domingo, 18 de outubro de 2009

Artigo: Uso indevido de informação privilegiada: a (re)descoberta de um novo crime

Com a proteção da Ordem econômica e a regulamentação dos negócios, viu-se a necessidade de uma fiscalização interna no mercado financeiro de modo a proteger o segredo e prestigiar a publicação harmo­niosamente, sem interferir um na esfera de outro, fomentando, assim, o risco do negócio dentro do mercado de capitais. Partiu-se então a criminalizar a conduta daquele que faz uso de informação privilegiada.
Em apertada síntese, o tipo delituoso tem por objetividade jurídica o regular dos mercados de valores mobiliários em bolsas de valores, de mercadorias e de futuros, no mercado de balcão ou no mercado de balcão organizado, que não pode ser ilaqueado na fé publica que merece(1).
A razão de ser se insere no âmbito normativo do tipo penal pelos delineamentos éticos basilares no funcionamento de um mercado de valores que instituem confiança ao investidor e assegure uma igualdade de condições.
Se pensarmos, uma oferta pública, estrategicamente, de aquisições de ações requer que seu lançamento seja preparado em segredo, pois de outra forma o preço das ações da empresa que vá ser adquirida será supervalorizado.
Uma oferta pública ou uma fusão de empresas produz a valorização espetacular das cotas das ações, pois com o conhecimento que “aquela pessoa” (detentor da informação) detém, se adianta (dolosamente) e compra as ações da empresa que vai ser adquirida, seguramente quando as informações da operação tornam-se públicas, as cotas das ações serão elevadas (valorizadas), o que fará que venha a auferir vantagem (indevida).
Por essa razão, o mercado de valores deve harmonizar o segredo com a máxima informação pública, ou abraçando esta mesma ideia, Jacobo López Barja de Quiroga aduz que “por tal razón, el mercado de valores hay que conjugar el secreto com la máxima informactión pública. Cuanto más y mejor informado se encuentre el inversor, menos âmbito existirá para lãs informaciones confidenciales, y, ahí, em esse pequeño espacio – temporal y espacial - , es em el que debe exigirse totalmente la regla del secreto”(2).
O insider trading consiste na utilização de informações relevantes sobre valores mobiliários, por parte de pessoas que, por força de sua atividade profissional, estão “por dentro” dos negócios da emissora, para transacionar com valores mobiliários antes que tais informações sejam de conhecimento do público. Assim agindo, o insider compra ou vende valores mobiliários a preços que ainda não estão refletindo o impacto de determinadas informações, que são de seu conhecimento exclusivo(3).
De se notar que não é a divulgação antecipada de qualquer informação que atinge o bem jurídico, mas sim, aquela que tenha o condão de interferir efetivamente no bom andamento das negociações do mercado, sob pena de se ferir o princípio da lesividade.
Se a conduta não for capaz de propiciar vantagem ao agente ou a terceira pessoa, significa que a informação não era o suficiente importante(4) .
O delito protege um bem jurídico complexo e poliédrico que não se esgota na igualdade dos investidores. A percepção de que o bem jurídico protegido pela norma incriminadora do abuso de informação é uma realidade polifacetada ou poliédrica(5) impõe-se em resultado da que julgamos ser, em princípio, a atitude analítica mais curial.
O problema é equacionado se pensarmos sob qual ótica está direcionada a proteção do bem jurídico. Mesmo sendo um bem jurídico difuso, sob a ótica do mercado de capitais e seus investidores, poderíamos pensar e concluir que o ressarcimento do prejuízo causado, antes do recebimento da denúncia, impede o início de uma ação penal (tratamento dado ao estelionato)(6). Agora, se pensarmos que a proteção dos bens jurídicos esteja voltada sob a ótica dos negociadores que protagonizaram a aquisição ou fusão da empresas, veja que, embora sendo difuso, a proteção da tutela penal volta-se à confiabilidade, idoneidade que a empresa representa diante do mercado.
Embora o prejuízo possa ser ressarcido aos investidores que apostaram no negócio, o mesmo fato não acontece aos negociadores, que não poderiam prever suposta traição no mercado, por quem fora contratado justamente para se ter confiança. Se o risco é inerente ao negócio, e a aposta (estratégia) é voltada a esse fim, um segredo usado indevidamente prejudica todo o marketing e planejamento estratégico de um negócio. Neste mercado só participa quem aceita as regras do jogo.
Não se teve notícia, no Brasil, de nenhum julgamento de uso de informação privilegiada até o presente momento(7), o que dificulta uma análise empírica do tipo penal. Por outro lado, a própria CVM aponta critérios mínimos para a existência de indícios(8) e direcionando suas formas de consumação(9). Certamente haverá espaço para futuras discussões processuais como o exaurimento da instância administrativa, competência, consumação etc.
