sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Artigo: Delação premiada no brasil: do quê exatamente estamos falando?

1. Como se trabalha com a delação premiada?
A colaboração espontânea, mais conhecida como delação premiada, tem ocorrido no País inteiro, tanto no âmbito da Justiça Estadual como no da Justiça Federal. Não apenas os juízes de primeira instância se ocupam desse instituto, também os tribunais são chamados a solver questões relacionadas com a delação. Se não, em último caso, reveem penas cuja fixação precisa levar em conta os termos constantes de acordos firmados entre a acusação e a defesa.
Apesar disso, a delação apresenta inúmeras dificuldades em sua aplicação. Boa parte delas advém da insuficiente legislação brasileira(1), que não define com clareza todos os contornos do instituto nem o procedimento a ser seguido. Assim, na prática, cada caso produz uma solução diferente. O acordo pode ser proposto em audiência, às vezes pelo próprio magistrado; em outras ocasiões, é formalizado por escrito, após longas tratativas entre o Ministério Público e o acusado/defesa, adotando a forma de um contrato. Todavia, nem todos os juízes reconhecem ao Ministério Público o poder de negociar termos e condições, ficando, eles próprios, distantes desse processo. E pior: nem sempre o juiz se acha obrigado a respeitar um acordo homologado por outro magistrado e cumprido pelo acusado em todas as suas cláusulas.
Outra dificuldade decorre do fato de ser o instituto originário da experiência estrangeira, com larga utilização nos países da common law. A lógica da justiça negociada não é própria do sistema brasileiro(2), e a transposição pura e simples da plea bargain poderia entrar em choquecom alguns princípios constitucionais relativos ao processo penal.
Para complicar, é preciso considerar que a natureza do institutopode variar de acordo com o fim a que se destina. Assim, a plea bargain pode ser utilizada, por exemplo,
a) para reduzir o tempo de solução de um caso penal, propiciando uma resposta mais rápida para o réu e para a sociedade (redução da impunidade) e priorizando os recursos da máquina judiciária para processar apenas os casos mais complexos e/ou relevantes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a guilty plea (declaração de culpa e renúncia ao direito de ser processado por um tribunal de júri) encerra em torno de 90% dos casos(3), o que a torna parte essencial do sistema de administração da justiça criminal norte-americana.
b) como técnica especial de investigação, quando um membro de uma organização criminosa (estrategicamente importante mas jamais seu líder) irá apontar à polícia judiciária e ao Ministério Público os caminhos para elucidação do crime e para a obtenção das provas. Essa técnica é recomendada por organismos internacionais tais como a ONU e o GAFI – Groupe d´Action Financière, e prevista em Convenções internacionais (Palermo e Mérida) às quais o Brasil aderiu, assumindo, em consequência, o compromisso jurídico de implementá-las.
c) para permitir o julgamento de um maior número de autores de crimes internacionais, dentro de uma ótica de justiça restaurativa. A assunção de culpa e aceitação de pena por todos os crimes cometidos em casos de genocídio e crimes contra a humanidade propicia a responsabilização do agente e permite coletar um grande número de informações para responsabilizar outros agentes mais gra­dua­dos e que não tenham participado dos atos executórios. Além disso, as famílias das vítimas podem co­nhecer os detalhes do crime e a localização dos corpos. O reconhecimento público da responsabilidade criminal pode representar a verdade oficial de que os crimes ocorreram e da quantidade de vítimas que pereceram, reconstruindo a verdade para uma determinada etnia ou sociedade(4).
Sendo tão variadas as formas e distintas as funções, percebe-se que não basta importar teorias ou aplicar soluções prontas. Ao mesmo tempo em que é essencial conhecer outras práticas, impõe-se o desafio de pensá-las à luz dos princípios do nosso sistema jurídico. Como já sustentamos em outra oportunidade(5), a negociação e o acordo de delação premiada podem ser realizados de maneira a respeitar os princípios da jurisdicionalidade, do direito de defesa, da garantia do sistema acusatório e da presunção da inocência.
