terça-feira, 3 de novembro de 2009

GÊNERO E CIDADANIA

A coleção Encontros acaba de lançar a obra Gênero, família e gerações: juizado especial criminal e tribunal do júri, organizada por Guita Grin Debert, Maria Filomena Gregori e Marcella Beraldo de Oliveira, e que está inteiramente disponível pelo computador. Veja abaixo a APRESENTAÇÃO do livro:
O tema geral que orienta a coletânea é a discussão sobre a distribuição da justiça e os problemas envolvidos na consolidação dos direitos da cidadania na sociedade brasileira contemporânea. Os artigos aqui reunidos apresentam análises etnográficas e estudos quantitativos sobre diferentes aspectos do tratamento dado pela justiça aos crimes cometidos entre pessoas conhecidas, particularmente, aquelas ligadas por relações de consangüinidade ou afinidade, como é o caso dos relacionamentos entre casais e gerações na família.
Os artigos tomam como foco de investigação dois ambientes bastante distintos do Judiciário: os Juizados Especiais Criminais (JECrims) e os Tribunais do Júri. Esses dois âmbitos da justiça são regidos por diferentes formas legais e procedimentais na condução dos processos. Se o Tribunal do Júri busca definir o culpado e a aplicar uma pena seguindo o modelo acusatorial da justiça penal, o JECrim tem como objetivo a conciliação entre as partes em conflito. Contudo, como mostra a produção aqui reunida, nos crimes entre conhecidos, principalmente entre membros da mesma família, a percepção dos agentes dessas duas instituições é semelhante, tanto em relação a este tipo de crime quanto ao encaminhamento. Nesse sentido, apesar dos procedimentos do Tribunal do Júri e do JECrim serem distintos, ambas as instituições judiciárias utilizam mecanismos que levam à invisibilidade da violência e a reificação de desigualdades de poder nas relações de consangüinidade ou afinidade.
No caso dos homicídios há um padrão de absolvição e de condenação em regime aberto, que não se restringe aos processos em que as partes são conhecidas entre si. De toda forma, ressalta-se que os casos julgados que envolvem relações de consangüinidade e de afinidade aparecem em maior número no Tribunal do Júri. Nesses casos, a absolvição é conduzida pela lógica, ainda presente, da defesa da família e dos julgamentos a partir do perfil social considerado adequado de vítimas e acusados. Nos homicídios ou tentativas que remetem a crimes entre gerações na família ou casais aciona-se uma lógica que, para os agentes do Judiciário, parece não fazer parte da racionalidade necessária na punição do delito, tornando o crime invisível ou negando a periculosidade dos réus. 
Nos Juizados Criminais, a invisibilização ocorre, sobretudo, por esses crimes serem percebidos pelos agentes do JECrim como algo que está fora do âmbito do Direito Penal e, portanto, devem ser tratados por outras instâncias – Justiça Cível, Psicologia ou Assistência Social – e, ao insistir na retirada desse conflito do Judiciário, produz os mesmos efeitos na instância conciliatória (JECrim) e acusatória (Tribunal do Júri). A criminalidade entre conhecidos é recorrente tanto no Tribunal do Júri quanto no Juizado Especial Criminal.
A aposta política dos movimentos feministas brasileiros, a partir de 1970, na revisão jurídica e nas instituições do sistema de justiça criminal como modo privilegiado de combate à violência oferece uma configuração particular às suas ações e demandas políticas. Apesar da pretensão de neutralidade, o jurídico sempre foi um campo de disputas, no qual o sistema de direitos se atualiza constantemente e, portanto, a luta pela expansão do acesso à justiça implica negociações entre atores sociais que não têm o mesmo poder na formatação das regras do jurídico. A emergência de novos atores empenhados na formulação de novas demandas é, também, uma das características próprias do jogo político nas democracias. Nos casos em que relações de família estão envolvidas, como nas questões de gênero e de gerações, a postura em relação ao Judiciário é, atualmente, muito mais ambígua do que em momentos anteriores ou em outros movimentos sociais. O interesse renovado pela família e pelas formas alternativas de justiça e a descrença nas formas de intervenção do sistema de justiça penal têm colocado em lados opostos os feminismos e o pensamento penal crítico brasileiro, cujo caráter misógino tem sido denunciado.
