segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Artigo: O juiz das garantias no projeto de reforma do código de processo penal

Disciplinada no projeto de lei do Senado PLS 156/2009, o instituto do juiz das garantias é uma das propostas que buscam adequar o Código de Processo Penal à ideo­logia democrática da Constituição Federal vigente.
A título de contextualização, é importante ter em mente que o motivo determinante da elaboração do anteprojeto de um novo Código de Processo Penal está na estampada incompatibilidade entre os modelos normativos da atual legislação processual, oriunda da década de 1940, e da Constituição Federal de 1988, essa última idealiza­dora de um Estado Democrático de Direito estruturado sobre um extenso rol de direitos e garantias fundamentais. Neste sentido, consta da exposição de motivos do referido anteprojeto, que “O Código de 1941, anunciava, em sua Exposição de motivos que ‘...as nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade...’. Ora, para além de qualquer debate acerca da suposta identidade de sentido entre garantias e favores, o que foi insinua­do no texto que acabamos de transcrever, parece fora de dúvidas que a Constituição de República de 1988 também estabeleceu um seguro catálogo de garantias e direitos individuais (art. 5º)”.
Em meio a esse contexto, o PLS 156/2009 propõe a criação do juiz das garantias, uma espécie de magistrado responsável pela observância dos direitos individuais dos investigados no âmbito criminal, instituto que propomos analisar em duas diferentes etapas.
Em um primeiro momento, poder-se-ia dizer que a expressão juiz das garantias constitui, por si só, uma redundância em termos. Isso porque a figura do juiz, no âmbito processual penal, não tem outro sentido, outra função, que não a de garantir a estrita observância dos direitos fundamentais dos acusados. A propósito, Lopes Jr. afirma que “o fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição” (Lopes Jr., 2008, p. 113).
Neste ponto, retornamos ao início do Século XVIII, período de transição do absolutismo ao liberalismo, e do surgimento do Estado de Direito, consequências do fortalecimento dos direitos naturais à vida, à liberdade e à propriedade, resultado da transição da ideia de homem fora do mundopara a de homem no mundo, segundo expressão de Dumont (2000, p. 37 e seq.), no sentido de que o homem passa a se colocar no papel de personagem principal, de sujeito de direitos.
Nesse contexto, primeiro com Locke, e depois com Montesquieu, surge a conhecida teoria da separação dos poderes, e com ela o Poder Judiciário, responsável pela literal aplicação da lei – juiz boca da lei –, e, como consequência, pela garantia dos referidos direitos individuais, tanto em face das amea­ças advindas dos próprios particulares, quanto frente às arbitrariedades praticadas pelo Estado. Era preciso que um órgão neutro, não identificado com os próprios particulares, e tampouco com o monarca (Poder Executivo), assumisse a incumbência de solucionar os conflitos e de garantir o respeito aos direitos à vida, à liberdade e à propriedade, dentre outros. Já aí, portanto, na concepção do Poder Judiciário, a ideia era de formatação de um juiz garante, responsável por evitar arbitrariedades e zelar pelos direitos daqueles acusados criminalmente.
Entretanto, embora a redundância da expressão, o instituto do juiz das garantias vem, ao fim e ao cabo, reforçar a compreensão da efetiva função dos juízes no cenário processual penal, colocando em destaque, não apenas durante a instrução criminal, mas também, e especialmente, na fase pré processual, o dever de o magistrado atuar não como investigador, mas sim como garantidor de que a investigação criminal obedeça a rígidos padrões de legalidade.
Neste sentido, dispõe o artigo 15, do projeto em questão, ser o juiz das garantias responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais, exemplificando, nos seus quatorze incisos, medidas restritivas desses direitos cuja execução deverá passar necessariamente pela sua análise. Não há, até aqui, nenhuma novidade para com a atual legislação processual. No modelo hoje vigente, a execução de qualquer das referidas quatorze medidas são reservadas com exclusividade à análise do Poder Judiciário, dado o monopólio do poder jurisdicional exercido no âmbito penal, justificado pela indisponibilidade dos interesses em jogo (Giacomolli, 2006, p. 220).
A inovação legislativa, aqui, diz respeito à criação da figura de um juiz com competência exclusiva para a atuação na fase pré processual, que a teor do artigo 17 estaria impedido de funcionar no processo. A preocupação do projeto, estampada na sua exposição de motivos, é “preservar ao máximo o distanciamento do julgador, ao menos em relação à formação dos elementos que venham a configurar a pretensão de qualquer das partes”. Neste sentido, a exposição de motivos do projeto 156/2009 é clara ao exigir a criação um órgão jurisdicional com função exclusiva de execução dessa missão, um juizado das garantias, não bastando que o juiz do processo seja outro que não o juiz que atuou na fase pré processual. Pretende-se, com isso, otimizar a prestação da função jurisdicional criminal e “manter o distanciamento do juiz do processo, responsável pela decisão de mérito, em relação aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação”.
Ainda da análise do projeto 156/2009, observa-se que o juizado das garantias tem competência ampla, abrangente de todas as infrações penais, excetuadas apenas as de menor potencial ofensivo, atualmente reguladas pela Lei 9.099/95 e que, de acordo com o PLS 156, passarão a obedecer o rito sumaríssimo (art. 257, §1º, III), cuja essência é exatamente a mesma da referida lei ordinária. A exceção se justifica na medida em que a prática dessas infrações enseja a lavratura de termo circunstanciado, e não a instauração de inquérito policial. Não há, nesses casos, ao menos como regra, investigação criminal, mas apenas a colheita dos dados necessários à identificação do infrator, da vítima e das testemunhas, bem como a narração resumida do fato delituoso com suas circunstâncias (Giacomolli, 2009, p. 85). Por isso, não havendo previsão de adoção de medidas investigativas restritivas de direitos individuais por parte da autoridade policial, afigura-se sem sentido a figura do juiz das garantias nesses casos.