2. As questões que demandam respostas uniformes
Existem, portanto, problemas fundamentais a resolver: quem pode propor o acordo? Apenas o Ministério Público? Ou o juiz também tem este poder? O acordo pode existir sem a concordância e a participação do Ministério Público? Quais as formas possíveis – oralmente, em audiência? Ou por escrito, com cláusulas e condições, como num contrato? Até quando ele poderá ocorrer – apenas durante a investigação, também durante o processo até antes da prolação da sentença, ou mesmo depois dela? Qual o papel do juiz? Ele pode participar da negociação? O acordo precisa ser submetido à homologação judicial para ter validade? Depois de homologado, o acordo vincula o Poder Judiciário? Um juiz pode alterar o acordo? Ou rejeitá-lo? Se houver sido rejeitado pelo juiz, mesmo assim é possível subsistir algum tipo de avença, que favoreça tanto à acusação quanto ao acusado? O acusado pode desistir do acordo, se o juiz rejeitá-lo? Quando o acordo é rescindido por culpa do acusado, a prova até então produzida pode ser usada contra ele? Qual o âmbito e os efeitos do acordo? Apenas o processo no qual é firmado, ou pode alcançar outros processos, inclusive aqueles nos quais o colaborador não foi denunciado? Qual o papel da defesa? Ela deverá assistir o acusado em todos os momentos, desde o primeiro contato com a polícia ou Ministério Público (quando começa se manifestar o interesse pela delação premiada) até o final da fase produtiva? Ou o acusado pode firmar o acordo sem a assistência de advogado? Quais os tipos de benefícios possíveis? Redução de pena? Perdão judicial? Suspensão do processo pelo prazo de validade do acordo, que pode ser fixado no prazo prescricional? Ou até mesmo deixar de ser denunciado? É possível que os benefícios alcancem a fase da execução penal, prevendo determinados regimes de pena, ou local e condições de encarceramento? Qual é a validade da prova produzida através de um acordo de delação? O colaborador precisa testemunhar? Qual o direito dos corréus delatados em: a) saber da existência da delação; b) conhecer a identidade do delator; c) co­nhe­cer os termos e as condições do acordo; e d) conhecer as provas assim produzidas, a fim de contraditá-las? Como deve ser feito o controle do acordo? Deve ficar em autos separados? É sempre necessário o sigilo? Quem avalia a qualidade da colaboração, para que sejam concedidos os benefícios propostos? O acusado pode apelar, se a sentença não reconheceu o direito aos benefícios que lhe foram oferecidos? Existe mesmo o princípio da obrigatoriedade da ação penal no Brasil? Até que ponto?
Estas questões, entre outras, são as que necessitam ser esclarecidas pela doutrina e pela jurisprudência, até que a lei o faça (ou mesmo depois disso).
3. Algumas soluções possíveis
Como essas dificuldades são enfrentadas em outros sistemas? No âmbito do Direito Penal Internacional existem diferentes situações. As normas de processo do Tribunal Penal Internacional não pre­veem expressamente a negociação e o acordo entre a acusação e o acusado, mas reconhecem implicitamente sua possibilidade, ao determinar que a fixação da pena pela Corte considerará como minorantes a cooperação a ela prestada e os esforços do acusado para compensar as vítimas(6).
Já os Tribunais Especiais da ONU - onde ocorreram diversos casos de delação premia­da - possuem regulamentação sobre o tema. No caso do Tribunal Especial para a antiga Iugoslávia e do Tribunal Especial para Ruanda, as normas exigem que o acordo de colaboração seja trazido ao conhecimento da Corte em sessão pública, tão logo houver sido concluído entre a acusação e o acusado.
Além disso, o acordo não vincula a Corte - contudo, ao fixar a pena, ela levará em consideração a colaboração prestada à acusação, antes ou depois da condenação. Se esta houver sido substancial, poderá ser considerada como circunstância mitigante(7) .
