segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Artigo: A relevância do comportamento da vítima no Direito Penal: novos caminhos

Renato Silvestre Marinho

O direito penal apresenta sentido histórico, acompanhando as alterações da cultura e dos valores na sociedade.(1)
Passamos de uma sociedade industrializada a uma sociedade pós-industrializada, denominada sociedade de risco.(2) Abundância de informações, desenvolvimento tecnológico, novas formas de interação entre as pessoas. Transformações nas relações da sociedade geralmente exigem mudanças de paradigmas no direito, mormente no direito penal, concebido como forma de controle social.
O direito penal deve, portanto, acompanhar todas essas evoluções sociais, sob pena de mergulhar-se em uma crise de legitimidade e de identidade. Surge daí a necessidade de enfrentamento de diversas questões, do surgimento de novas teorias e até mesmo do desenvolvimento de um novo sistema jurídico-penal.
Dentre essas questões, coloca-se o papel da vítima inserido na teoria do delito. O fato em tese criminoso, como fenômeno sócio-jurídico, envolve sempre um ou mais sujeitos ativos – autores e partícipes – e um ou mais sujeitos passivos – vítimas. Dentre a infinidade de possibilidades de interação entre autor e vítima, são inúmeras as situações em que a vítima, portadora do bem jurídico, contribui de forma decisiva para a ocorrência da lesão ou do perigo de lesão a este bem.
No exemplo em que A, querendo chegar de qualquer modo a determinado lugar, insiste para que B, condutor do veículo, desobedeça a um sinal luminoso de trânsito. Embora relute a princípio, B acaba cedendo aos insistentes apelos de A, vindo a colidir o veículo e produzir lesões neste passageiro. Deve B ser punido pelas lesões em A?(3) Ou no caso em que C vende heroína a D. Os dois sabem que a injeção de certa quantidade de tóxico gera perigo de vida, mas assumem o risco de que a morte ocorra. C o faz, porque o que lhe interessa é principalmente o dinheiro, e D, por considerar a sua vida já estragada e só suportável sob estado de entorpecimento. Deve C ser punido por homicídio cometido com dolo eventual, na hipótese de D realmente injetar em si a droga e, em decorrência disso, morrer?(4) E, ainda, na situação em que um motorista, transitando com descuido pela esquerda, vem a matar um suicida que se joga sob as rodas de seu carro, deve o motorista ser punido pelo crime de homicídio culposo?(5)
Para a solução de casos como esses, qualquer tentativa de estruturação jurídica do delito deve, necessariamente, compreender o fenômeno do crime tomando, como eixo central, não só o comportamento do autor, como também o da vítima.
Historicamente, após viver sua “Idade de Ouro” nos tempos primitivos, a vítima foi relegada a segundo plano com a assunção do poder punitivo pelo Estado, e somente nos últimos tempos vem sendo redescoberta.(6)
Nesse cenário, para solucionar casos em que a vítima contribui para o resultado lesivo, a dogmática penal recorreu (e ainda recorre), tradicionalmente, à figura do consentimento do ofendido,(7) às noções de previsibilidade ou de evitabilidade do resultado presente nos delitos culposos e aos mandamentos do concurso e da compensação de culpas.(8)
Todavia, segundo o pensamento mais recente de uma vertente da dogmática penal, essa perspectiva tradicional vem se mostrando insuficiente e inadequada para regular todas as situações em que há uma interação especial entre autor e vítima, sobretudo face às novas exigências da sociedade do risco, fato que poderia resultar em soluções desastrosas para determinados casos jurídico-penais.
Nesse contexto, no âmbito do sistema funcionalista penal, segundo o qual todas as categorias do delito devem ser construídas tendo em vista a função do direito penal, destaca-se o surgimento da teoria da imputação objetiva, criada e desenvolvida pelo professor alemão Claus Roxin, aproximadamente em 1970, apoiando-se nas ideias de Larenz e Honig e na filosofia jurídica de Hegel. Conferindo ao tipo objetivo uma importância muito maior da que ele até então tinha, tanto na concepção causal como na final, Roxin acrescenta-lhe novos critérios essencialmente normativos, não se contentando mais com a causação meramente natural. De forma bastante simplificada, diz a teoria da imputação objetiva de Roxin, trabalhando com uma teoria do risco e norteada pela função do direito penal de proteção de bens jurídicos (funcionalismo teleológico), que um resultado só deve ser imputado ao agente como obra sua, e preenche o tipo objetivo, unicamente quando o seu comportamento cria um risco não permitido para o objeto da ação, quando o risco se realiza no resultado concreto e este resultado se encontra dentro do alcance do tipo.(9-10)
Com repercussões principalmente nos delitos culposos, a teoria da imputação objetiva, ao menos em suas linhas substanciais, vem ganhando cada vez mais espaço, sobretudo na Europa. Entre seus defensores, existem opiniões diversas a respeito de vários problemas individuais e até mesmo acerca de seus elementos estruturais. Dentre eles, destaca-se o professor Günther Jakobs, também de nacionalidade alemã, que baseia sua teoria da imputação, orientada pela função do direito penal de estabilização do ordenamento (funcionalismo sistêmico), na violação de um papel que cada pessoa assume na sociedade. Jakobs ressalta que apenas caberá a imputação objetiva quando o agente violar o seu papel social, edificando sua teoria da imputação sobre quatro instituições: risco permitido; princípio da confiança; proibição de regresso; competência ou capacidade da vítima.(11)
Cumpre destacar que tanto Roxin quanto Jakobs trabalham, cada um à sua maneira, com uma série de subconceitos, tais como: incremento do risco; diminuição do risco; princípio da confiança; princípio da autorresponsabilidade; fim de proteção da norma; modelos de riscos. Dessa forma, como uma de suas principais conquistas, acabam por redescobrir a relevância do comportamento da vítima para a tipicidade.(12)
Para se ter uma ideia da utilização desses subconceitos em casos reais, vale transcrever a ementa do leading case da jurisprudência alemã, o qual, adotando critérios da teoria da imputação objetiva, destaca o comportamento da vítima como causa excludente da imputação:
“Autocolocações em perigo queridas e realizadas de modo auto-responsável não estão abrangidas no tipo de um delito de lesões corporais ou homicídio, ainda que o risco a que a vítima conscientemente se expôs se realize. Quem apenas provoca, possibilita ou facilita uma tal autocolocação em perigo não é punível por delito de lesões corporais ou homicídio”.(13)
Na América Latina, destaca-se o pensamento do professor argentino Eugênio Raúl Zaffaroni, que, considerando que a função do direito penal é reduzir a intervenção do poder punitivo (funcionalismo redutor), critica as teorias da imputação objetiva de Roxin e Jakobs e desenvolve uma teoria da tipicidade conglobante, asseverando que só há tipicidade penal quando constatada a lesividade de um comportamento e a sua pertinência a um agente. Zaffaroni introduz a teoria do risco na concepção conglobada da norma e, no que se refere ao comportamento da vítima, trabalha com conceitos como acordo ou assunção do risco por parte do sujeito passivo.(14)
Outra forma de consideração do comportamento da vítima, ainda no âmbito da teoria do delito, é a chamada vitimodogmática, que consiste em uma regra de interpretação ou princípio segundo o qual o direito penal não está legitimado a intervir quando a vítima puder exigivelmente autoproteger-se.(15)
De certa forma, o desenvolvimento da dogmática penal representa a tentativa de esclarecer algumas questões fundamentais: é legítima a intervenção penal quando a vítima contribui de modo significativo para o resultado de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico? Considerando a atual sociedade de risco, pode-se afirmar que os critérios oferecidos tradicionalmente são suficientes para regular tal situação? Que proteção deve merecer um bem jurídico cuja tutela não interessa ao seu único titular, seja porque ele próprio o coloca em perigo, ou porque renuncia à sua proteção? E, neste ponto, quais os limites do direito penal em um Estado Democrático de Direito?
O desafio que se apresenta ao operador do direito é, pois, o de buscar respostas a essas questões, avaliando quais critérios devem ser utilizados em uma sociedade de risco para que se produza uma solução adequada aos casos jurídico-penais nos quais a vítima contribui decisivamente para o resultado de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.


