domingo, 25 de outubro de 2009

Drogas: América Latina busca alternativas

Na I Conferência Internacional sobre Políticas de Drogas - realizada na Argentina, nos dias 6 e 7 de agosto, pela organização civil Intercambios -, ficou claro que vários países latino-americanos já deram os primeiros passos em direção a políticas de drogas que se distinguem do proibicionismo radical aplicado até o momento, conferindo, assim, um papel mais ativo à região na discussão internacional sobre o tema.

Entre essas primeiras ações dissidentes está o indulto a 1.500 vendedores de pequenas quantidades de drogas ilegais no Equador; a campanha diplomática da Bolívia para defender o uso ancestral da coca; a aplicação do princípio de redução de danos em centros terapêuticos no Uruguai; a criação de uma comissão multidisciplinar para estimular o debate sobre uma reforma legal no Brasil; e as primeiras decisões judiciais a favor da descriminalização do usuário na Argentina.

Depois da Conferência, aconteceram mais duas importantes mudanças: na terça-feira (25), a Corte Suprema da Argentina emitiu uma decisão judicial segundo a qual a lei de criminalização do usuário na Argentina carece de base constitucional e discriminalizou o uso de pequenas quantidades de maconha. No México, o presidente Felipe Calderón assinou uma lei que proíbe a punição legal do usuário de drogas.

No encontro de Buenos Aires, realizado na Câmara dos Deputados, compareceram 650 convidados - entre congressistas, juízes, funcionários do governo, pesquisadores e cientistas - para tratar alguns dos temas mais urgentes dos países latino-americanos: o drama da superpopulação carcerária na maioria das nações, o crescimento do crime organizado, o Plano Colômbia e a crise política da região andina e a dependência dos jovens mais vulneráveis ao crack no Brasil e ao 'paco' (outro subproduto da cocaína) na Argentina.

As declarações do chefe de gabinete do governo argentino, Aníbal Fernández, e de um dos juízes da Corte Suprema de Justiça argentina, Eugenio Zaffaroni, endossaram a tese de que o modelo utilizado até hoje para enfrentar o problema das drogas necessita urgentemente de uma modifcação, pois está fortalecendo o crime organizado e acabando com as chances de recuperação dos dependentes.

Citando os 30 mil mortos na região devido à aplicação desse modelo, Fernández reiterou que "a guerra contra as drogas baseada na criminalização do consumidor fracassou. Devemos tratar o consumidor como uma pessoa que deve ter seus direitos respeitados e admitir o fracasso das políticas repressivas da região - particularmente o fracasso da atual lei de drogas do nosso país (Argentina). Temos que direcionar as estratégias de repressão para uma luta implacável contra o narcotráfico, a corrupção e o crime organizado".

Antecipando a decição judicial feita pela Corte Suprema, durante a Conferencia o chefe de Gabinete disse que o governo argentino já estava à espera de uma decisão judicial referente à descriminalização do usuário, que se converteria em um ponto de partida para outras mudanças na política de drogas argentina. "Eu mentiria se não dissesse que esperamos quase com impaciência uma sentença muito importante, uma decisão que não vai descriminalizar nada; no melhor dos casos, vai elaborar a inconstitucionalidade do castigo penal a um usuário penal", disse Fernández.

Fernández também anunciou à imprensa local que o governo argentino se prepara para propor ao Congresso uma nova lei de drogas até dezembro. A proposta levará em conta as sugestões feitas por um comitê científico que estuda o tema.

O Ministro Zaffaroni, por sua vez, reiterou que o uso - ou abuso - de drogas deve ser tratado como um problema de saúde, que não se resolve mandando os usuários para a cadeia. Em meio a várias interrupções, protagonizadas por jovens de um grupo conservador, Zaffaroni disse que o tratamento dos usuários como pacientes não significa descuidar do combate ao crime organizado. O juiz exigiu que não sejam desperdiçados esforços no controle do paco, uma droga de baixa qualidade e altamente viciante, cujo consumo vem aumentando nas chamadas villas argentinas, bairros de baixa renda e infraestrutura precária.

Assim, na mesa de abertura ficou delineado o estado da discussão sobre a política de drogas na Argentina, onde - de acordo com uma pesquisa da Intercambios e da Universidade de Buenos Aires - 70% dos processos judiciais relacionados com drogas são por posse para uso pessoal, 20% por simples posse, e apenas os 10% restantes são casos de narcotráfico.

Todas essas questões foram reforçadas pelo Comitê Científico Assessor em Matéria de Drogas do Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos da Argentina, que acaba de publicar um documento sobre os usuários de drogas e sua situação jurídica. Nesse documento, um grupo integrado por vários juízes ressalta que o consumo de entorpecentes não pode ser considerado um delito, e sugere fórmulas alternativas.

