sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Artigo: O (futuro) novo código de processo penal: um código dos réus?

Por André Machado Maya e Guilherme Rodrigues Abrão
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O Senado Federal aprovou, em primeira votação, no último dia 09.11.2010*, o projeto do novo Código de Processo Penal, equivocadamente batizado por alguns, antes mesmo da sua entrada em vigor, de “Código dos réus”. Na mídia, em especial no Estado do Rio Grande do Sul, vários programas propuseram o debate sobre o referido projeto de lei, inclusive com a realização de pesquisas interativas indagando aos ouvintes, leitores e telespectadores se o novo Código é bom ou ruim para a sociedade, viés que, pensamos, deve ser refutado, pois da sociedade também os réus fazem parte. Bom para os réus, bom para a sociedade; ruim para os réus, ruim para a sociedade. Não há um Código pro reu ou um Código pro societate. O projeto do novo Código está inserido numa lógica que segue os ditames constitucionais e, ao menos em parte, em consonância com o respeito aos direitos e garantias fundamentais que são assegurados a todos os cidadãos.
A tônica dos debates verificados vem se revelando, a nosso ver, por demais reducionista e simplista. Não há motivos para pânico: o novo (quem sabe?) CPP não foi feito para beneficiar os réus, e tal afirmação apenas pode ser resultado do desconhecimento do projeto aprovado no Senado, cujo teor revela, entre outros pontos, a ampliação do prazo das interceptações telefônicas para 360 dias (o prazo atual é de 30 dias), a possibilidade de prisão preventiva com base na gravidade do crime (o que hoje é vedado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal) e a possibilidade de aplicação antecipada de pena (punição sem processo) nos casos de crimes cuja pena máxima não supere 08 anos, o que representa quase a totalidade dos delitos tipificados no Código Penal, apenas para citar três exemplos que colocam por terra esse rótulo reducionista imposto por partidários dos discursos punitivistas e do Direito Penal do inimigo.
Por outro lado, verdade é que o projeto do novo CPP introduz no ordenamento jurídico brasileiro alterações significativas, como o juiz de garantias e a vedação da iniciativa probatória do juiz, todas elas seguindo uma tendência mundial de democratização do processo penal. E faz isso com um objetivo muito claro: legitimar a atuação do Estado na persecução penal e a decisão final do processo, seja ela condenatória, seja ela absolutória. É preciso ter claro que os crimes e as penas são previstas no Código Penal e que o Código de Processo Penal delimita os procedimentos e as regras que devem ser observadas para que, ao final, seja imposta ou não a sanção penal. E, nos ensina Ferrajoli, em se tratando de processo penal, as regras são a própria garantia.
Assim, atendendo aos parâmetros de uma sociedade democrática, e ciente de que democracia pressupõe liberdade, direitos e garantias individuais, é que o projeto do novo Código, em uma nítida tendência de alinhamento para com a Constituição Federal de 1988, cria, por exemplo, o juiz de garantias e proíbe o juiz de produzir provas, com o que pretende reforçar a garantia – que a todos nós alcança – de ser julgado por um juiz imparcial. A produção de provas é responsabilidade de quem acusa, do Ministério Público, instituição muito bem estruturada e composta por profissionais muito bem remunerados e preparados para exercer a função acusatória. É muito cômoda, ao Ministério Público, a defesa da iniciativa probatória dos juízes, com o que se desincumbem os promotores de qualquer responsabilidade no processo. Olvida-se o Ministério Público de que o juiz deve ser um terceiro imparcial, fiscal do devido processo penal e, por consequência, tutor do respeito aos direitos individuais do acusado. Não é tarefa do juiz acusar ou, tampouco, defender o réu.
Esse novo Código está longe de ser e servir como o “Código dos réus”. É preciso compreender que numa proposta de reforma muitas são as pressões de instituições e órgãos para que sejam adotados certos posicionamentos, quase sempre motivadas por interesses meramente institucionais. Isso, contudo, não pode se sobrepor a um interesse muito maior e justo: o devido respeito aos preceitos constitucionais arduamente conquistados ao longo da formação do Estado Democrático. Um processo penal justo, igualitário e democrático somente pode ser alcançado trilhando caminhos em conjunto com uma Constituição que respeita as liberdades fundamentais.
O devido processo legal, garantia suprema insculpida na Constituição, não visa beneficiar tão somente os réus ou a sociedade dita “de bem”. É, sim, o devido processo para toda uma sociedade, independente de quem esteja no banco dos réus – importante lembrar que, no plano da teoria, não existe essa distinção entre mocinho e bandido, afinal, todos somos iguais perante a lei –, um processo que ainda deve estar em harmonia com o princípio basilar de um Estado Democrático e Constitucional de Direito: a dignidade da pessoa humana. Assim, imperioso que o Código de Processo Penal, novo ou não, reconheça ao acusado sua condição de sujeito de direitos, e não de mero objeto sobre o qual deve recair a sanção penal.
Em síntese, a atualização do Código de Processo Penal não é uma necessidade de hoje; está atrasada há pelo menos 22 anos. Não é mais possível compatibilizar uma Constituição Federal democrática, que se diz cidadã, com um Código de Processo Penal oriundo do Estado Novo de Getúlio Vargas, impregnado de conceitos fascistas, na sua maioria influenciados pelo Código Roco da Itália de Mussolini. É preciso entender que a lógica mudou, que o acusado não é o inimigo, nem mesmo mero objeto na relação processual, e que, no processo penal, é fundamental estabelecer que os fins não justificam os meios, mas sim o inverso. Basta assistir ao filme “Tropa de Elite II” para entender a importância de um sistema de garantias que, a um só tempo, limite a atuação punitiva do Estado e legitime a condenação daqueles que cometeram crimes.<

* Observação: o artigo foi remetido ao Conselho Editorial em 12 de novembro. No dia 8, o Projeto de Lei foi aprovado em segundo turno.

André Machado Maya, Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBRAPP.
Guilherme Rodrigues Abrão, Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Coordenador adjunto do Departamento Científico do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal – IBRAPP.

Como citar este artigo:
MAYA, André Machado e ABRÃO, Guilherme Rodrigues.O (futuro) novo código de processo penal: um código dos réus?In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 218, p. 12, jan., 2011.

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