quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Artigo: O bêbado e o equilibrista?

Circula na internet parecer jurídico da lavra da Advocacia-Geral da União elaborado a partir de nota técnica do corpo de consultores jurídicos do Departamento de Polícia Rodoviária Federal que deverá causar preocupação não só aos constitucionalistas, mas também aos estudiosos do direito e do processo penal. Trata-se do Parecer nº 121/2009/AGU/CONJUR/DPRF/MJ(1).
Como ali consta, trata-se de um “estudo sobre a legalidade e obrigatorie­dade de uso de etilômetro, no sentido de uniformizar o tratamento do tema no âmbito deste Departamento” (de Polícia Rodoviária Federal).
As preocupações nascem das erradas premissas da nota – “análise acerca da legalidade do uso do etilômetro,” evoluem no decorrer do texto e culminam com as conclusões do tal parecer subscrito por membro da AGU.
Mesmo que seja suficientemente preocupante ler o entendimento na tal nota de que “não existe na Constituição Federal do Brasil, de forma expressa, dispositivo prevendo que ninguém seja obrigado a produzir provas contra si”, tão incompreensível quanto isso é a tentativa de colocar em pé de igualdade os artigos 8º, “g” e o 32, ambos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Se por um lado se atesta desconhecer a incorporação pelo direito positivo brasileiro – justamente aquela tão festejada por quem aprecia nosso texto e os direitos que lá estão explícitos ou não, como se sabe ocorrer com o artigo 5º, §§ 2º ao 4º da Carta – por outro se confundem as estruturas normativas: a garantia do art. 8º significa não um mandamento de otimização (respeite-se a garantia na medida máxima em que e quando for possível ser respeitada); não é só uma recomendação ética e nem uma norma que não contenha uma regra no sentido de aplicação tudo ou nada. Como a legalidade penal, na forma de incidência o privilégio contra a autoincriminação é uma regra:ou se aplica ou não se aplica. Não há meio-termo; não é sopesada ao sabor da densidade do que se lhe queira abalançar em sentido contrário(2) Distinta normativamente da garantia é o que a própria Convenção nomeia de “correlação entre deveres e direitos”, que remonta à ideia liberal de que o direito de um acaba onde começa o direito do outro. Mais: mesmo que o nemo tenetur fosse princípio e não regra, justamente por tratar, no dispositivo do art. 32, de “correlação”, o sopesamento não poderia apagá-lo (o princípio); não poderia, seja qual fosse o caso, tirar-lhe a eficácia.
Interpretar duas normas (uma regra e um princípio) com incidências distintas e não oponíveis entre si, não autoriza nem a dizer que o artigo 32 da Convenção relati­vi­za o âmbito do privilege against self-incrimination (principalmente se em vista de situação pré-determinada tendo em conta uma meta pública perseguida(3), e nem muito menos (muito menos, cara pálida!) que, como diz a nota, “na gama dos objetivos citados no Pacto, está claro que a proteção dos direitos coletivos se encontra acima da proteção dos individuais, não se confundindo e sim sobrepondo-se aos apontados direitos fundamentais de presunção da inocência e proibição da auto-incriminação”. O caso não é de colidência de princípios e já está na hora de pararmos de pensar na falsa oposição apriorística entre o que se apresenta como individual e o que nos apresenta como coletivo. É de complementaridade que se trata e o respeito ao público ou coletivo arranca fundamentos do respeito às próprias garantias individuais.
Impressiona a tentativa do velho discurso travestido na leitura de novo documento e pretensamente novas – mas comumente sincréticas(4)– interpretações: caminhou-se tanto para colocar os direitos fundamentais na centralidade da conformação dos Estados de Direito (alguém se lembra do Rechtstaat alemão pré- segunda guerra?) e, em pleno ano de 2009 se insinua a velha lição de que o “direito fundamental coletivo” deve se sobrepor ao “direito fundamental individual”.
Com tal forma de ver as coisas, a partir da noção utilitária do que se almeja conseguir (como no caso da nota, “com o objetivo de diminuir a quantidade de acidentes de trânsito causados por motoristas embria­gados”), tenta-se fazer com que uma política pública utilitarista sacrifique o homem e sua individualidade a serviço da meta. Gera desalento, depois de Kant, patrono da ideia de que dignidade humana sintetiza-se na ideia de que o homem é um fim em sim mesmo e não um meio para a satisfação alheia (é por isso que ela, a dignidade humana, tem Würdigkeit, e não Wert), colocá-lo a serviço de alguma ideia de “bem comum” circunstancial.
Com essas premissas e essas considerações da nota, paradoxalmente não estranha que a AGU, no tal parecer, tenha considerado o entendimento adequado e inclusive tenha sugerido ao final que “caso o condutor nega-se (sic) a fazer o teste este deve ser enquadrado no crime de desobediência do art. 330 do Código Penal”. Tal entender atesta flagrante desconhecimento também de norma imposta pela própria lei de trânsito já vigente (Código de Trânsito Brasileiro, com redação da Lei 11.705/2008) que prevê medidas administrativas ao recalcitrante na produção de prova contra si (art. 165, § 3º), tudo a afastar, na raiz, a cogitação do tal crime.
