quarta-feira, 2 de junho de 2010

Morosidade aumenta sensação de impunidade


Pela primeira vez na história do país, um governador em pleno exercício do poder foi preso. Em um só ano, governadores, senadores e deputados foram expulsos do cargo por decisão do Tribunal Superior Eleitoral. O Congresso decidiu impedir quem tem condenação, mesmo com possibilidade de recorrer, de concorrer a um cargo público. Os investimentos em tecnologia a serviço da Polícia Federal nos últimos anos foram altos e, depois de reprimendas judiciais, os espetáculos das operações passaram a ser menos frequentes.
Diante desse quadro, que poderia ser considerado pela população como um avanço, a sensação de impunidade continua a permear a sociedade brasileira, em todas as classes, raças e credos. Intrigada com um possível descompasso entre as medidas definidas pelo Estado e o resultado alcançado, a ConJur foi procurar respostas.
Qual a principal razão da sensação de impunidade no Brasil?, perguntou a juízes, advogados, defensores públicos, promotores de Justiça. Recebeu visões múltiplas e até “provocações”, como a do criminalista Técio Lins e Silva. “Não há impunidade. Ao contrário, a Justiça Penal brasileira é insaciável e condena impiedosamente. Basta olhar para os cárceres e ver o imenso contingente de presos amontoados, sujos, maltrapilhos, onde não faltam sarnas e piolhos, para dizer o menos. Impunidade? Nunca se condenou tanto no Brasil”, diz.
Para ele, “a sensação, calejada no exercício da defesa dos perseguidos, não é de impunidade; é de injustiça”. O advogado reclama do que chama de sede de condenação, de aplausos a ações policiais “violentas e espalhafatosas”, do aumento das penas, da criação de novos tipos penais, do opressivo poder estatal, em detrimento dos direitos de cada um.
O também criminalista Daniel Bialski diz que é preciso saber um pouco mais sobre o processo penal para entender que a prisão não pode se tornar um castigo antecipado. “E nem se presta para acalmar eventual clamor público”, sublinha. Ele lembra “prisão é exceção” e diz que seria preocupante se meras suspeitas ou uma notícia na TV pudesse fundamentar um decreto de prisão.
Bialski se opõe à ideia de que apenas os pobres são condenados. Pela sua vivência na área criminal, já percebeu que é comum defensores públicos atuarem melhor que advogados contratados. E chama atenção para o trabalho de investigação feito pela polícia, que considera eficiente e dedicado. “Excetuando-se abusos ocorridos, raros, a polícia é merecedora de efusivos elogios.”
Não é como pensa o juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, Paulo Henrique dos Santos Lucon, que considera a ineficácia da polícia a principal razão para a sensação de impunidade no país. “Quantos mandados de prisão não são cumpridos?”, pergunta e responde: milhares. A rapidez só acontece quando a imprensa se envolve no caso, afirma, despertando o interesse dos policiais. E chama atenção para as pessoas que cometem crimes porque sabem que “dificilmente serão presas; e se isso acontecer, cumprirão uma rápida pena”.
Quem defende a existência real da impunidade, e não só a sensação, concorda com a baixa qualidade do trabalho dos policiais e também do Ministério Público. Talvez, não por falta de qualificação dos profissionais, mas pelo excesso de trabalho ou por descaso. O que abre possibilidade para inúmeros recursos da defesa, levando o acusado à absolvição por falta de provas ou pela prescrição.
O presidente da OAB Nacional, Ophir Cavalcante, diz que é o Judiciário que precisa acompanhar os fatos, sob pena de ninguém temer a Justiça. "O princípio da razoável duração do processo inserido na Constituição Federal, como forma de demonstrar o compromisso da ordem constitucional com uma Justiça célere, infelizmente ainda é um apenas compromisso e não uma realidade, pois o Judiciário brasileiro, em que pese todos os esforços empreendidos pelo CNJ e diversos tribunais, tem um déficit histórico no particular, o que conduz a duas alternativas: ou os processos prescrevem ou a condenação e tão distante do fato que não funciona nem como puniçao moral", conclui.
A advogada Luciana Lóssio entende que o “complexo rito processual” leva a essa excessiva demora na resposta do Judiciário ao jurisdicionado. Mas afirma que o descrédito da Justiça passa antes pela imprescindível atuação do Ministério Público e da Plícia, que devem evitar “operações espetaculosas e as denúncias irresponsáveis contra autoridades e empresários (que garantem exploração midiática do assunto)”.
Duração do processo
Há ainda quem diga que a imprensa tem a sua participação na criação ou, ao menos, na existência desse sentimento na população brasileira. “O descompasso entre o timing da imprensa e o da Justiça é o maior responsável pela sensação de impunidade”, segundo o advogado Alberto Toron. “A dita lentidão da Justiça é, muitas vezes, não mais que o tal descompasso. É isso que dá a sensação de impunidade”, decreta.

