quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Artigo: A temática da lavagem de capitais e o recebimento de honorários por parte do advogado criminalista

Rodrigo Sánchez Rios



Instigado por fatos provenientes da praxis advocatícia, faz-se necessária a elaboração de uma reflexão teórica capaz de estabelecer um enlace entre a normativa da lavagem de capitais e o exercício da defesa criminal em favor do denunciado acusado de incorrer na figura típica desse diploma legal. O ponto essencial dessa relação está na controvérsia a respeito da amplitude do tipo penal do branqueamento(1) e o recebimento de honorários pela prestação de serviços advocatícios. Apontado o cerne da problemática, busca-se uma explicação jurídico-penal para a compreensão ou não da atipicidade da conduta praticada pelo causídico. Contudo, o trajeto a ser percorrido requer a devida compreensão das razões de política criminal que estão na base da criação do delito de lavagem, antes mesmo de se ensaiar uma resposta eminentemente dogmática com base nos enunciados da Lei 9.613/98.

Uma das primeiras constatações em relação ao objeto de estudo é atestar o caráter transnacional do delito de lavagem, o qual traz consigo uma mudança de pensamento decorrente da efetiva internacionalização do Direito penal. Neste terreno, diversos diplomas normativos internacionais passaram a ser referenciais obrigatórios, nem sempre, porém, recepcionados com um espírito crítico em nosso sistema legal ou na própria legislação comparada. Na profusa produção legislativa em matéria penal, o Projeto de Lei 209/2003 retrata a dinâmica do movimento da ordem legal nacional em direção ao controle do branqueamento de capitais, com repercussão direta nas categorias de imputação da figura típica, nas consequências do delito, nas disposições processuais, na eleição dos bens sujeitos a medidas assecuratórias, nos agentes públicos e privados envolvidos na política de prevenção, entre outras.

Em meio a este cenário o discurso parece simples, ou seja, a política criminal é destinada a prevenir a reciclagem dos ativos ilicitos e a intenção normativa tem o escopo de retirar todos os ganhos decorrentes da prática do ilícito, visando impedir o reingresso do capital espúrio ao mercado regular. Com esse fim, no âmbito preventivo, inegavelmente resta justificada a inserção do sistema bancário e de agentes financeiros, comprovando-se a adoção uniforme de medidas internacionais por diversos países signatários dos compromissos assumidos a partir da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena), bem como das subsequentes diretrizes internacionais. Todavia, os mecanismos de controle até o momento adotados têm exigido uma maior colaboração de outras entidades privadas, sensíveis ao possível contato com agentes branqueadores de capitais. Neste caso, contadores, corretores imobiliários, tabeliães, agentes que atuam no comércio de jóias e de artes e profissionais do direito acabaram por ser incluídos nas Diretrizes e Recomendações orientadas à prevenção da lavagem de dinheiro.

Especificamente em relação à eventual inserção da classe dos advogados na política preventiva, a reflexão resta centralizada no alcance dos diversos documentos internacionais que circundam e traduzem a problemática. Nessa ordem, a proposta das orientações coerentemente assenta-se na nítida separação entre a atividade consultiva e a contenciosa no exercício da advocacia. Quanto à atividade contenciosa, os enunciados da política criminal são transparentes em requerer a exoneração plena do advogado atuante em total harmonia com suas prerrogativas funcionais. A mesma assertiva não encontra idêntico resultado na área consultiva, sobretudo quando se enfocam as especialidades do direito societário e do tributário,(2) e principalmente diante da primeira manifestação jurisprudencial de uma alta Corte Europeia, que considerou legalmente admissíveis as Diretrizes no caso da imposição aos advogados de obrigações de informação e de colaboração com as autoridades responsáveis pela luta contra o branqueamento.(3)

Nessa senda e tendo como referenciais as disposições internacionais as quais serviram de impulso às legislações penais internas para combater o fenômeno da lavagem de capitais, encontrar-se um consenso por parte da doutrina no tocante à justificativa da convocação de instituições e agentes financeiros entre outros particulares na política de prevenção. Não obstante permaneça uma certa divergência acerca do aumento no rol de agentes privados e classes submetidas às estratégias de controle à reciclagem de dinheiro, residirá a maior discordância na figura dos advogados, pois o dever especial de diligência e de comunicação de operações suspeitas por parte destes profissionais deturparia o papel que lhes está constitucionalmente previsto, lesando os princípios do sigilo e da independência profissional.

Uma das questões mais significativas reside em determinar até onde compete conhecer a destinação que será dada pelo cliente ao serviço prestado. Na linha da indagação proposta por Gomez-Jara, deverá se refletir sobre até onde cabe a um advogado conhecer o destino a ser dado pelo cliente à sociedade constituída por meio da sua assessoria legal. Este autor vai mais longe, ao afirmar que a normativa internacional (principalmente as Diretrizes Europeias) em matéria de prevenção modifica o rol de deveres profissionais, surgindo deveres positivos que ultrapassam o nenimen laedere.(4) Os deveres de comunicação e, em certos casos, de denúncia impostas pela legislação extrapenal deverão ter uma solução adequada ao objetivo de não alterar os vetores da Política criminal direcionados ao delito de lavagem. 

No concernente à política preventiva, o legislador pátrio, por razões alheias a uma política jurídica racional, inicialmente não conseguiu separar o papel do advogado como alvo das medidas impositivas do dever de vigilância – restrito ao âmbito consultivo – do profissional que exerce a função de defensor do agente acusado do delito de lavagem. Essa falta de esclarecimento acerca da eventual função do advogado na política de prevenção ao branqueamento de capitais e do profissional no exercício de uma missão de defesa ou representação em juízo acabou dando margem a Projetos de Lei (6.413/2005) que ostensivamente afrontavam garantias constitucionais, entre elas a da presunção de inocência e a da ampla defesa, chegando-se às raias da insensatez ao se cogitar a imposição de advogados dativos para os acusados do crime de lavagem, sob a descabida alegação de que a remuneração do profissional livremente escolhido pelo acusado dar-se-ia com recursos maculados oriundos do delito antecedente.