O significado de violência, que atribui sentido a danos, abusos e lesões a determinadas ações, é constituído historicamente e depende do poder de voz daqueles que participam do jogo democrático. Portanto, é fundamental empreender distinções entre os significados de processos de violência e daqueles que criminalizam abusos. As violências evocam uma dimensão relacional que não pode ser resolvida na esfera jurídica, pois essa instância, mesmo tendo como objetivo a justiça para todos, cria, produz e reproduz desigualdades.Essa análise não supõe que a Justiça e seu escopo legal e institucional não forneçam instrumentos importantes que organizam e definem padrões de direito, mas chama a atenção não só para o fato de que a igualdade perante a lei jamais foi alcançada por alguma nação, como também que a própria definição de igualdade e de acesso à justiça constitui um processo aberto às disputas e aos poderes diferenciais entre os atores sociais.
Uma questão premente nos crimes que envolvem relações de consangüinidade e afinidade remete ao melhor modo de qualificar essas relações. Quais os desafios envolvidos no intercâmbio de expressões como violência contra a mulher (noção criada pelo movimento feminista a partir da década de 1960), violência conjugal (noção que especifica a violência contra a mulher no contexto das relações de conjugalidade), violência doméstica (incluindo manifestações de violência entre outros membros no núcleo doméstico, e que passou a estar em evidência nos anos 1990), violência familiar (noção empregada atualmente no âmbito da atuação judiciária e consagrada pela recente Lei “Maria da Penha” como violência doméstica e familiar contra a mulher) ou violência de gênero (conceito que critica visões essencialistas)? Longe de construir verdades ou normatividades, o intuito desta coletânea é entender as dinâmicas de negociação no âmbito da justiça, bem como seus limites para atender a complexidade que reveste as relações de violência, certamente relacionadas às assimetrias de poder nas relações sociais. 
Os três primeiros capítulos analisam os Juizados Especiais Criminais (JECrim), denominados de justiça informal e criados em 1995 pela Lei Federal 9099. Criados para dar conta dos crimes de menor potencial ofensivo que não chegavam ao Judiciário, esses juizados passaram a receber, principalmente, os casos enviados pela Delegacia da Mulher, como aponta Beraldo de Oliveira no primeiro capítulo. As análises aqui apresentadas mostram o contexto que antecede a promulgação da Lei “Maria da Penha” (2006) e permitem compreender os dilemas enfrentados na sua formulação. Comparando a Delegacia de Defesa da Mulher e o Juizado Especial Criminal na cidade de Campinas, o primeiro capítulo aponta para a mudança de significados da violência de gênero, ao observar mais de perto o fluxo da justiça. A autora percorre as etapas que levam a produção da invisibililidade dessa violência promovida pelo JECrim, mostrando que o problema não está na informalização da justiça e na lógica conciliatória implementada a partir da Lei 9.099/95, mas como essas mudanças operam.
Sandra Brocksom, ao investigar o único JECrim autônomo do Estado de São Paulo compara o tratamento dispensado pelos agentes do JECrim aos crimes de violência doméstica com outros crimes, mostrando diferenças e semelhanças. Ao apresentar dados gerais sobre a criminalidade na Zona Leste e no município de São Paulo e traçar o contexto de criminalidade em que está inserido o Fórum Regional de Itaquera-Guaianazes, a autora mostra o grande volume de casos de violência doméstica atendido pelo JECrim de Itaquera e a importância das Delegacias da Mulher da Zona Leste no encaminhamento desses casos.