A sua opinião é compartilhada com muitos outros operadores do Direito. O desembargador federal Henrique Herkenhorff, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, entende que leis mais severas não vão ajudar a resolver a questão. O grande problema é a incerteza da população em relação à aplicação da lei. “É uma estupidez fazer leis aumentando as penas ou transformando qualquer pequena infração em crime, se continuar sendo incerta a sua apuração e, principalmente, se permanecer demorada a sua aplicação. É muito melhor uma pena branda aplicada prontamente do que uma severa que demore muito e talvez nunca venha”, declara.
O desembargador também faz uma crítica à atuação da imprensa e do Judiciário. Os crimes e infrações à lei são divulgados com rapidez, mas “o castigo”, às vezes, leva tanto tempo para chegar que “não permite que liguem uma coisa à outra. Na verdade, mesmo o criminoso fica com a sensação de estar sendo agredido sem motivo, não de estar sendo castigado pelos seus atos, porque até ele já esqueceu do crime, tantos anos depois”.
O ex-secretário de Justiça e de Segurança Pública de São Paulo, Eduardo Muylaert também acredita que o rigor da legislação penal não é a panacéia contra o crime: "O que desetimula a criminalidade não é o rigor das penas, mas a certezaa da punição", afirma. Ao analisar se o crime compensa, diz ele, o criminoso não avalia se a pena é maior ou menor, mas se a pena será aplicada ou não.
Marcos Fuchs, diretor executivo do Instituto Pro Bono, constata que as penas principalmente no âmbito penal estão cada vez mais duras, fazendo com que “os benefícios da lei aos poucos sejam extintos”. Mas o que o incomoda é o “desequilíbrio nas condenações e a possibilidade de uma defesa digna aos menos favorecidos. Existem hoje pessoas presas por furto de alimentos, roupas e viciadas em crack. Estes vão apodrecer sem defesa no sistema. Aos favorecidos o direito de ampla defesa e a possibilidade de liberdade rápida”, compara. O fortalecimento das defensorias, dos mutirões do Conselho Nacional de Justiça e iniciativas como do seu instituto e do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) pode reverter essa situação.
O ex-secretário da Reforma do Judiciário e hoje advogado Pierpaolo Bottini não concorda com tese de que a Justiça só condena os pobres, apesar de acreditar que a falta de estrutura da defensoria acabe levando a mais acusações. Para ele, a morosidade processual é um dos fatores que mais contribui para a sensação de impunidade. “Por isso, me parece que a continuidade na reforma da legislação processual é o caminho mais adequado para a redução dessa sensação de impunidade”, opina.
O defensor público Renato Campos Pinto de Vitto é assertivo: “A seletividade do sistema de Justiça criminal é um entrave emblemático para a consolidação do princípio da igualdade no Brasil. Por outro lado, a despeito da progressão geométrica do contingente prisional, os resultados da reação estatal contra o delito não representam, de forma efetiva, um ganho para a sociedade e para as vítimas, colocando em xeque a credibilidade de todo o sistema”.
Para o advogado Daniel M. Boulos, o grande desafio será tornar o processo mais célere sem eliminar a segurança e a previsibilidade que ele precisa ter. “São essas características básicas e elementares do Estado de Direito”, afirma ao citar a elaboração do novo Código de Processo Civil e chamar atenção para a necessidade de melhora na estrutura do Judiciário.

LILIAN MATSUURA é chefe de redação da revista Consultor Jurídico. Revista Consultor Jurídico, 29 de maio de 2010.

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