terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O princípio do nemo tenetur se detegere

Geraldo Prado



TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
QUINTA CÂMARA CRIMINAL
HC 2009.059.05388 j. 24.09.09
Relatório
(...) o impetrante argumenta estar o paciente na iminência de sofrer constrangimento ilegal, na medida em que a autoridade coautora, mesmo com o pronunciamento contrário da defesa, invocando para tanto o princípio da auto não-incriminação, determinou fosse o acusado submetido a exame de identificação biométrica e perícia videográfica. Esclareceu que se trata de princípio implícito e com sede constitucional, mas decorrente do Pacto de São José da Costa Rica, firmado pela nação, que estabelece que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo, consagrando a premissa acima citada. Finalizou requerendo que se impeça, in limine, “que o paciente seja obrigado a produzir prova contra si mesmo, impedindo que o mesmo seja fotografado, bem como impedir que tirem suas medidas”. No mérito, postulou a concessão da ordem. (...).
Voto vencido
(...) De acordo com a inicial, o direito de o paciente não produzir prova contra si está sendo ameaçado pelo deferimento de produção de prova requerida pelo Ministério Público, consistente em perícia videográfica, com o intuito de elaborar laudo biométrico por meio da comparação entre imagens captadas pela Polícia Civil durante a investigação preliminar e a imagem do acusado.
Em que pese o entendimento diverso adotado pela douta maioria, votei vencido para CONCEDER A ORDEM, não para proibir a produção da prova, que se mostra relevante e pertinente ao deslinde da causa, nos termos em que delimitada na denúncia, mas para limitá-la aos direitos constitucionais do réu. Não há como negar que são persuasivos os fundamentos utilizados pela d. maioria para denegar a ordem, especialmente quando se fala na necessidade de adequação da lei ao desenvolvimento tecnológico, na similaridade da perícia em questão com o reconhecimento pessoal e na incoerência revelada pela exigência de aparelhamento das instituições policiais, com a finalidade de acabar com técnicas truculentas de investigação, em confronto com a tese sustentada pela defesa.
O próprio entendimento defensivo, a propósito, carrega ligeiro equívoco ao postular que a simples realização da perícia requerida pelo Ministério Público é capaz de ferir os direitos fundamentais do acusado. O reconhecimento do constrangimento ilegal, neste caso, exige algo mais.
Exigir algo mais, contudo, não é sinônimo de estabelecer como requisito da coação ilegal a pretensão de se produzir prova invasiva, a exemplo da colheita de dados genéticos. Se assim entendesse, este desembargador acompanharia a d. maioria, pois foi nesses termos que se fundamentou o acórdão. Ao contrário, conforme ensinamento de Maria Elizabeth Queijo, o princípio nemo tenetur se detegere também engloba a produção de provas tidas por não invasivas, tais como o fornecimento de padrões gráficos ou vocais para a realização de perícia comparativa.
Não fosse assim, não faria sentido, do ponto de vista jurídico, a positivação do direito ao silêncio, consagrado no artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da República. A lógica da qual decorre o enquadramento do interrogatório como meio de defesa é justamente a de que, ao declarar, o réu pode vir a se autoin­cri­mi­nar.
Por isso o que se veda, de fato, não é exclusivamente a transformação do corpo do imputado em objeto do qual se possa extrair meio de prova, mas também a objetivação da própria personalidade.
É esse substrato político-jurídico que coloca, ao lado da intangibilidade do corpo, a “liberdade do acusado de encontrar uma decisão autônoma sobre se ele quer colaborar ativamente com o esclarecimento dos fatos ou não”(1)como critério norteador do princípio nemo tenetur se detegere.
O que se proíbe, pois, é o ato compulsório do acusado, que restringe essa liberdade, verdadeira face de sua dignidade como pessoa humana dotada dos direitos inerentes à personalidade, tais como a titularidade de sua própria imagem.
Nessa perspectiva, não é exclusivamente a produção de prova invasiva em desacordo com a vontade do réu que caracteriza o desrespeito ao seu direito fundamental, mas a exigência de que ele assuma determinado comportamento – positivo ou negativo – para permitir a produção de prova, ainda que não invasiva, em seu desfavor.(...)
Assim, se o acusado, no exercício daquela liberdade de escolha, optou por não fornecer dados de sua imagem, ele não pode ser obrigado a assumir esse comportamento – por meio da condução coercitiva, por exemplo –, sob pena de efetiva violação ao direito de não colaborar com a condenação e de não ajudar o Ministério Público a se desincumbir do ônus da prova.
Isso não significa, porém, que as autoridades públicas estejam proibidas de, por outros meios que não a coação do réu, obter os dados necessários à elaboração do laudo de comparação biométrica, que realmente se mostra pertinente e relevante à demonstração da autoria do fato a ele imputado. O processo é público e, por isso, nada impede que, em audiência, por exemplo, a imagem lhe seja extraída por meio de fotografia, desde que, para tanto, ele não seja compelido a fornecê-la. (...)
Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a autoin­cri­mi­na­ção, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz de levar à caracterização de sua culpa. (...)
No mesmo sentido, Aury Lopes Junior defende que a recusa do indiciado em fornecer dados genéticos para a produção de determinada prova não impede que a autoridade policial os colha de outra forma, como a realização de busca e apreensão em sua residência, desde que autorizada judicialmente, ou até mesmo o aproveitamento da saliva do investigado deixada no copo em que ele bebeu água ou no toco de cigarro descartado no cinzeiro. Trata-se do que o autor chama de prova dispensada, cuja utilização não está vedada e, portanto, não acarreta qualquer nulidade.
Pelo exposto, votei vencido no sentido da concessão da ordem, para proibir qualquer exigência de comportamento, positivo ou negativo, do acusado a fim de colaborar com a produção da prova requerida pelo Ministério Público.
NOTA
(1) Suprema Corte Alemã. Decisão BGHSt 40, 71. Apud ROXIN, Claus. “Nemo tenetur”: La jurisprudência em La encrucijada. In: Pasado, Presente y Futuro del Derecho Procesal Penal. p. 163-178.

Geraldo Prado
Relator

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