No terceiro capítulo, Heloisa Buarque de Almeida descreve, etnograficamente, o Juizado Especial Criminal de Família (JECrifam). Esse Juizado foi criado em 2003 em resposta à demanda dos movimentos de mulheres que denunciavam, indignadas, o pagamento de cestas básicas como forma de “punir” as agressões contra as mulheres cometidas por seus companheiros ou maridos. A autora identifica pelo menos dois discursos enunciados pelos profissionais do JECrifam – moral-religioso e psicológico-social. No primeiro, a família é colocada acima da própria vítima e, no segundo, o crime ganha invisibilidade ao ser encaminhado para a Vara de Família, local adequado para a solução de conflitos familiares, segundo os agentes do JECrifam.
As análises da chamada justiça informal demonstram que apesar de haver um esforço para agilizar a justiça e torná-la mais acessível, a conciliação entre as partes dá lugar a uma “harmonia coercitiva”, que retira o caso do âmbito do direito penal. A tentativa de construção de um espaço para um diálogo entre as partes ou de uma conciliação invisibiliza abusos e agressões que ocorrem no jogo de relações assimétricas de poder.
No quarto capítulo da coletânea, Guita Grin Debert, Renato Lima e Patrícia Ferreira analisam a dinâmica mais geral dos julgamentos no Tribunal do Júri, de forma a entender seu funcionamento, o tipo de demanda e alguns padrões de julgamentos. Este capítulo mostra como relações de afeto ou entre vizinhos são tratadas no Tribunal do Júri, a partir da análise de todos os julgamentos realizados em 2003, na 1ª Vara do Tribunal do Júri de São Paulo. O/as autor/as mostram que neste Tribunal há um padrão de absolvição que não se restringe à violência doméstica ou entre gerações em família, adotando, majoritariamente, outras modalidades de pena além das prisões em regime fechado. O/as autor/as mostram, ainda, que a utilização da figura da “legítima defesa da honra” nas teses de defesa dos acusados não se limita aos homicídios ou tentativas entre casais.
Ao analisar os julgamentos de casos específicos de homicídios e tentativas ocorridos nas relações afetivo-conjugais julgados no Tribunal do Júri em Natal, Rio Grande do Norte, Analba Teixeira e Maria do Socorro Ribeiro, no quinto capítulo, questionam se a figura da “legítima defesa da honra”, analisada no pioneiro, e já clássico, livro de Mariza Corrêa (1983), ainda é utilizada nos tribunais e quais novos argumentos surgem para abrandar ou absolver os acusados/as.
Na mesma direção, no último capítulo da coletânea, Debert, Lima e Ferreira, ao analisarem especificamente os casos de homicídio e tentativa no Tribunal do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda, na Capital de São Paulo, mostram que a violência conjugal e na família é difusa e invisível, muitas vezes, justificada, pelas próprias instituições do sistema de justiça, em nome de uma idealizada hierarquia de papéis e posições sociais. Esta questão, como afirmam o/as autor/as, fica invisível frente aos números da violência urbana no Brasil, mas, ao contrário do que essa aparente invisibilidade deixa transparecer, provoca profundos impactos nas formas de sociabilidade da população e no modo como o Estado formula políticas e ações de segurança e acesso à justiça. Debert, Lima e Fereira mostram, assim, que a análise dos argumentos acionados nos crimes entre casais e gerações na família revelam a maneira pela qual esses homicídios ganham inteligibilidade e o modo como a defesa da família é reproduzida, mesmo em casos extremos, como os homicídios.
Os artigos que compõem esta coletânea foram apresentados no Seminário Gênero e Cidadania, realizado pelo Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu, entre 16 e 18 de outubro de 2002, na Universidade Estadual de Campinas, com apoio da Fundação FORD. As pesquisas realizadas, cujos resultados serviram de base para os artigos apresentados, contaram com apoio da Fundação FORD, da SENASP do Ministério da Justiça, do CNPq e do FAEPEX/UNICAMP.

O conteúdo integral dessa coletânea se encontra disponível no site do Pagu:

Livro: Debert, Guita Grin; Gregoi, Maria Filomena; Beraldo de Oliveira, Marcella. (org.). Gênero, família e gerações: juizado especial criminal e tribunal do júri, Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 2008.

IBCCRIM.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog