sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Artigo: TEORIA DO CRIME: uma divagação jurídica.


Fernando Cesar Faria*

Apontamentos sobre a Teoria do Crime, fato típico e ilícito e só...

"Todos hão de saber, porque sentirão, o que devemos exprimir pela palavra crime. Julgamos criminologicamente, quando irrompe dentro de nós, diante de certos fatos, a sentença: 'isto é um crime'! Este clamor provém da civilização que não se limita a 'invólucro dentro do qual arde a paixão selvagem do homem (Carlyle). Há até uma sistematização subjetiva lançada na consciência humana através de um direito natural que ficou no verbo e agora será conquista, convicção, ação".[1]

1 - Introdução e Posicionamento do Direito Penal frente a atual Verticalização da Ciência Jurídica:

Um Direito penal justo não deve ser apenas visto sob o enfoque de mero meio que permita a ação do Estado sobre o cidadão (ação aqui encarada como punição), atingindo os mais valiosos bens e interesses, p. ex., a liberdade. Bem maior, após a vida. Registra-se que só o Direito penal tem esse "poder": retirar do cidadão o seu "ir e vir", de determinar o seu caminhar.
O Direito penal ao tempo que apaixona, demanda exaustivo esforço no sentido de interpretação e adequação à nova sistemática jurídica: a adequação de seus institutos frente a atual Constituição da República. Malgrado o Direito penal pertencer ao ramo do Direito Público, não se nega que a disciplina mereça reordenação e reinterpretação à luz da nova ordem constitucional.
Deve o Direito penal obedecer a verticalização a que determina a Constituição da República. Seus institutos só serão justos se e, somente se, forem compatíveis materialmente com a Lei Maior. É dizer, devemos primar pela verdadeira constitucionalização do Direito repressivo, o substantivo (material) e o adjetivo (processual).
Hoje, o Direito penal deixou as vestes de Direito repressivo, somente. Conceitos que eram fortes hoje já não são mais; é por isso que não há mais lugar para o Direito penal do autor. A nova diretriz dos valores humanos (materializado no primado do Estado de Direito da dignidade da pessoa humana - CRFB, art. 1º, inciso III), determina a adoção do Direito penal do fato.
Nada mais é do que uma conquista da sociedade moderna.
Como já assinalado, o Direito penal já não é mero instrumento de repressão do Estado. Não se nega que essa noção esteja impregnada no conceito de Direito penal moderno. O que não se concebe é dar vestimentas totalitárias a essa ciência tão importante na fragilizada sociedade contemporânea.
Mostra-se necessário trabalhos acadêmicos vocacionados a desatar as amarras que insistem em manter o Direito penal invadindo a esfera de direitos do cidadão, quando essa invasão não for estritamente necessária (é aqui que extraímos a natureza subsidiária do Direito penal). Ao Estado não é dado, pela nova ordem constitucional, tal desiderato.
Em verdade resume-se, uma das facetas do Direito penal, em delimitar a liberdade do cidadão. De forma consentânea, determina a atuação do Poder Punitivo, próprio do Estado Moderno. Não se nega que o Direito penal irradia a sua atuação para albergar a prevenção de fatos indesejados que a sociedade erigiu como crime ou contravenção (leia-se delito), afora a diminuição da violência social, materializada na ameaça da pena e de sua aplicação.
Da doutrina espanhola infere-se postulados que mais se aproximam do futuro de um Direito penal de garantias. O Prof. JESUS MARIA SILVA SANCHES acertadamente doutrina que se deve obediência a um conflito dialético de três aspirações, a saber: (i) mitigação da violência na sociedade por meio da prevenção do delito, (ii) mitigação da violência emanada do Estado pelo fato da redução dos castigos, e (iii) asseguramento dos direitos e garantias fundamentais que sejam aptos a efetivação da proteção do cidadão frente ao Estado.[2]
Tudo em nossa vida resume-se em evolução; é para isso que vivemos. Com o Direito não é diferente. A mudança há, sempre, que ser pro-ser. Em matéria constritiva de liberdade, por exemplo, a evolução é flagrante. Peguemos como paradigma argumentativa a custódia cautelar.
Reiteradamente a Corte Constitucional do Brasil (Supremo Tribunal Federal), reafirma dia-a-dia que se trata de medida excepcional, razão pela qual deve, sempre, estar calcada por imperativos constitucionais da fundamentação idônea obrigatória das decisões judiciais (CRFB, art. 93, inciso IX) e do estado jurídico de inocência (idem, art. 5°, inciso LVII), bem como preencher os pressupostos e fundamentos da prisão cautelar (CPP, art. 312).
A bem da verdade, entendemos que o Direito penal ganha lugar catedrático no meio jurídico geral, qual seja, dar contornos predefinidos para a função do Estado materializada em vigiar e punir, afora a prevenção de novos crimes e conseqüente diminuição da criminalidade que avilta a hodierna sociedade.
O Direito penal controla porque ameaça, coloca medo, e esta ameaça se materializa no conhecimento de que para aquele fato é garantida uma pena.

