sexta-feira, 30 de julho de 2010

Artigo: Delação premiada: matiz política ou utilitarista?

A delação é a imputação que o acusado de um crime efetua, sem se desonerar da responsabilidade pelo fato, em detrimento de seu(s) comparsa(s) na empreitada delituosa, culminando na descoberta de outro ou outros crimes.(1) No particular da delação premiada, ao delator é dada uma recompensa (crownwitness) pelas informações prestadas.
Originalmente, a delação premiada foi utilizada nos Estados Unidos da América, em primeiro lugar, no combate contra a Cosa Nostra.(2) Posteriormente, o governo americano, especialmente nas décadas de 80 e 90 do século passado, passou a adotar amplamente o referido instituto na luta contra o terror, objetivando desmantelar os planos criminosos e impedir o cometimento de atos como os que foram praticados contra as torres gêmeas, em Nova Iorque, e contra o Pentágono, em Washington.
No Brasil, a seu turno, o pioneirismo legislativo relacionado à delação premiada ficou a cargo da Lei 8.072/1990, e, posteriormente, com o advento das Leis 9.034/1995 (art. 6º), 9.613/1998 (art. 1º, § 5º), 9.807/1999 (arts. 13 e 14) e 11.343/2006 (art. 41). Contudo, a ampla adoção do instituto em análise no combate a atos de terrorismo distancia-se da realidade tupiniquim, quer pela conjuntura social, quer pela mens legis com a qual o legislador se pautou.
Pois bem. O agrupamento de pessoas que se dedica a atos de terrorismo possui um matiz eminentemente ideológico: o movimento busca, pela via oblíqua da violência, a desestabilização dos pilares sob os quais a ordem jurídica do Estado contra o qual se insurgem está calcada. Logo, o movimento terrorista é, acima de tudo, político. Por tal motivo, a entrada de novos membros, bem como a manutenção dos já existentes, liga-se a um critério de crença político-ideológica, eventualmente de cunho religioso, circunstância que, por si só, torna mínimo, ou quase nulo, o sentimento de arrependimento pelos atos violentos praticados. Ao contrário, o agente acredita que a única maneira de mudar a realidade social na qual está inserido é o cometimento daqueles atos.
O Estado, por sua vez, não consegue fazer frente a atos tais, porquanto o corpo normativo vigente é exatamente aquele ao qual os recalcitrantes buscam derrocar. De fato, afigura-se improvável que o destinatário da norma curve-se ao seu comando se, em seu íntimo, discorda diametralmente das bases axiológicas e/ou filosóficas que sustentam sua gênese.
Todavia, a utilização de via tão tormentosa quanto a delação possui uma incompatibilidade axiológica. O Direito deve sempre se pautar pela ética. Não aquela moralista, mas a que prima por um senso universal de equidade, de lisura nas relações.(3) Ora, a partir do momento em que o Estado estimula atos de traição, como no caso da delação premiada, emana ele um comando direto para toda a sociedade: “Seja um traidor e receba um prêmio!”(4)
Contudo, a delação premiada, em que pesem os problemas relacionados à ética com a qual o Direito deve se pautar, apresenta-se como o mal necessário nos casos de combate ao terrorismo.(5) A única possibilidade de convencer o recalcitrante a trair o grupo a que pertence é apostar na desestabilização daquelas bases políticas ou religiosas, oferecendo, posteriormente, a recompensa da não punição pelo auxílio na captura e desmantelamento de todo o esquema voltado à completa destruição da ordem jurídica posta.(6)
Note-se, ainda que a delação do agente repercuta na seara penal e processual penal, porquanto existirá processo para a aplicação de sanção aos demais integrantes, o interesse precípuo na destruição do grupo é de matiz política. Interessa para o Estado a manutenção das instituições e da ordem jurídica vigente. Nesse campo, então, poder-se-ia aceitar a recompensa ao delator pelos préstimos ao Estado, porquanto antes de se estar travando uma luta entre norma e seus violadores, está em jogo uma luta política pela sobrevivência da ordem constituída.
Contudo, o legislador brasileiro, ao contrário do enfoque dado pelo estadunidense, pretende se utilizar da delação premiada como amplo meio de prova para qualquer espécie de crime, fato que, com a devida vênia dos que acreditam de maneira diversa,(7) não pode ocorrer, sob pena de se solapar toda a essência do Estado Social e Democrático de Direito.
Ora, aquelas pessoas que, conjuntamente, cometem crimes, não estão unidas por qualquer vínculo ideológico ou político. Ao contrário, visam, com o conluio, minimizar a possibilidade da ocorrência de falhas no cometimento do delito e maximizar o proveito econômico dele advindo. Nesse contexto, a permissão para que uma delas se valha da delação premiada não possui qualquer cunho político, avalizando apenas que o criminoso busque amenizar sua pena(8) por meio de um expediente aético e, para o Estado, eminentemente utilitário.(9)
De mais a mais, ao Estado não é permitido transferir o ônus de apurar o cometimento de crimes para a delação de quem os comete, oferecendo como contrapartida uma benesse punitiva. No momento em que a Ele foi dado o monopólio da persecutio criminis, é necessário que se aparelhe para obter êxito em tal tarefa. Seu insucesso não pode, em qualquer hipótese e sobre qualquer pretexto, ser compensado com barganhas para a elucidação de crimes. Eis os fatos: delação premiada? Somente para casos excepcionais!