Quanto à participação do profissional na atividade contenciosa, a doutrina penal não mediu esforços para externar críticas à técnica de tipificação utilizada,(5) a qual abrange, numa interpretação literal em razão da amplitude do tipo, as condutas socialmente adequadas, entre elas a do recebimento de honorários maculados por parte do advogado. Praticamente, poderá se atestar um descompasso entre a pretensão da política criminal do catch the money e as categorias delitivas configuradoras do injusto punível, principalmente nestas últimas, pois é com os postulados da imputação objetiva que deverão ser compreendidas e sistematizadas essas categorias. Sob a unidade sistêmica entre a política criminal e a dogmática jurídico-penal nos moldes da proposta de Roxin é possível encontrar uma interpretação restritiva do tipo penal da lavagem excludente da figura do defensor. 

Uma das respostas advindas da doutrina é saldo dos estudos em torno das condutas neutras,(6) socialmente adequadas ou standard. Tem havido a devida reflexão teórica em traçar linhas concretas de diferenciação junto ao instituto da cumplicidade, além de identificar no tipo – especificamente no seu aspecto objetivo – a categoria de imputação passível de constatar a existência de sentido delitivo ou se a conduta do autor não supera os limites do risco permitido. Tais conclusões permitem um traslado conceitual ao campo da atividade dos advogados e do recebimento de honorários maculados. A invocação aos postulados da imputação objetiva deverá conferir uma prévia análise tanto das incoerências do critério da causalidade quanto das parciais e insuficientes percepções derivadas dos critérios ontológicos.

Com esses pressupostos teóricos definidos – e ciente das determinações oriundas dos documentos internacionais, que tendem a influenciar a configuração do tipo da lavagem nos seus elementos objetivos e subjetivos – é viável uma análise do injusto punível da lavagem. É possível aferir que um dos temas expressivos de dissonâncias na doutrina envolve a abrangência do elemento subjetivo e da pertinência do dolo eventual. O resultado de uma maior normatização do aspecto objetivo esvaziaria o elemento volitivo do tipo, refletindo-se nas modalidades do dolo. 

Retirar o manto de punibilidade da atividade do advogado em razão do recebimento de honorários supostamente maculados, merecem especial atenção as propostas ofertadas pela doutrina penal para conferir uma exegese restritiva ao tipo da lavagem. As teses aglutinam-se em torno da categoria da tipicidade, que reúne, seja sob a perspectiva objetiva, seja pela via do dolo, os mais variados posicionamentos teóricos. Adstritos à orientação objetiva, elencam-se: a teoria da adequação social – considerada tradicionalmente o primeiro tópico explicativo das condutas neutras; o critério da redução teleológica do tipo da lavagem; e formulações com maior matiz político-criminal, que propagam ser penalmente irrelevante a conduta do advogado ao receber honorários independentemente do valor ou da forma de pagamento, incorrendo na tipicidade unicamente a hipótese dos “honorários fingidos ou simulados”. Na perspectiva subjetiva, ou melhor, na denominada solução do dolo, o enunciado é cristalino: a conduta do advogado será sancionada penalmente quando conhecer a origem delitiva do dinheiro recebido a título de honorários. Significa a aplicabilidade exclusiva da modalidade do dolo direto. 

De forma sintetizada, assevera-se que uma atuação pautada no cumprimento das regras deontológicas da profissão, atinentes à normativa extrapenal referente às suas prerrogativas, capaz de demonstrar a inexistência de qualquer liame de instrumentalidade com a conduta do agente do delito principal, revela-se suficiente para se interpretar restritivamente a figura típica da lavagem, optando-se pela solução do tipo objetivo e defendendo-se a atipicidade da conduta conforme o magistério de Perez Manzano.(7)


Notas
(1) Os termos lavagem e branqueamento são aqui usados como sinônimos. O termo branqueamento é largamente utilizado na legislação portuguesa.
(2) Vide as Diretrizes da União Européia, 2001/97/CE, de 4 de dezembro de 2001; a de 2005/60/CE, de 26 de outubro de 2005 e as Quarenta Recomendações do GAFI, de 20 de Junho de 2003, para o combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
(3) Vide acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias no processo C-305/05, Luxemburgo, 26 de junho de 2007.
(4) GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. El criterio de los honorarios profesionales bona fides como barrera del abogado defensor frente al delito blanqueo de capitales: Un apunte introductorio, p. 218 e 219. In Política criminal y Blanqueo de capitales. Marcial Pons, Madrid, 2009.
(5) Vide, por exemplo, as críticas de BAJO FERNANDEZ in Prólogo a obra Política Criminal y Blanqueo de Capitales, p. 7. Marcial Pons, Madrid, 2009.
(6) GRECO, Luís. Cumplicidade através de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
(7) PÉREZ MANZANO, Mercedes. Los derechos fundamentales al ejercicio de la profesión de abogado, a la libre elección de abogado y a la defensa y las “conductas neutrales”. La Sentencia del Tribunal Constitucional alemán de 30 de marzo de 2004. In Homenaje al Profesor Dr. Gonzalo Rodríguez Mourullo. Navarra: Civitas, 2005.

Rodrigo Sánchez Rios
Doutor em Direito penal pela Universidade de Roma “La Sapienza”. Professor de Direito Penal da graduação e do PPGD da PUCPR. Advogado Criminalista.

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