domingo, 25 de julho de 2010

Artigo: O novo Código de Ética médica e o crime de omissão perante a tortura

A Constituição Federal (artigo 5.º, XLIII) condena a prática da tortura e a legislação ordinária a criminaliza de forma rigorosa (Lei 9.455/97). Não será incomum que o médico se encontre diante de situações de tortura perpetrada por órgãos públicos através de seus agentes, seja como atendente em hospitais, consultórios, clínicas e prontos-socorros, seja na qualidade de perito médico legista. Em qualquer circunstância, caber-lhe-á denunciar o caso às autoridades competentes para apuração e repressão. Também, obviamente, é vedado ao médico, como a qualquer pessoa, participar ou ser conivente com esse tipo de prática degradante do ser humano (vide Resolução CFM n. 1931/09 – Código de Ética Médica, Capítulo IV, artigo 25). O médico também estará, como todos os demais, sujeito a penas da Lei 9.455/97, caso pratique diretamente ou colabore de qualquer forma para a prática da tortura.
No entanto, há um dispositivo da Lei de Tortura que pode ocasionar certas dúvidas quanto a sua aplicabilidade aos médicos no exercício da profissão. A Lei 9.455/97 prevê cinco modalidades criminais de tortura em seu artigo 1.º, I, “a”, “b” e “c”, II e § 1.º, inclusive com formas qualificadas (§ 3.º) e causas de aumento de pena (§ 4.º). O médico poderá incidir normalmente como autor ou partícipe desses crimes de tortura quando perpetrá-los diretamente ou prestar colaboração a outrem em caso de concurso de agentes. Malgrado isso, a Lei de Tortura prevê em seu artigo 1.º, § 2.º, um crime que se convencionou chamar de “Omissão perante a tortura”, o qual não constitui propriamente uma espécie de crime de tortura, mas somente uma figura criminal prevista na Lei 9.455/97 por questão de conveniência. Na realidade, o crime previsto no artigo 1.º, § 2.º, da Lei 9.455/97 constitui uma espécie de “Prevaricação” que excetuará o artigo 319 do CP por força do Princípio da Especialidade. A conduta ali descrita consiste em se omitir em face da prática de tortura todo aquele que tenha “o dever de evitá-la ou apurá-la”. Assim sendo, trata-se de um crime próprio, somente podendo cometê-lo pessoas que detenham especiais qualidades exigidas pelo tipo penal, quais sejam, aquelas que ostentam o dever de apurar ou evitar a tortura. Seriam então sujeitos ativos dessa conduta somente policiais civis e militares, delegados de polícia, juízes de direito, promotores de justiça, diretores de presídios, agentes penitenciários. O médico normalmente não poderia incidir nessa prática diretamente, pois que não seria pessoa incumbida da prevenção e muito menos da repressão à tortura. A questão que se põe com o advento do dispositivo do Código de Ética ora em estudo é que agora se erige em obrigação deontológica dos médicos a “denúncia” da tortura. O advento desse dispositivo pode levar a crer que os médicos passam a integrar o rol de sujeitos ativos do crime próprio de “Omissão perante a Tortura” previsto na legislação respectiva. No entanto, tal conclusão não parece ser a mais correta. É necessário considerar que o tipo penal obriga aqueles que têm o dever jurídico de “evitar e apurar” a tortura, nada mencionando acerca dos que ostentem o dever de “denunciar”, que é o verbo reitor do artigo 25 do Código Deontológico. Assim sendo, o advento do Código de Ética Médica não altera a responsabilização criminal do médico por infração à Lei de Tortura, como poderia parecer numa análise açodada da matéria.

Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia; Mestre em Direito Social; Pós-graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal e Criminologia na graduação e na pós-graduação da Unisal e membro do Grupo de pesquisa de bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O novo código de ética médica e  crime de omissão perante a tortura. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 01-02, jul., 2010.

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