NOTAS
(1) PAULA, Áureo Natal de. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e o Mercado de Capitais. Comentários a lei 7492/86 e os artigos incluídos pela Lei 10.303/01 à Lei 6.385/76. Doutrina e Jurisprudência 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2009. p. 35.
(2) QUIROGA, Jacobo López Barja de. El abuso de informacion privilegiada. In: Curso de Derecho Penal Económico. Enriqui Bacigalupo (coord.), 2ª ed., Madrid: Marcial Pons, 2005. p. 336.
(3) Porém, a Instrução da CVM n. 31/1984 ampliou o elenco dos insiders, e presentemente, a Instrução CVM n. 358/2002, em seu artigo 13 dispõe que pode ser considerado insiders: a companhia; seus acionistas controladores, diretos ou indiretos, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal, ou de qualquer órgão com funções técnicas ou consultivas, criadas por disposição estatutária, bem como quem quer que, em virtude de seu cargo, função ou posição na companhia, sua controladora, controlada ou coligada, tenha conhecimento da informação relativa ao ato ou fato relevante.
(4) Nesse sentido conferir: CARVALHOSA, Modesto; EIZIRIK, Nelson. A nova lei das S/A. São Paulo: Saraiva, 2002., p. 548.
(5) COSTA, José de Faria. O crime de abuso de informação privilegiada (insider trading). A informação enquanto problema jurídico-penal.Coimbra:Coimbra, 2006., p. 37.
(6) Conferir julgado do STJ, no HC 85524, rel. min. Arnaldo Esteves Lima.
(7) Em 04 de maio de 2009, foi oferecida, e recebida posteriormente, a primeira denúncia de uso de informação privilegiada (Procedimento Investigatório n. 1.34.001.003927/2007-32). O juiz federal substituto Márcio Rached Millani, da 6ª Vara Federal Criminal em São Paulo, recebeu a denúncia contra dois ex-executivos da Sadia e um do banco ABN-Amro. Eles foram acusados de usar informações privilegiadas, obtidas em São Paulo, na bolsa de valores de Nova York, relativas à oferta da Sadia pelo controle acionário da concorrente Perdigão, em julho de 2006. O processo está sob segredo de justiça sob o n. 2009.61.81.005123-4, e que devera ser o primeiro caso paradigma que mostrará a orientação que os tribunais deverão adotar para a tipificação deste crime.
(8) Procedimento Administrativo Sancionador 004/2007: “O uso de informação privilegiada, caracterizado como prática não eqüitativa é aquele de que resulta, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialmente, em um tratamento para qualquer das partes em negociação com valores mobiliários, que a coloque em uma indevida posição de desequilíbrio ou desigualdade em face dos demais participantes da operação. Multas e absolvição são deveres do administrador do Clube empregar na defesa dos interesses dos condôminos a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios. Transgressão ao dever de diligência. Multas”.
(9) PAS: RJ2003/5627: “Configura uso indevido de informação privilegiada a aquisição de ações por membro do Conselho de Administração antes da divulgação pela companhia de decisão do Conselho que aprovou a aquisição das próprias ações - Incidência do disposto no artigo 13, § 3º, Inciso II, da Instrução CVM nº 358/02.” PAS: 0006/2003: “A caracterização do uso indevido de informação privilegiada acerca de uma determinada companhia pressupõe que tal informação seja relevante, o que pode ser medido pela oscilação de preço dos valores mobiliários de sua emissão. As companhias e instituições financeiras que atuam no mercado de capitais devem zelar pela existência de procedimentos eficazes no controle e uso de informações que possam ser consideradas privilegiadas, inclusive abstendo-se de negociar valores mobiliários que possam colocá-las em situações de potencial conflito de interesses”.

Daniel Del Cid, Pós-graduado em direito processual penal pela Escola Paulista da Magistratura;
Pós-graduado em Direito Penal Econômico Europeu (IBCCRIM-Coimbra); Pós-graduado em direito penal econômico pela Fundação Getúlio Vargas. Advogado Criminalista


CID, Daniel Del. Uso indevido de informação privilegiada: a (re)descoberta de um novo crime. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 09-10, out., 2009.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei seu artigo, já havia lido no Boletim do IBCCRim, agradeço a citação de minha obra, porém peço que também faça a remissão que a frase que diz respeito ao princípio dalesividade também é de minha lavra, qual seja: "De se notar que não é a divulgação antecipada de qualquer informação que atinge o bem jurídico, mas sim, aquela que tenha o condão de interferir efetivamente no bom andamento das negociações do mercado, sob pena de se ferir o princípio da lesividade." (confira-se item 3 de fls. 36 de minha 4ª edição). A partir daí é que a frase deve se referir aos autores citados na nota 4. Agradeço eventual correção da informação e desejo sucesso.

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