segunda-feira, 3 de maio de 2010

Artigo: Um engodo chamado exame criminológico

Causa muita preocupação o número de projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional que preveem o retorno da exigência da realização do exame criminológico para análise de pedidos dos institutos que promovem os sentenciados à liberdade gradual no âmbito do processo de execução da pena privativa de liberdade.
Vários argumentos motivaram a Lei n. 10.792/2003 a abolir a realização dos referidos exames, entre os quais, o mais importante é a constatação de que os saberes “psi” são incapazes, à luz de critérios minimamente rigorosos de confiabilidade e validade, de desvendar a subjetividade do sentenciado, de enunciar qualquer verdade consistente sobre ela e, principalmente, de prever o comportamento humano futuro. Sepultou-se, assim, tardiamente, o sonho positivista de detecção precisa da periculosidade, tanto pelas limitações técnicas e epistemológicas da tarefa, quanto pelas sérias reservas de natureza ético-jurídicas que marcam o exercício de tal pretensão, que vão desde sua inconsistência científica até sua natureza claramente atentatória à intimidade e dignidade humanas.
A tais objeções acrescentou-se a constatação empírica da total precariedade que marca a maioria absoluta dos exames criminológicos realizados nas unidades prisionais brasileiras(1) e revelada em condutas e fórmulas burocratizadas altamente distanciadas dos parâmetros mínimos de uma avaliação multidisciplinar aceitável. Generalizações pouco rigorosas, linguajar estereotipado e sua produção massificada denunciam, nos relatórios produzidos, claro desrespeito à singularidade própria de cada ser humano considerado a partir do contexto social, político, econômico e cultural que opera em seu processo de subjetivação.
Os efeitos nefastos do encarceramento sobre o psiquismo humano, demonstrados em vasta literatura, ao invés de agilizar a liberação, revertem, na leitura dos peritos, em perpetuação do recolhimento: tomando o homem como efeito de si próprio e ancoradas na ficção terapêutica da pena, as avaliações declaram incapazes de viver em sociedade aqueles que não assimilaram, como deviam, o tratamento penitenciário.
Exatamente com esse objetivo os juízes se utilizam do exame criminológico(2), ou seja, como instrumento de diagnose no processo de execução criminal, transformando-o numa espécie de atestado de que o sentenciado que, outrora demonstrou inadequação para viver no seio social, não mais reincidirá, pois assimilou a terapêutica penal, através da demonstração inequívoca do fim de sua periculosidade, para só então promovê-lo à liberdade gradual.
Ocorre, no entanto, que é inaceitável no direito penal moderno a compreensão da pena privativa de liberdade como uma medida antisséptica da periculosidade do preso imputável, haja vista que a concepção positivista do delinquente como um ser atávico, cuja sanção penal funcionaria como cura para sua patologia(3), mostrou-se inadequada e insustentável em seus argumentos(4).
Hodiernamente, o conceito de periculosidade se restringe aos inimputáveis ou semi-imputáveis submetidos à medida de segurança, sendo que aos imputáveis condenados à pena privativa de liberdade o critério a se aplicar é o da culpabilidade(5) diante do sistema dualista de reação estatal frente ao injusto penal.
E, neste contexto, saliente-se que a culpabilidade tem no fato delitivo o seu objeto e não no autor, porque, conforme prelecionam Zaffaroni e Pierangeli(6), “a reprovabilidade de ato é a reprovabilidade do que o homem fez. Na culpabilidade de autor, é reprovada ao homem a sua personalidade, não pelo que fez e sim pelo que é”. Por isso que, no processo de execução criminal, o que importa é a forma como o condenado cumpre sua pena(7) e não os fatores que contribuíram para formar sua personalidade ou as características desta.
Ora, se os conceitos de periculosidade e imputabilidade são inconciliáveis e a formação e as características da personalidade da pessoa em cumprimento de pena privativa de liberdade são impertinentes ao juiz da execução criminal no momento de sentenciar acerca dos pedidos de liberdade gradual, forçoso reconhecer que a análise cognitiva que ele faz dos requisitos legais para deferir ou indeferir referidos pedidos não requer conhecimentos específicos a exigir uma perícia elaborada por técnicos.
O conteúdo do exame criminológico, então, além de impreciso, não pode, à luz dos princípios constitucionais norteadores da execução penal, justificar, do ponto de vista jurídico, a denegação do abrandamento da reprimenda penal imposta.
Diante disso, depreende-se que os projetos de leis que objetivam o retorno da exigência da realização desta perícia são equivocados, sustentando-se apenas no efêmero efeito pirotécnico que suas aprovações poderão render(8), em nada repercutindo para que a pena surta sua real finalidade que é integrar harmonicamente o sentenciado à sociedade, sem dessocializá-lo, através de mecanismos estatais que lhe proporcionem um cumprimento de pena digno.
Oxalá, o bom senso prepondere ao clamor midiático na consciência do legislador pátrio neste momento. Resta torcer...

NOTAS

(1) O que se vê na elaboração dos pareceres pelas Comissões Técnicas nos presídios são análises emitidas por técnicos (psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras) que reproduzem fórmulas repetitivas, sem a efetiva análise do preso, a maneira como cumpre sua pena e, principalmente, o seu necessário acompanhamento psicológico dentro da unidade prisional (Nota dos autores).
(2) Como se sabe, recentemente o STF editou a Súmula Vinculante n. 26 que em sua parte final aduz que o magistrado pode solicitar a realização da referida perícia, desde que fundamente sua necessidade no caso concreto (Nota dos autores).
(3) “Da concepção de anomalia moral, chega à conclusão de que o critério da medida penal deve ser a pericolosita” (NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. 1. v. 11. ed. São Paulo: Saraiva. 1973-74, p. 38).
(4) “Certo é que Lombroso cometeu exageros, máxime no que diz respeito aos caracteres morfológicos do criminoso e no querer reduzir este a uma espécie à parte do gênero humano. Sua classificação de delinquentes não resistiu por muito tempo à análise dos estudiosos” (Ibem idem, op. cit., p. 27).
(5) Neste sentido, Nucci explica que “é preciso distinguir a culpabilidade, como fundamento e limite de aplicação da pena, da periculosidade, como critério fundamentador e balizador da medida de segurança” (NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 3. ed. São Paulo: RT. 2009, p. 338).
(6) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 2. ed., São Paulo: RT, 1999, p. 608.
(7) ORSI NETTO, Alexandre. A falácia do in dubio pro societate como princípio no processo de execução criminal. Boletim IBCCRIM n. 204, novembro de 2009, p. 14.
(8) “Numa sociedade em que os elementos principais não são mais a comunidade e a vida pública, mas os indivíduos privados por um lado, e o Estado por outro, as relações só podem ser reguladas numa forma exatamente inversa ao espetáculo” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; trad. Raquel Ramalhete. 34. ed., Petrópolis: Vozes, 2007, p. 178).

Alexandre Orsi Netto
Defensor Público do Estado de São Paulo.
Flávio Américo Frasseto
Defensor Público do Estado de São Paulo.
Mestre em Psicologia.
Professor da Universidade Bandeirante de São Paulo.

Boletim IBCCRIM nº 209 - Abril / 2010 

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