A conclusão do parecer desconsidera não só a evolução no sistema do common Law do privilege against self-incrimination(5) como a noção agudizada entre nós – que, sim, temos a garantia insculpida na Constituição, cara pálida! – de que “o nemo teneturse detegere é direito fundamental do acusado. É que o exercício regular de um direito não pode caracterizar crime, nem acarretar conseqüências prejudiciais ao acusado. A recusa é legítima”(6). Mais que isso, nem se resolve o problema pois se deixa em aberto a propalada proteção ao trânsito: ou será que alguém escolheria ser processado por crime apenado com o mínimo de 01 ano de detenção (art. 306, CTB) ao invés de conduta punível com pena máxima de 06 meses de detenção (art. 330, CP)? Nem aos utilitaristas, pois, o argumento serve.
Ressalvada a necessidade de maior estudo sobre a constitucionalidade da lei vigente em si, anseia-se, pelo menos, a revisão do parecer objeto dessas linhas, não só pelos contra-argumentos que aqui foram lançados como também, por apego aos clássicos brasileiros, parecer ser correta a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello: “Poderá haver um interesse público que seja discordante do interesse de cada um dos membros da sociedade? Evidentemente, não. Seria inconcebível um interesse do todo que fosse, ao mesmo tempo, contrário ao interesse de cada uma das partes que o compõem. Deveras, corresponderia ao mais cabal contra-senso que o bom para todos fosse o mal de cada um, isto é, que o interesse de todos fosse um anti-interesse de cada um”(7).
Não se leia a crítica como apologia aos bêbados. Mas, com argumentos assim, os pareceristas é que mal se equilibram.
NOTAS
* Agradeço ao amigo Diogo Malan pelo encaminhamento da notícia e por me manter sempre com o espírito crítico alerta.
** Com a superveniência da Instrução Normativa nº 03, de 25.08.2009, do Departamento de Polícia Rodoviária Federal que, em seu artigo 19, com muita sobriedade, isentou de responsabilização criminal hipotética aquele que se recusar à submissão aos procedimentos de fiscalização de estado etílico, o autor chegou a considerar que este artigo não tinha mais motivo para ser trazido a público. Parece, contudo, que as razões do texto permanecem, quer porque é elogiável a postura dos agentes da polícia judiciária federal, quer porque a irresignação com o entendimento contido no parecer da A.G.U. parece justificar, ainda, o questionamento público.
(1) A cópia do citado parecer e da nota técnica que motivou sua confecção pode ser encontrada em http://s.conjur.com.br/dl/parecer-agu-etilometro.pdf
(2) No sentido do texto, com suas próprias e autorizadas palavras, Virgílio Afonso da Silva. A Constitucionalização do Direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 36.
(3) Mesmo que se conheça a problemática da ponderação que, segundo alguns, permite-se ver entre princípio e política pública (Daniel Sarmento. Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional. In: Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Daniel Sarmento (coord.) Rio de janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 85.
(4) Mais uma vez, a nada desautorizada lição do professor titular de Direito Constitucional da USP é uma voz que, conquanto alentadora, talvez ainda pregue no deserto: “Não é difícil perceber que a doutrina jurídica recebe de forma muitas vezes pouco ponderada as teorias desenvolvidas no exterior e, nesse cenário, a doutrina alemã parece gozar de uma posição privilegiada, já que, por razões desconhecidas, tudo o que é produzido na literatura jurídica germânica parece ser encarado com revestido de uma aura de cientificidade e verdade indiscutíveis”. (Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In Interpretação Constitucional. Virgílio Afonso da Silva (coord.). São Paulo: Malheiros. 2005, p. 116). Aliás, para não ir tão longe, basta uma leitura da obra de Konrad Hesse citada na nota para desconstruir a ideia falsa da suposição de que os condutores de veículos enquadrar-se-iam no chamado “grupo especial”, a submetê-los à acriticamente reproduzida noção de “relação de poder especial”.
(5) Por todos, ler Leonard W. Levy. Origins of the fifth amendment. The right against self-incrimination. Chicago: Ivan R. Dee. 1999.
(6) Maria Elizabeth Queijo. O Direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio Nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva. 2003, p.370.
(7) A noção jurídica de “interesse público”. In: Grandes Temas de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2009. p. 182.

Renato Stanziola Vieira, Mestre em Direito Constitucional (PUC/SP), membro do Instituto de Defesa do direito de Defesa e criminalista em São Paulo.

Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009

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