Notas
(1) Neste sentido, Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, os quais afirmam que “ocorre a chamada delação premiada quando um acusado não só confessa sua participação no delito imputado (isto é, admite sua responsabilidade), senão também delata (incrimina) outro ou outros participantes do mesmo fato, contribuindo para o esclarecimento de outro ou outros crimes e sua autoria” (GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/1995) e político-criminal. São Paulo. 1995. Revista dos Tribunais, p. 131-132).
(2) Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha afirma que, nesta oportunidade histórica, “por via de uma transação de natureza penal, firmada pelos Procuradores Federais e alguns suspeitos de militância criminosa, a estes era prometida a impunidade desde que confessassem sua participação e prestassem informações que fossem suficientes para atingir toda a organização e seus membros. Estes últimos, além de confessarem sua participação criminosa, prestavam as informações necessárias para o envolvimento, prisão e condenação dos outros participantes. Eram confitentes, informantes e colaboradores. Havia a confissão, a delação, os esclarecimentos sobre a organização e seus membros e, como prêmio, o que era plenamente possível pela legislação americana, a promessa de impunidade, a mitigação da pena ou a exclusão do processo” (CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. de. Da Prova no Processo Penal. 7ª ed. São Paulo. 2006. Saraiva, p. 136).
(3) “O Direito, como experiência humana, situa-se no plano da Ética, referindo-se a toda a problemática da conduta humana subordinada a normas de caráter obrigatório” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 14ª ed. São Paulo. 1991. Saraiva, p. 37).
(4) GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Op. cit., p. 133.
(5) Note-se, aliás, as palavras de Alberto Silva Franco que, sem comungar a tese de um direito penal de exceção, ou um direito penal do inimigo, afirma que “ninguém questiona, os países em que a legislação antiterror adotou a delação premiada, sua eficácia na redução de ações terroristas” (FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 6ª ed. São Paulo. 2007. Revista dos Tribunais, p. 336).
(6) É fato certo que a delação premiada deu, “no campo da subversão política, uma contribuição essencial para a derrota das maiores organizações terroristas que operavam no país e para a salvação das próprias instituições democráticas” (MADDALENA, Marcelo. Enciclopedia del Diritto. Milão. 1987. Giuffrè. vol. XXXVII, p. 767-769, apud FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p 336).
(7) Pontuando pela possibilidade de aplicação da delação premiada, Guilherme de Souza Nucci afirma: “A rejeição à idéia da delação premiada constituiria um autêntico prêmio ao crime organizado e aos delinquentes em geral, que, sem a menor ética, ofendem bens jurídicos alheios, mas o Estado não lhes poderia semear a cizânia ou a desunião, pois seria moralmente aceitável” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 945).
(8) “Se um terrorista, por denunciar sua organização recebe a título de compensação pelo abandono de seu projeto subversivo, ou mesmo pela renúncia à violência, como meio de expressão da discrepância política, um prêmio punitivo, o membro de agrupamento mafioso não tem ideologia a abandonar e o delinqüente econômico não se considera, a si próprio, um criminoso que tenha necessidade de arrependimento ou de favorecimento punitivo” (FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., p. 336).
(9) “Dá-se o prêmio punitivo por uma cooperação eficaz com a autoridade, pouco importando o móvel real do colaborador, de quem não se exige nenhuma postura moral, mas, antes de tudo, uma atitude eticamente condenável” (idem, ibidem).

Tiago de Souza Nogueira

Pós-graduando em Ciências Penais pela rede LFG-IPAN. Advogado em São Paulo.

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NOGUEIRA, Tiago de Souza. Delação premiada: matiz política ou utilitarista? In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 211, p. 01-02, jul., 2010.  
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