domingo, 9 de maio de 2010

Artigo: O funcionamento do sistema penal brasiliense diante da criminalidade feminina


Neste artigo apresentaremos uma análise dos dados referentes à população feminina reclusa no Distrito Federal. Tais dados foram disponibilizados em 11 de agosto de 2009 pela direção da Penitenciária Feminina de Brasília e constituem uma amostra significativa da seletividade do Sistema Penal. Muito se tem escrito acerca do problema que representa a seletividade do sistema penal e sobre a forma com que as agências e instâncias de controle recrutam sua clientela no segmento socialmente mais vulnerável. Eugênio Raúl Zaffaroni(1), tratando deste tema, afirma que os atos mais grosseiros cometidos por pessoas mais vulneráveis acabam sendo divulgados como se fossem os únicos delitos e aquelas pessoas as únicas delinquentes, o que dá origem a um “estereótipo”. No mesmo sentido, Nilo Batista(2) ensina que, idealizado para ser igualitário e justo, o sistema penal, na verdade, é seletivo, repressivo e estigmatizante, atingindo mais significativamente determinadas pessoas integrantes de determinados grupos sociais. Há uma contradição entre as linhas programáticas legais e o real funcionamento das instituições que as executam.
As prisões brasileiras estão superlotadas(3), e não obstante isto, as estatísticas específicas indicam que os sistemas prisionais recebem cada vez mais hóspedes em todos os quadrantes do mundo(4). Na esteira do crescimento das populações carcerárias reside um fenômeno social representado pela criminalização da pobreza e da imigração, como bem aponta Alessandro De Giorgi(5). O estereótipo (classe social, raça, faixa etária, questões de gênero e estéticas), acaba sendo, segundo Eugênio Raúl Zafaroni e Nilo Batista, o principal critério seletivo da chamada criminalização secundária(6), daí resulta a existência de certa uniformidade da população penitenciária associada, também, a desvalores estéticos (pessoas feias), como se, na prática, houvesse um figurino social da delinquência e do delinquente.
O flagelo do crescimento da violência criminal tem alcance mundial, como diz Loïc Wacquant, sendo que na sociedade brasileira, caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza em massa, a combinação desses fatores maximiza a propagação do medo do crime e com ela a discriminação baseada na cor(7), que é endêmica nas burocracias policial e judiciária(8).
Organizamos o argumento deste texto em 10 perguntas que seguem com as respectivas respostas. Elas nos mostram os números da seletividade e confirmam a vulnerabilidade social da população selecionada.
Quantas internas estão aqui e em que regime prisional?

Regime Prisional
Número de presas
Relação percentual
Fechado
193
44,5%
Semiaberto sem saída
55
12,7%
Semiaberto com saída
51
11,8%
Aberto
-
-
Medida de Segurança
1
0,2%
Prisão Provisória
134
30,8%
Soma
434
100,0%


Quais as faixas etárias? 

Faixa Etária
Número de presas
Relação percentual
Entre 18 e 25 anos
172
39,6%
Entre 26 e 30 anos
94
21,7%
Entre 31 e 40 anos
96
22,1%
Entre 41 e 50 anos
63
14,5%
Acima de 51 anos
9
2,0%
Soma
434
100,0%

Quais os estados civis?

Estado Civil
Número de presas
Relação percentual
Solteiras
292
67,3%
Casadas
27
6,2%
Em união estável
79
18,2%
Separadas de fato
11
2,5%
Separadas de Direito
12
2,8%
Viúvas
10
2,3%
Não informadas
3
0,7%
Soma
434
100,0%
Quais os graus de instrução?

Graus de Instrução
Número de presas
Relação percentual
Analfabetas
9
2,1%
Ensino fundamental incompleto
258
59,4%
Ensino fundamental completo
51
11,8%
Ensino médio incompleto
60
13,8%
Ensino médio completo
44
10,1%
Superior incompleto
7
1,6%
Superior completo
3
0,7%
Não informado
2
0,5%
Soma
434
100,0%
Como se classificam em termos de cor da pele?

Cor da Pele
Número de presas
Relação percentual
Branca
89
20,5%
Negra
88
20,3%
Parda
257
59,2%
Soma
434
100,0%
Que tipo de infração penal cometeram ou a que tipo de incidência penal respondem?

Infração Penal
Número de presas
Relação percentual
Uso e tráfico de drogas
338
54,8%
Homicídio
29
4,7%
Furto
76
12,3%
Roubo
100
16,2%
Estelionato
28
4,5%
Formação de
quadrilha ou bando
6
1,0%
Outros
38
6,5%
Soma
617(9)
100,0%
Qual o tempo de condenação observada para os casos em que já ocorreram os julgamentos e sentenças transitadas em julgado?

Total da Pena
Número de presas
Relação percentual
Condenação até 2 anos
41
13,7%
De 2 a 4 anos
73
24,3%
De 5 a 10 anos
132
44,0%
De 11 a 15 anos
24
8,0%
De 16 a 20 anos
18
6,0%
De 21 a 30 anos
9
3,0%
Acima de 30 anos
2
0,7%
Medida de Segurança
1
0,3%
Total de condenadas(10)
300
100,0%
Quantas delas são reincidentes na conduta criminal?

Reincidência Criminal
Número de presas
Relação percentual
Reincidentes
40
9,2%
Não-reincidentes
394
90,8%
Soma
434
100,0%
Existem estrangeiras aprisionadas?

