quarta-feira, 2 de junho de 2010

O DIREITO POR QUEM O FAZ – Prisão em contêiner. Desrespeito escancarado à dignidade da pessoa humana. Concessão de HC com extensão a todos na mesma condição

Nilson Naves


Superior Tribunal de Justiça
6ª turma - HC 142.513
j. 23.03.2010 - acórdão pendente de publicação.
Relatório

“Em caso de prisão preventiva, sequencialmente a temporária, trazem os impetrantes, neste habeas corpus em favor de A. R. F., um dos quatro denunciados, as seguintes alegações, resumidamente:

Foi sustentado pelos impetrantes quanto a ilegalidade da prisão a total ausência de fundamentação da autoridade judicial para manutenção da custódia cautelar, posto que se vislumbra nos autos de origem (3ª Vara Criminal da Serra -ES), que a ilustrada Juíza de piso, ao decidir pela prisão preventiva do ora paciente, não fundamentou a sua decisão, como determina e exige o artigo 93, IX da CFRB, o que a macula de nulidade, tornando ilegal a prisão preventiva. (Despacho -sic - de fls. 131 - verso.) (…) Na decisão do juízo de origem da ação penal, atacada por meio de habeas corpus, não se pode cogitar que a manifestação judicial sobre a decretação e manutenção da prisão cautelar esteja fundamentada de forma objetiva, ou nos moldes do mesmo entendimento do Ministério Público. O Despacho de cunho decisório (como sustenta a 1ª Câmara Criminal do TJES) vem aos autos destituído de fundamentação legal capaz de limitar o direito à liberdade do ora paciente, porque se limitou apenas a decretar a prisão nas idênticas palavras do órgão acusador... Isso é inadmissível!!!’ (...)

O Subprocurador-Geral Vieira Bracks é de parecer pela denegação da ordem. (...)
Outras informações dão conta de que já foi proferida a sentença de pronúncia, e lá se manteve a prisão.

É de 10.2.10 a seguinte petição, resumidamente:

D. A. B. L. e outro, nos autos do Habeas Corpus nº 142.513/ES, impetrado em favor de A. R. F., em curso perante Vossa Excelência, vem em caráter de urgência, relatar a situação do paciente, que se encontra preso em um contêiner! (…) a) doente como se encontra (gastroenterite com desidratação), não tem condições de saúde de permanecer submetido a um encarceramento em contêiner de metal (!!!); (…) d) não vigoram as alegadas circunstâncias peculiares arguidas e invocadas para decretação de sua prisão em um contêiner de metal!

Determinei se requisitassem informações a tal respeito, e elas imediatamente me vieram nestes termos:

1. Segundo informações da Superintendência de Polícia Prisional do Estado do Espírito Santo, prestadas a este juízo por telefone, o paciente A. R. F. está preso no Centro de Detenção Provisória de Cariacica, onde é usado ‘contêiner’ com adaptações como cela, situação que é do conhecimento do Conselho Nacional de Justiça - CNJ e já resultou em reclamação contra o estado do Espírito Santo na ONU. 

2. Como não tive acesso às demais alegações do paciente, encaminho a V. Exa. íntegra da decisão que o pronunciou por homicídio qualificado de um adolescente e homicídio qualificado tentado contra outro menor. Há fortíssimos indícios de que o acusado, com auxílio de seus empregados, deteve e manteve as vítimas em cárcere privado para agredi-las fisicamente e psicologicamente e, então, mandou que seus empregados as matassem. A vítima fatal morreu por esgorjamento e a sobrevivente, depois de gravemente ferida à faca no pescoço, se fingiu de morta, o que permitiu que fugisse do local do crime e conseguisse relatar para as autoridades policiais os atos de extrema violência praticados por A. R. F. e seus comparsas. 

6. São as informações que reputo indispensáveis e, nos colocando a disposição de V. Exa. para complementá-las se necessário...’”.