Nos Estados Unidos existem padrões mínimos fixados pela American Bar Association, em relação às plea bargaining(8). Os standards recomendam que as Cortes não participem das discussões entre acusadores, defensores e imputados. Caso um acordo seja alcançado, esse deverá ser trazido ao conhecimento da Corte, que poderá tanto aceitá-lo como rejeitá-lo. Se a Corte aceitar o acordo, ficará vinculada a seus termos, informando ao imputado que irá adotá-lo no julgamento, e fixará a pena nos limites ali previstos ou em quantidade mais favorável. Caso a Corte rejeiteo acordo, deverá informar as partes desse fato, advertindo o imputado que não ficará vinculada a seus termos, dando-lhe a oportunidade de voltar atrás, para desistir tanto do acordo como da declaração de culpado.
A solução americana, nesse ponto, parece adequada, porque preserva a independência do magistrado (permitindo-lhe aceitar ou não o acordo) ao mesmo tempo em que garante os direitos do acusado: a prova obtida através do acordo de colaboração do qual o imputado posteriormente desistiu (em razão da rejeição pela Corte) não poderá ser usada contra ele em qualquer juízo cível ou criminal. Preserva-se, igual­mente, o interesse da acusação, porque se a rescisão do acordo ocorrer por culpa do imputado – que não cumpriu as obrigações assumidas – a prova até então obtida poderá ser usada contra ele.
As normas do processo penal federal norte-americano(9) seguem, em grande parte, esta linha. Existem duas possibilidades de acordo: os chamados tipo ‘B’ – que vinculam apenas a acusação – e os tipo ‘C’, que vinculam também a Corte, pelo fato de esta ter aceitado o acordo de colaboração. Apesar de a Corte não ser obrigada a aceitar o acordo e a considerá-lo na fixação da pena, pode ser interessante para o acusado firmar um acordo do tipo ‘B’ com a acusação, porque então ele terá a certeza do que essa irá recomendar, em termos de limites de pena, e fica livre para apelar da sentença que for imposta pela Corte em parâmetros superiores aos recomendados.
Ainda que se aproveitem as soluções encontradas por outros países, contudo, não se deve desconsiderar um dos efeitos colaterais dos acordos de delação premiada, que pode não ser tão bem meta­bo­li­za­do no sistema brasileiro: o deslocamento de poder que se verifica entre os sujeitos do processo. Do reforço do papel do Ministério Público na delação premiada decorre, na mesma medida, o distanciamento do juiz da causa, que passa a ter menos oportunidades de gerir a prova. Tivéssemos já o tal processo penal de partes, próprio do sistema acusatório desenhado pela Constituição Federal desde 1988, esta não seria mais uma dificuldade...
NOTAS
(1) Mais especificamente, as leis 7.492/86, §4° do art. 159 do Código Penal, 8.072/90, 8.137/90, 9.034/95, 9.613/98, 9.807/99 e 11.343/06.
(2) Apesar de já se estar utilizando a transação penal desde a edição da lei 9.099/95. Nos crimes de menor potencial ofensivo, o Ministério Público pode propor aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, que será fixada pelo Juiz caso o autor do fato aceite a proposta (ou seja, aceitação e imposição de pena sem processo, com renúncia aos direitos de defesa e do contraditório).
(3) COMBS, Nancy Amoury. Guilty Pleas in International Criminal Law – Constructing a Restorative Justice Approach. Stanford University Press: 2007, p. 4.
(4) Idem, p. 136-143.
(5) DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro – Ideologia da criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p.199-211.
(6) ICC Rules of Procedures & Evid. 145, 2, a, ii.
(7) ICTY, R.P. & Evid., 62ter, B e ICTR R.P. & Evid., 62, B , iii e C.
(8) ABA Minimum Standards for Criminal Justice – Standards Relating to Pleas of Guilty, Ch 14 (1986).
(9) Federal Rules of Criminal Procedure, Rule 11 – Pleas.


Carla Veríssimo De Carli, Procuradora Regional da República em Porto Alegre/RS. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.

Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009

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