Por sua vez, o deputado brasileiro Paulo Teixeira, um dos integrantes da nascente Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, explicou que está trabalhando em uma proposta legislativa de cinco pontos: descriminalização do uso e da posse de drogas para consumo pessoal; penas alternativas para a venda de pequenas quantidades - quando o ato for cometido sem armas, sem conexão com o crime organizado e quando se tratar de um réu primário; diferenciação entre usuários e traficantes; ampliação das ações de redução de danos já implementadas; e autorização do cultivo pessoal e do uso terapêutico da maconha.

Teixeira citou uma pesquisa recém-publicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), segundo a qual 56% dos condenados por infringir a lei de drogas estava sendo detido pela primeira vez; 84% não portava armas; 60% estava sozinho e não pertencia a nenhuma facção criminosa; 50% dos condenados por tráfico de maconha portava menos de 100 gramas, e, apesar disso, em nenhum dos casos a lei permitiu penas alternativas. "O estudo demonstra que a lei de drogas brasileira aumenta o dano aos usuários, pois, na prisão, os detentos ingressam no crime organizado", observou.

Drogas e geopolítica

Em outro painel, foi discutido o tema da geopolítica das drogas na região. A tese inicial do debate era de que a guerra contra as drogas adquiriu conotações ideológicas e econômicas. "Nos EUA, a estratégia foi a erradicação de cultivos com vários instrumentos: a DEA e a CIA. O resultado não foi o buscado, não se conseguiu erradicar, mas a repressão se intensificou, especialmente com o chamado Plano Dignidade. Esse plano, somente em 2002, produziu 14 feridos e 10 mortos, no marco das políticas de 'coca zero'", revelou o boliviano Froilán Castillo Siles, chefe da Secretaria de Coordenação do Conselho Nacional de Luta Contra o Tráfico Ilícito de Drogas (Conaltid). Para o especialista, frente a esse panorama, "cabe se perguntar se o enfrentamento foi contra o tráfico ou contra os produtores e a folha de coca".

Os membros da mesa manifestaram sua preocupação com o acordo entre Colômbia e EUA que permite que militares desse país usem sete bases militares em território colombiano, o que desencadeou a mais recente crise diplomática entre Colômbia e Venezuela.

Em sua fala, o analista colombiano Ricardo Vargas Meza, diretor da Ação Andina e membro associado do Transnational Institute (TNI), afirmou que a ONU e os EUA vêm manipulando as cifras sobre erradicação para dar a falsa impressão de que o Plano Colômbia tem conseguido abalar o cultivo de coca e a produção de cocaína. Da mesma forma, alertou sobre um processo de criminalização das estruturas do estado nesse país andino.

Por sua vez, o pesquisador Juan Gabriel Tokatlian, professor da Universidade Torcuato Di Tella, da Argentina, fez três recomendações para serem levadas em conta no redesenho da política de drogas no continente: legislações moderadas, estabelecendo diferenças segundo o tipo de drogas; exigir coerência entre as políticas de direitos humanos, ambientais e de drogas; e incorporar a diplomacia cidadã realizada pela sociedade civil organizada para questionar as políticas atuais e propor alternativas.

Uma síntese


Um dos poucos convidados fora da América Latina foi o holandês Martin Jelsma, do Transnational Institute (TNI), que apresentou sete diretrizes que deveriam ser levadas em conta para avançar na formulação de políticas mais humanas e eficientes. Essas diretrizes são: que os debates sejam centrados em provas, e não em princípios ideológicos; que se faça uma diferenciação entre as substâncias, seus padrões de uso e entre as plantas naturais e os componentes isolados (princípios ativos); que o conceito pragmático de redução de danos substitua o conceito idealista de "um mundo livre de drogas"; que haja flexibilidade com as comunidades indígenas, para não atropelar os seus direitos; que as políticas se baseiem no respeito aos direitos humanos e que apliquem o princípio da proporcionalidade; que se busque a erradicação da pobreza e da fome; e que em todo o processo haja um forte envolvimento da sociedade civil.

O encontro foi um evento no qual grande parte da América Latina teve verdadeira representatividade, e onde ficou esboçado o interesse da maioria dos países em criar normas que permitam tratar os usuários como pacientes e, em algumas nações, leis através das quais se ofereçam alternativas penais aos elos mais frágeis da cadeia do tráfico de drogas ilícitas.

Como disse Graciela Touzé, presidente da Intercambios, a ideia era avaliar as consequências para a América Latina das políticas punitivas. "Nos referimos ao isolamento e encarceramento desproporcionado de usuários de drogas e de 'mulas'; à perseguição e empobrecimento de populações camponesas submetidas à erradicação forçada de cultivos - sem alternativas sustentáveis; à violência social e à violação de direitos humanos básicos".


Declaração do Comitê Científico da Argentina (arquivo em espanhol em formato PDF)

Fonte: Comunidade Segura.


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