quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Artigo: Banco de dados genéticos para fins criminais: implicações de um debate hodierno

O ácido desoxirribonucleico (ADN) é o material genético nuclear dos seres humanos e está presente em todas as células do nosso organismo. É ele que determinada a função de cada célula, dando assim a cada indivíduo suas características, que podem ou não manifestarem-se ao longo de sua vida. Constitui-se por duas cadeias de nucleotídeos que se enrolam formando uma dupla hélice. Os nucleotídeos, por sua vez, são unidades moleculares compostas por um grupo fosfato, um açúcar e uma base nitrogenada. Como o ADN determina as características de cada indivíduo, fazendo com que haja uma individualização, e corroborado pelo fato de estar presente em qualquer fluído ou resíduo humano, sua aplicação como prova forense está justamente na comparação entre as amostras biológicas colhidas na cena do crime com as do(s) suspeito(s). A comparação destes perfis genéticos poderá determinar a inocência, se forem diferentes, ou a culpabilidade do(s) mesmo(s), se forem iguais. 

O presente trabalho versa sobre uma das consequências do desenvolvimento científico que envolve a tecnologia do ADN, uma das vedetes da atualidade: banco de dados genéticos. Ele pode ser constituído de distintas formas e para diferentes finalidades, sendo uma objeto desse estudo, o feito para a identificação criminal. Um banco de ADN pode ser entendido como um conjunto estruturado de resultados de testes de análise da ADN, que se conserva materialmente em registros manuais ou numa base de dados informatizada (Moniz, 2002; Europa, 1992).

Pode-se ter uma base de dados de ADN a partir, resumidamente, de dois diferentes critérios: de pessoas identificadas ou de amostras de pessoas desconhecidas. 

Muitos países já utilizam esta ferramenta hodiernamente. Os EUA foi o primeiro país a discutir o uso de tal ferramenta, em 1989, e o primeiro a se programar em escala nacional, em 1994, com o conhecido CODIS – Combined DNA Index System. No âmbito europeu, observaremos que o vestíbulo das primeiras discussões se iniciou em meados da década de noventa do século passado.

Um banco de dados genéticos para fins criminais pode ser visto num primeiro momento como uma ferramenta extraordinária no combate à impunidade, uma vez que pode acabar resolvendo casos onde o único vestígio do crime é uma amostra biológica do autor deixada na cena do crime. 

Atualmente, os principais debates envolvendo esta ferramenta de investigação criminal giram em torno do armazenamento dos perfis, nomeadamente a quem vai ter seu ADN submetido, se somente os condenados ou se também os suspeitos de algum crime, e sobre o tempo em que a amostra permanecerá no banco de dados para consulta, se de forma indeterminada ou por um período limitado pela legislação.

Nesse diapasão, o Reino Unido e os EUA levantam algumas discussões quanto aos seus aspectos prático-jurídicos. Em recente entrevista em um programa televisivo, no mês passado, o presidente norte-americano Barack Obama anunciou o incremento de uma prática relativamente nova no uso do CODIS, mas, por outro lado, de aplicação legal questionável em grande parte dos países desenvolvidos: tomar e manter amostras de ADN de indivíduos presos por um crime, mas não condenados. Ou seja, colocando ADN de pessoas inocentes em bases de dados criminais. O presidente justificou sua afirmação com base no fato de esta ser uma prática comum no Reino Unido desde a implementação de seu sistema, na década 1990, e que a identificação por ADN não se diferencia da feita por impressão digital ou por uma foto.

Contudo, esta é uma política muito criticada pelos defensores dos direitos humanos. Inclusive, cabe ressaltar que o próprio Reino Unido fora condenado, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), por unanimidade, em 2008, pela sua política de manter amostras genéticas de presos após sua libertação, por violação ao direito à vida privada e familiar codificada pela Convenção Européia dos Direitos do Homem. No momento da decisão, o banco de dados do Reino Unido incluía mais de 4,5 milhões de perfis de ADN – mais de 5% de sua população, sendo que, um quinto desses perfis foi retirado de pessoas sem antecedentes criminais (European court of human rights in S and Marper v. The United Kingdom, 2008).

Tal condenação, por certo, forçou o Reino Unido a realizar uma mudança em seu ordenamento jurídico, retroagindo um pouco em suas práticas abusivas, uma vez que a nova Crime and Security Act 2010, que entrou em vigor no início de abril deste ano, prevê um limite temporal de seis anos para a permanência dos perfis de suspeitos ou presos não condenados. Esta foi a resposta do Reino unido ao TEDH.

Por certo, as chances de duas pessoas apresentarem o mesmo perfil genético são de uma em um milhão e que, quanto mais perfis o banco abarcar, maiores serão as chances de se ocorrer uma identificação de suspeito. Até porque, o próprio aspecto parental acaba, muitas vezes, otimizando o banco de dados genéticos, possibilitando a inclusão de suspeitos que sequer compõem o banco de dados, já que os perfis entre os membros de uma mesma hereditariedade apresentam certa similaridade (Romeo Casabona, 2002).
Portanto, o tema em tela, quiçá por sua incipiência, é carente de literatura especializada nacional, o que traz, assim, mais instigações em sua abordagem. Sua importância, por outro lado, eleva-se ainda mais se considerados os canais de debates no cenário internacional: são mais de dez anos de discussões legislativas e doutrinárias que fomentaram diversos documentos e normas internacionais.

Não há, em nosso ordenamento jurídico, legislação pertinente ao fomento de um banco de ADN, o que instiga a presente investigação, já que a vontade política em sua implementação cresce de forma gradativa, ainda mais se levarmos em conta o anúncio, em maio do ano passado, da assinatura do convênio internacional entre a Polícia Federal brasileira e o Federal Bureau of Investigation (FBI) americano, para o compartilhamento do CODIS com o governo brasileiro. Mais do que visível está a necessidade de se promover debates para tratar o assunto de forma séria.

Referências Bibliográficas

BAETA, Miriam; MARTINEZ-JARRETA, Begoña. Situación actual de lãs bases de datos de ADN en el âmbito forense: nuevas necesidades jurídicas. Revista de Derecho y Genoma Humano, v. 31, n. 2, 2009, p. 161-83
BRASIL. Departamento de Polícia Federal. Diário Oficial da União, Seção 3, Nº 110, sexta-feira, 12 de junho de 2009, p. 81.
CONSULADO DOS EUA NO RIO DE JANEIRO. FBI e Polícia Federal usam DNA para combater crime organizado. Disponível em: <http://virtual.embaixada-americana.org.br/salvador/?pg=1879>. Acesso em: 24 fev 2010
COPPER, William. The real DNA database dividing line. The guardian, 16 abril de 2010. Dispnível em: <guardian.co.uk>. Acesso em: 20 abr 2010
ESTADOS UNIDOS. Fbi. Codis: combined dna index system. Disponível em: <http://www.fbi.gov/hq/lab/html/codisbrochure_text.htm>. Acesso em: 02 out. 2008
EUROPA. Council of Europe. Commitee of Ministers. Recommendation No. R (92) 1, de 10 fevereiro 1992. On the use of analysis of desoxyribonucleic acid (dna) within the framework of the criminal justice system. Disponível em: <https://wcd.coe.int/com.instranet.InstraServlet?command=com.instranet.CmdBlobGet&InstranetImage=573811
&SecMode=1&DocId=601410&Usage=2
>. Acesso em: 16 set 2008
EUROPA. Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – TEDH. Case of S. and Marper v. The United Kingdom. Data de julgamento: 4 de dezembro de 2008. Disponível em: <
http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=S%20|%20Marper%20|%20v.%20|%20The%20|%20United%20|%20Kingdom
&sessionid=55899367&skin=hudoc-en
>. Acesso em: 15 abr. 2010.
MONIZ, Helena. Os problemas jurídico-penais da criação de uma base de dados genéticos para fins criminais. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n. 2, Coimbra: Coimbra, 2002.
MORA SÁNCHEZ, Juan Miguel. Aspectos sustantivos y procesales de la tecnologia del adn. Bilbao-Granada: Comares, 2001.
OBASOGIE, Osagie K. The dangers of growing DNA databases. Los Angeles Times, de 9 de abril de 2010. Disponível em: <
http://www.latimes.com/news/opinion/commentary/la-oe-obasogie9-2010apr09,0,1552372.story
>. Acesso em: 15 abr 2010.
REINO UNIDO. Crime and Security Act 2010. Chapter 17, de 8 de abril de 2010. Disponível em: <
http://www.opsi.gov.uk/acts/acts2010/pdf/ukpga_20100017_en.pdf
>. Acesso em: 15 abr 2010.
ROMEO CASABONA, Carlos Maria (ed). Base de datos de perfiles de adn y criminalidad. Bilbao-Granada: Comares, 2002

João Beccon de Almeida Neto

Mestrando em Ciências Criminais da PUC-RS. Bolsista pela CAPES. Pesquisador associado no Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais do Instituto de Bioética da PUC-RS.

ALMEIDA NETO, João Beccon de. Banco de dados genéticos para fins criminais: implicações de um debate hodierno. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 213, p. 16-17, ago., 2010.
 

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