Essa competência, ainda de acordo com a redação do artigo 16 do projeto em questão, cessa com a propositura da ação penal. Impositivo notar, aqui, a referência à propositura, e não ao recebimento da denúncia. Não será, pois, pela redação do projeto em comento, da competência do juiz das garantias receber a denúncia, ou mesmo determinar a notificação do denunciado para apresentar resposta à acusação, em procedimentos como os previstos na Lei 11.343/06 e nos casos de crimes cometidos por funcionários públicos, pois, em tais hipóteses, a denúncia já foi proposta.
Por fim, consta, ainda do mesmo artigo 16, que uma vez proposta a ação penal as questões pendentes serão apreciadas pelo juiz do processo, compreendido esse como o responsável pela instrução criminal, que as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o magistrado do processo, quem poderá, após o oferecimento da denúncia, reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, bem como que os autos que compõem as matérias submetidas à apreciação do juiz das garantias serão apensados aos autos do processo de instrução.
A não vinculação das decisões tomadas pelo juiz das garantias, em relação ao juiz da instrução, é decorrência lógica da independência que rege a função jurisdicional. Essa independência, porém, encontra limitação no próprio dispositivo legal, quando destaca que poderá o magistrado do processo reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, sugerindo não ser possível o reexame das que restaram indeferidas. Aqui, contudo, é preciso estabelecer um ponto de corte, a fim de não incorrermos em equívocos: a interpretação do dispositivo legal em questão deve ser no sentido da vedação de reexame das medidas cautelares indeferidas desde que com base exclusivamente nos elementos de convicção colhidos durante a investigação pré processual, com base nos quais a medida já fora anteriormente indeferida pelo juiz das garantias. Havendo novos elementos de convicção, resultantes da prova produzida durante a instrução criminal, não há como negar ao juiz do processo a possibilidade de, por exemplo, determinar a interceptação das comunicações telefônicas, a quebra do sigilo fiscal, bancário e telefônico, ou mesmo a prisão cautelar do réu.
A crítica, neste ponto, fica por conta da redação do artigo 16, § 1º, segundo a qual as questões pendentes serão decididas pelo juiz do processo. Aqui, tem-se claramente a possibilidade de contaminação do juiz pelos elementos de convicção produzidos no inquérito policial, exatamente em sentido contrário ao objetivo do instituto proposto pelo projeto. Melhor seria, a propósito, que todas as postulações da autoridade policial ou do Ministério Público, referente à investigação criminal, fossem decididas pelo juiz das garantias, e só depois fosse oferecida a denúncia.
Além disso, importa considerar que a cessação da competência do juiz das garantias com a propositura da ação penal, de forma tornar competente para o recebimento da denúncia o juiz do processo, gera o inconveniente de impor a esse magistrado o necessário exame dos elementos indiciários colhidos na fase pré processual, a fim de verificar a existência de justa causa para o processo penal. Aproxima-se, outra vez, o juiz do processo dos elementos colhidos na investigação. O exame dos autos da investigação preliminar retira o distanciamento que a figura do juiz das garantias pretende propiciar ao magistrado do processo. Melhor seria, pois, que o próprio juiz das garantias fosse o competente para o recebimento da denúncia, encaminhando os autos, ao magistrado competente para a instrução criminal.
Considerações finais
Ao fim e ao cabo, trata-se, o juizado das garantias, de um instituto processual cuja principal finalidade é a de garantir um maior distanciamento entre o juiz responsável por proferir a decisão penal e os elementos indiciários colhidos durante o inquérito policial, no intuito de minimizar, o quanto possível, a contaminação subjetiva do magistrado e, com isso, privilegiar a garantia da imparcialidade.
Não há, nessa proposta, como tem sido referido por alguns, a intenção de criar no Brasil um juizado de instrução, tal como existe na Espanha, onde o juiz é o responsável pela investigação criminal.
No aspecto aqui analisado, e com algumas poucas alterações, o instituto surge como um divisor de águas na sistemática processual brasileira, aproximando-a de um modelo acusatório e democrático de processo penal. Já era tempo da legislação processual se render ao preceitos da Constituição Federal.
Referências bibliográficas
Brasil. Senado. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, 2009.
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
GIACOMOLLI, Nereu José. Atividade do juiz criminal frente à Constituição: deveres e limites em face do princípio acusatório. In: Sistema Penal e Violência. Coord. Ruth Maria Chittó Gauer. Págs. 209-230. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006.
_______. Juizados especiais criminais – Lei 9.099/95. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. v. I. 3.ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008.


André Machado Maya, Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS, especialista em Ciências Penais pela PUCRS e em Direito do Estado pelo UniRitter. Assessor de desembargador junto à 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES.

Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009

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