Notas

(1) REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. São Paulo: RT, 1998, p. 13/18.
(2) Sobre a sociedade do risco: BECK, U. La sociedad del riesgo – Hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998.
(3) TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
(4) ROXIN, Claus. A teoria da imputação objetiva. Em: Estudos de direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 101/131.
(5) CEREZO MIR, J. citado por: REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1, p. 241.
(6) OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt. A vítima e o direito penal. São Paulo: RT, 1999.
(7) No Brasil, o consentimento do ofendido é utilizado, quase sempre, como causa supralegal de excludente de ilicitude, enquanto na Itália, por exemplo, é previsto expressamente no Código Penal (art. 50).
(8) Fundamentais sobre o tema: PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido: na teoria do delito. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2001; e CANCIO MELIÁ, Manuel. Conducta de la victima e imputación objetiva em derecho penal. Barcelona: Bosch, 2001.
(9) ROXIN, Claus. A teoria da imputação objetiva. Em: Estudos de direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 101/131.
(10) Miguel Reale Júnior, apesar de adotar uma postura crítica em relação ao funcionalismo, reconhece que “algumas das contribuições da teoria da imputação objetiva possam ser adotadas dentro de uma visão finalista”, sendo tal construção, sobretudo nos crimes culposos, “relevante em uma sociedade de riscos como a pós-industrial” (Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 1, p. 128, notas 9 e 10).
(11) JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. São Paulo: RT, 2000.
(12) GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 62.
(13) BGHSt 32, p.262 e SS, citado em: GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 63/64. Interessante notar, ainda, que o direito penal alemão, ao contrário do brasileiro, não pune a participação em suicídio.
(14) ZAFFARONI, Eugenio Raul; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2002.
(15) GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 68/69. Greco refere-se a autores como Bernd Shunemman e Jésus-Maria Silva Sanchez.

Renato Silvestre Marinho

Graduado em Direito pela UFMG. Especialista em Ciências Penais pela PUC-Minas. Mestrando em Direito Penal pela USP. Advogado.


MARINHO, Renato Silvestre. A relevância do comportamento da vítima no direito penal: novos caminhos. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 215, p. 12-13, out., 2010. 



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