dessas mortes violentas (blogdolfg.com.br)

[1] Cf. SARTORI, Giovanni, Homo Videns – La sociedad teledirigida, Madrid: Santillana, 2008, p. 84.
[2] Cf. ZAFFARONI, Eugénio Raul, Delinqüência urbana e vitimização das vítimas, em Depois do grande encarceramento, organizadores Pedro Abramovay e Vera Batista, Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 39.
[3] Procusto, conta a lenda, dizia para todos aqueles que pediam para dormir em sua cama o seguinte: se seus pés forem maiores que minha cama vou cortá-los; se forem menores, vou espichá-los. O visitante tinha que se encaixar no seu leito sem faltar nem sobrar.


Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). É autor do Blog do Professor Luiz Flávio Gomes.
 
Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2011.

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