É o relatório.
Voto

“O Exmo. Sr. ministro Nilson Naves (relator)É caso de extrema ilegitimidade; é caso de manifesta ilegalidade.

Sobretudo de manifesta ilegalidade. Como nos descreveu o relatório, estou aqui lhes falando, srs. ministros, da prisão à qual, são palavras dos impetrantes, falta efetiva fundamentação, e da prisão, são também palavras das últimas informações a nós prestadas, que está sendo cumprida num contêiner. Observem, Senhores, num contêiner. Num contêiner! Isso é impróprio e odioso, ou não é caso de extrema ilegalidade? É cruel, disso dúvida não tenho eu: entre nós, entre nós e entre tantos e tantos povos cultos, não se admitem, entre outras penas, penas cruéis (Constituição, art. 5º, XLVII). E a prisão cautelar nada mais é do que a execução antecipada de pena, tanto que um dos pressupostos da preventiva é a probabilidade de condenação (fumus boni iuris) – da condenação advém a aplicação de pena, da aplicação, a execução, etc. E, a propósito, computa-se, ‘na pena privativa de liberdade (...), o tempo de prisão provisória...’ (Cód. Penal, art. 42).

Limito-me, pois, neste momento, ao aspecto da prisão cumprida num contêiner e repito, a esse respeito, as informações da ilustre Juíza da comarca de Serra: (…)

Isso é humilhante e intolerável!

Pois se tal já resultou em reclamação, reclamo eu também. Reclamo e protesto veementemente, porquanto em contêiner se acondiciona carga, se acondicionam mercadorias etc.; lá certamente não se devem acondicionar homens e mulheres. Eis o significado de contêiner segundos os dicionaristas: ‘recipiente de metal ou madeira, ger. de grandes dimensões, destinado ao acondicionamento e transporte de carga em navios, trens etc.’; ‘cofre de carga’; ‘grande caixa (...) para acondicionamento da carga geral a transportar’.

Decerto somos todos iguais perante a lei, e a nossa lei maior já se inicia, e bem se inicia, arrolando entre os seus fundamentos, isto é, entre os fundamentos da nossa República, o da dignidade da pessoa humana. E depois? Depois, lá estão, entre os direitos e garantias fundamentais, entre os princípios e as normas, entre as normas e os princípios: (I) não há pena sem prévia cominação legal (então também não há de haver prisão sem previsão legal), por exemplo, prisão em contêiner; (II) não haverá, entre outras, penas cruéis; (III) assegura-se aos presos o respeito à integridade física e moral; (IV) assegura-se a todos o devido processo legal; (V) ninguém é culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (VI) a prisão ilegal há de ser imediatamente relaxada; e (VII) ninguém será levado à prisão quando a lei admitir a liberdade provisória. Podendo aqui me valer de tantos e tantos outros textos (normas nacionais e normas internacionais), quero ainda me valer de um, um da Lei de Execução Penal, o do art. 1º: ‘A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado’.

Se assim é – e, de fato, é assim mesmo –, então a prisão em causa é inadequada e desonrante. Não só a prisão que, aqui e agora, está sob nossos olhos, as demais em condições assemelhadas também são obviamente reprováveis. Trata-se, em suma, de prisão desumana, que abertamente se opõe a textos constitucionais, igualmente a textos infraconstitucionais, sem falar dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos (Constituição, art. 5º, § 3º). Basta o seguinte (mais um texto): ‘é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’ (Constituição, art. 5º, XLIX).

É despreziva e chocante! Não é que a prisão ou as prisões desse tipo sejam ilegais, são manifestamente ilegais. Ilegais e ilegítimas.

Ultrapassamos o momento da fundamentação dos direitos humanos; é tempo de protegê-los, mas, ‘para protegê-los, não basta proclamá-los’. Numa sociedade igualitária, livre e fraterna, não se pode combater a violência do crime com a violência da prisão. Quem a isso deixaria de dar ouvidos? Ouvindo-o a quem? A Dante? ‘Renunciai as esperanças, vós que entrais’.

Quanto à prisão cautelar, aqui adentramos um aspecto grave do problema: a violência no cumprimento desse tipo de medida contribui, evidentemente, para o robustecimento da violência ao legitimar a violência institucionalizada.

Trago comigo, então, duas propostas. Uma, no sentido de, pura e simplesmente, revogar a prisão preventiva recaída sobre o paciente; a outra, no sentido de substituir a prisão num contêiner por prisão domiciliar. Num e noutro sentido, estendo a proposta a tantos quantos – homens e mulheres – estejam cautelarmente (repito, cautelarmente) presos nas mesmas condições. As prisões não são ilegais, são, isto sim, manifestamente ilegais. Ilegais e ilegítimas.

Já se escreveu que ‘a lei garante o cidadão e o magistrado garante a lei’.Antes de sermos pessoas de ideias, somos pessoas de princípios, pessoas que cultivam princípios, entre os quais, e é para isso que aqui nos encontramos, o de promover o bem de todos sem preconceitos. Por sinal, tal é o que reza um dos objetivos fundamentais da nossa República: sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Somos, também, historicamente comprometidos: é que o Judiciário tem históricos compromissos com a ideia de justiça, pois não é que andamos, é verdade, diariamente, desde que o mundo é mundo, procurando dar resposta à eterna pergunta ‘o que é a justiça?’! Fazemos diariamente a justiça da melhor maneira possível, conquanto, ao fazê-la, acabemos por agradar a uns e por desagradar a outros. Quanto é difícil agradar a todos!

Porém somos uns sonhadores, sonhamos o sonho do poeta, sentimos a dor do poeta, do poeta que fingia tão completamente que chegava a fingir ser dor a dor que deveras sentia. Talvez por isso é que já se disse que a justiça é o sonho humano – sonho que pouco importa aos pássaros, aos peixes ou ao Deus eterno.

Num momento de intimidação do Judiciário nos anos cinquenta, o Instituto dos Advogados prestou calorosa homenagem ao juiz Aguiar Dias, oportunidade em que o orador daquela tarde, Dario de Almeida Magalhães, concluiu assim seu magnífico pronunciamento: ‘Dos que se investem da missão de distribuir justiça, o que se exige, antes de tudo, é rigorosa independência. Para resguardá-la cerca a Constituição os juízes de garantias cabais. A tibieza e a demissão da parte deles equivalem, por isso, à traição ao dever elementar. E quando esta desgraça acontece, não há salvação no naufrágio em que se perde o regime. Marcais com o vosso exemplo de intrepidez e energia moral a compreensão que tendes das vossas responsabilidades; e para honra da nossa magistratura, anima-nos a certeza de que no seio dela não representais uma posição solitária, nem sois uma sentinela perdida. Sois, sem dúvida, porém, um expoente e uma segurança, numa quadra de perigos em que é preciso relembrar o aforismo de BACON: ‘A lei garante o cidadão e o magistrado garante a lei’”.

Sim, é a lei que garante o cidadão, e é o magistrado quem garante a lei. O caso, srs. ministros, é de extrema ilegalidade.

Pelo que disse linhas atrás, voto pela concessão da ordem no sentido de revogar a prisão preventiva recaída sobre o paciente, impondo-lhe, no entanto, o compromisso de comparecer a todos os atos do processo. Caso prefiram V. Exas., voto no sentido de substituir a prisão num contêiner por prisão domiciliar. Num e noutro sentido, estendo a ordem a tantos quantos – homens e mulheres – estejam cautelarmente (repito, cautelarmente) presos nas mesmas condições. Quanto à extensão dos efeitos da ordem ora concedida, fica nas mãos do juiz do processo o exame de cada caso, cabendo de sua decisão reclamação ao Superior Tribunal. As prisões não são ilegais, são, isto sim, manifestamente ilegais. Ilegais e Ilegítimas”.


Nilson Naves
Relator

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