Nacionalidade
Número de presas
Relação percentual
Brasileiras
425
97,9%
Estrangeiras
9
2,1%
Soma
434
100,0%
É possível classificá-las segundo suas crenças atuais?

Religião declarada
Número de presas
Relação percentual
Católica
225
51,8%
Evangélicas
75
17,3%
Espíritas
5
1,2%
Não possuem
122
28,1%
Não informam
7
1,6%
Soma
434
100,0%
De forma resumida, e não simplista, o substrato dessas dez perguntas revela que o perfil da mulher presa no Presídio Feminino de Brasília é de uma pobre cidadã brasileira, parda, com ensino fundamental incompleto, jovem, com idade entre 18 e 25 anos, solteira, católica, presa por uso e tráfico de drogas, condenada a uma pena de 5 a 10 anos de prisão, em regime fechado, não reincidente. Indagamos aos gestores da Penitenciária Feminina de Brasília sobre quais poderiam ser as razões para tão expressiva participação de cidadãs presas por ofensa à Lei de Drogas, a resposta foi surpreendente, no sentido de que a maioria das detentas que respondem por infrações penais relativas às Leis 6368/76 (antiga Lei de Drogas) (artigos 12 e 16); e 11.343/06 (nova Lei de Drogas) (artigos 28 e 33) diz respeito às mulheres, companheiras, namoradas que foram surpreendidas levando ou tentando levar drogas para seus parceiros presos em outras unidades prisionais do Distrito Federal. Além dos dados disponibilizados, não foram demonstradas outras informações técnicas ou pesquisas empíricas sobre esta contundente revelação. Tomando-a como verdadeira, sobretudo diante dos quadros estatísticos, esta circunstância evidencia que essas mulheres, ou essas detentas, adentram o terreno de uma incidência criminal grave, ou praticam uma conduta tipificada como crime, em função, muitas vezes, do desconhecimento dos riscos que correm ao decidirem – por razões as mais diversas, entre as quais, questões afetivas; amor ou ilusão incondicional; necessidade financeira, para si e para seus filhos; por medo; coação moral etc. – transportar drogas para dentro dos presídios.
Lamentavelmente, a questão prisional ou, mais que isto, a crise do sistema penitenciário – atualmente entupido de brasileiros pobres que, em geral, foram impedidos da fruição de direitos fundamentais básicos e hoje são vistos como inimigos públicos em função de suas baixas condições sociais, vítimas da expansão do poder punitivo(11) –, não encanta os formuladores de política pública e não parece preocupar a maioria surda e muda da população, exceção feita aos recentes movimentos do Supremo Tribunal Federal, na pessoa de seu presidente, por meio de mutirões prisionais.
Números como os obtidos no Presídio Feminino de Brasília falam por si sós e nos alertam no sentido de que não se pode perder de vista que o enfrentamento da questão prisional é um indicador de maturidade da própria sociedade, como bem ensina Nelson Mandela(12) ao afirmar que “costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata seus cidadãos mais elevados, mas sim pelo modo como trata seus cidadãos mais baixos”, ou pelo modo como os maltrata, ou, até mesmo, pelo modo como os ignora.

NOTAS

(1) ZAFFARONI, Eugenio RaúlEm busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
(2) BATISTA, NiloIntrodução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
(3) http://www.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm
(4) Na Espanha, o número de presos subiu 52% entre 2002 e 2005. Na Irlanda, 66%, e na Holanda, 102% (fonte: Ministério da Justiça, DEPEN). Nos Estados Unidos o número de pessoas sob supervisão correcional ultrapassa a casa dos 7,2 milhões, conforme dados do US Departament of Justice, Bureau of Justice Statistics.
(5) GIORGI, Alessandro deA miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
(6) O processo seletivo de criminalização se desenvolve em duas etapas denominadas, respectivamente, primária e secundária. Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas condutas. Criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências do Estado detectam pessoas que se supõe tenham praticado certo ato criminalizável primariamente e as submetem ao processo de criminalização (investigação, prisão, judicialização, condenação e encarceramento). (ZAFFARONI, Eugenio Raúl e BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.)
(7) FLAUZINA, Ana Luiza PinheiroCorpo negro caído no chão. O sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
(8) WACQUANT, LoïcAs prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
(9) O número de infrações penais (617) é maior do que o número de detentas (434) tendo em vista que algumas das segregadas respondem por mais de uma conduta delituosa.
(10) O total de detentas condenadas (300) é menor do que o número de segregadas (434), pelo fato de existirem 134 em regime de prisão provisória, conforme Quadro 1.
(11) FREIRE, Christiane RusssomanoA violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo. São Paulo:IBCCRIM, 2005.
(12) MANDELA, NelsonLongo caminho para a liberdade. Porto: Campo da Letras, 1995.


Edson Ferreira, Advogado em Brasília, criminalista, mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Instituto CEUB de Pesquisa e Desenvolvimento – ICPD, Aluno especial do Programa de Doutorado da Universidade de Brasília. Membro do Grupo de Pesquisa Política Criminal do UniCEUB; do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; do Instituto de Ciências Penais; e da American Society of Criminology.

Cristina Zackseski, Criminóloga, Mestre em Direito e doutora em Ciências Sociais, Professora de Criminologia da Graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília, Professora de Política Criminal no Mestrado em Direito – Área de concentração em Políticas Públicas - e líder do grupo de Pesquisa Política Criminal da mesma instituição.


FERREIRA, Edson; ZACKSESKI, Cristina. O funcionamento do sistema penal brasileiro diante da criminalidade feminina. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 209, p. 12-13, abr., 2010.

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