2 - Os Conceitos de Crime discutidos pela Doutrina Nacional e Internacional:

Por primeiro, pontua-se que o nome "crime" comporta vários significados, trata-se de termo equívoco (razão pela qual possui dois ou mais sentidos).
Existem várias concepções para o crime, vejamos as principais.
Em uma concepção teológica, por exemplo, crime tem a acepção de pecado, conduta eivada de mau. De logo descabido tal entendimento, ao menos em aguçada técnica jurídica, pois, encontra-se, nesta concepção, valoração extremada e desmedida da ética, que como é cediço, tão-somente, não resolve a questio juris à baila, que, a bem da verdade, pecado e delito são coisas bem diferentes, até porque, se formos colocar ambos (crime e pecado) em um grande caldeirão, o pecado o preencherá por inteiro, enquanto o crime tão-somente a metade, para não dizer que o pecado compreende toda a ética possível e imaginável, ao crime, podemos asseverar que seria, em relação a ética, um mínimo possível para a convivência em uma sociedade.
A propósito, deve ser rechaçada esta concepção. O motivo da repulsa reside no fato de se elidir a opção jurídica, se contentando, essa teoria, tão-somente, com sentido genérico e insuficiente da acepção moral e religiosa.
Merece consideração a concepção sociológica de delito. Para tal, o crime é um fato que se arrasta com os valores sociais, valores comuns em determinado "estado de pessoas", (leia-se comunidade). Improcedente a colocada acepção, pois, contrária da boa técnica jurídica, vez que não o conceitua sob o prisma normativo (necessária conceituação).
Atende, finalmente, a boa técnica os conceitos: formal, material e analítico de crime.
O crime sob o aspecto formal analisa tão somente a definição trazida pelo legislador ordinário. Seu maior defensor, o italiano ENRICO FERRI dizia que crime é a violação da lei penal. Mais próximo de nós, as palavras do ilustre magistrado GUILHERME DE SOUZA NUCCI, o preclaro diz que crime na sua acepção formal é "a concepção do direito acerca do delito. É a conduta proibida por lei, sob ameaça de aplicação de pena, numa visão legislativa do fenômeno". [3]
Destarte, pobre é o conceito formal, merecendo ser de todo descartado, pois, entendemos ter o crime um "plus" a mais, ou seja, bem mais que pura subsunção formal da conduta àquilo que o legislador previu como crime.
Já sob o aspecto material, o crime assume um entendimento da sociedade, sujeito legítimo a dizer o que é e o que deve ser proibido pelo Direito repressor. Em linhas gerais, crime no conceito material é fato humano que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos penalmente protegidos. [4]
Destarte, não é toda descartável a concepção material de delito. Tal posicionamento é acertado quando assevera que crime se trata de um fato humano que lesa e/ou expõe a perigo os bens tutelados pelo direito. Todavia, não se mostra completa. Não explica, por exemplo, os elementos estruturais do crime, que é necessário para a segura contextualização do delito.
Mais acalorado pela doutrina é o conceito analítico de crime. Nesse contexto é a concepção da ciência do Direito, nas palavras do Prof. NUCCI. [5]
A bem da verdade, para o conceito analítico leva-se em consideração os valores essenciais do crime (seus elementos estruturais), variando-se entre a teoria bipartite, tripartite e a quadripartite.

3 - A Teoria Bipartite dos Substratos do Crime:

Ocupemos com a teoria bipartite, por entendermos que a sua digressão, além de explicar as outras, acaba por diferenciá-las.
Para os defensores da teoria bipartite de crime (corretos em nosso entender), ao comportamento humano recai duas ordens de valoração, quais sejam, a tipicidade e a antijuridicidade (ou ilicitude). Destarte crime seria apenas uma conduta típica e ilícita. Para essa teoria a culpabilidade funcionaria apenas como pressuposto de aplicação de pena.
Com efeito, a tipicidade seria a adequação de uma conduta a um tipo legal de crime, a antijuridicidade ou ilicitude seria a contrariedade existente entre a conduta típica e o ordenamento jurídico. Por fim, a culpabilidade seria o juízo de valor que recai sobre a conduta típica e ilícita, compreendendo a imputabilidade penal, a possibilidade de conhecer a ilicitude do fato e a capacidade de evitar a prática do fato tido como crime pelo ordenamento.
Inicialmente foi defendida pelo grande penalista RENÉ ARIEL DOTTI, mas logo os doutrinadores DAMÁSIO DE JESUS, JULIO F. MIRABETE e CELSO DELMANTO também se renderam a teoria bipartite (crime como fato típico e ilícito).
Como é de sabença de todos, antes da era finalista, a culpabilidade era elemento inseparável do crime, pois, acreditava-se que o dolo a culpa a integrava, em linhas gerais, residiam dentro da própria culpabilidade.
Evidentemente essa teoria (dolo e culpa dentro da culpabilidade), tinha como argumento que sem dolo e culpa não existiria o crime, sendo por isso a culpabilidade sua integrante. Essa conclusão é mesmo lógica.
Precisamente, antes do finalismo, pensava-se que o chamado estado anímico (dolo e culpa) integrava a culpabilidade, sendo assim, albergada como elemento do crime pela doutrina, destarte, ficava a culpabilidade ao lado do fato típico e da ilicitude. Era a teoria tripartite em seu auge.
Com o advento da era finalista de WELZEL, restou comprovado que dolo e culpa não integram a culpabilidade, e sim a conduta, que por si integra o fato típico. Assim, retirado os principais elementos do crime (dolo e culpa) da culpabilidade, razão não tinha para ainda permanecer como elemento do crime. Destarte, o maior legado da teoria finalista foi exatamente isto.
Era a teoria normativa pura da culpabilidade baseada na escola finalista de WELZEL.
Retirou-se, pois, todos os elementos subjetivos da culpabilidade, o dolo e a culpa passaram a integrar a conduta (que por sinal integra o fato típico).
A culpabilidade, então, passa a ser apenas pressuposto da pena, ou seja, o Magistrado deve ter a mente voltada para a pena, percorrendo a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Se acaso faltar alguns desses elementos, afastada estará a culpabilidade, o que inviabilizará a aplicação da pena, mas o crime restará incólume, em virtude de que o crime para se fazer, necessita tão-somente do fato típico e da ilicitude.
Interessante de se frisar que a culpabilidade tem a ver com um juízo de reprovação, e por ser, leva-se em consideração um comportamento passado do criminoso, é posterior ao crime cometido, não havendo lógica de se pontuar ser a culpabilidade elemento do crime, o delito se perfaz antes de se cogitar a afamada culpabilidade, destarte, por isso, não integra o fato criminoso.
De mais a mais, prova-se que o nosso Código Penal é todo construído sob o espeque de que a culpabilidade não é elemento do crime, não se faz necessária a sua integração com o fato típico e a antijuridicidade, pois, exemplo maior dessa máxima é o art. 26 que faz uso da expressão "é isento de pena", ou o art. 22 que utiliza "só é punível", que em cotejo com o art. 23, emprega "não há crime".
Com efeito, o art. 26 não há imputabilidade penal, trata-se de inimputáveis (a imputabilidade é elemento da culpabilidade), sem contar que este artigo abre o TÍTULO III, que é, justamente, o da "DA IMPUTABILIDADE PENAL".
Já art. 22, que trata da "Coação irresistível e obediência hierárquica", não se tem a exigibilidade de conduta diversa, elemento essencial da culpabilidade, sendo por isso tratada, pela doutrina, como causa excludente de culpabilidade.
Ora, desses artigos se extrai, em que pese argumentos em contrário, que quando o Código Penal quer afastar a culpabilidade faz menção sempre a exclusão da pena (conseqüência do crime), nunca de crime, essa diferença está plasmada no diploma repressivo com um propósito bem definido: demonstra que a culpabilidade não é elemento do crime.

4 – Conclusão:

Resta claro e evidente que para a caracterização analítica do crime se faz, tão-somente, necessário o fato típico e a antijurídico (ilícito), ou seja, mais acertada a teoria bipartite do crime.
Em que pese judiciosos argumentos em contrário, enaltecendo a teoria tripartite do crime, albergando a culpabilidade como um de seus elementos, outra sorte não se extrai do nosso Código Penal, de onde temos a relação umbilical da culpabilidade com a pena.
Destarte, crime é, segundo entendemos, um fato típico e antijurídico e só ...

* Fernando César Faria é graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (5° Ano), ex-estagiário do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, ex-estagiário da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso, ex-estagiário da Procuradoria da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso, ex-estagiário do Ministério Público Federal (Procuradoria da República em Mato Grosso), ex-Inspetor de  Menor, voluntário, exercendo suas atividades em regime de plantão na comarca de Várzea Grande-MT, atual servidor público efetivo do Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Autor de artigos jurídicos.

Notas:

1 – LYRA, Roberto. Criminologia, p. 62-63.
2 – SILVA SANCHES, Jesus Maria. Aproximación al derecho penal contemporáneo.barcelona: Bosh, 1992.
3 – Código Penal Comentado, 3.ª edição, São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 91.
4 – MONTEIRO DE BARROS, Flávio Augusto. Direito Penal - Parte Geral v. 1, 3.ª edição, São Paulo: editora Saraiva, 2003, p. 114.
5 – NUCCI, Ob. cit. p. 92.

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