terça-feira, 6 de outubro de 2009

Artigo: Recebimento e rejeição da denúncia, e absolvição sumária

A Lei 11.719/2008 alterou a fase de instauração da ação penal, redefinindo as causas de rejeição da denúncia no art. 395 do CPP(1), as quais, no fundo, se assemelham às mesmas do revogado art. 43 do CPP(2). Dispôs também sobre as possibilidades inovadoras de rejeição da denúncia e absolvição sumária do acusado após a apresentação da resposta escrita, conforme previsão dos arts. 397(3), 396(4), 396-A(5), sendo estas algumas das modificações mais relevantes da reforma processual.
A reforma imposta pela Lei 11.719/2008 procura dar mais agilidade ao processo penal. Porém alterações legais pontuais às vezes acabam afetando a sistematização do Código.
Registra-se, primeiramente, que se confundem as causas de rejeição da denúncia com as de absolvição sumária previstas, respectivamente, nos arts. 395 e 397 do CPP, como bem observado por Aury Lopes Jr.: “Como se percebe da simples leitura, o artigo em questão acaba por arrolar duas condições da ação – que bem poderiam estar no art. 395 – e que se opera em momento posterior, quando a denúncia ou queixa já foi recebida. Os quatro incisos do art. 397 nada mais fazem do que reproduzir duas condições da ação: prática de fato aparentemente criminoso e punibilidade concreta. Os incisos I e II (causas de exclusão da ilicitude e da culpabilidade) são meros desdobramentos da condição prevista no inciso III (fato narrado evidentemente não constitui crime). Já o inciso IV é a conhecida condição da punibilidade concreta. E por que essas condições da ação estão no art. 397 como causas de absolvição sumária? Porque são questões intimamente vinculadas ao mérito, ao elemento objetivo da pretensão acusatória, e dizem respeito a interesse da defesa, que, como regra, acabam sendo alegados depois, na resposta preliminar do art. 396-A. Dificilmente o juiz tem elementos para analisar a existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade, mesmo que manifesta, quando do oferecimento da denúncia ou queixa; mas, se tiver, deverá rejeitá-la. Por outro lado, após a resposta da defesa, novos elementos podem ser trazidos ao feito, permitindo essa decisão. No fundo, apenas se retirou um pseudo obstáculo a que o juiz rejeite a acusação, mesmo já tendo-a recebido. Como a jurisprudência erroneamente não admitia esse tipo de decisão, abriu-se a possibilidade através da ‘absolvição sumária’. Ademais, por serem questões vinculadas ao mérito e que, portanto, geram coisa julgada material, a absolvição sumária é uma decisão adequada para esse fim. Em suma, todas as situações descritas no art. 397 do CPP já foram devidamente analisadas quando do estudo das condições da ação” (6).
Recebida a denúncia, o réu será citado para apresentar resposta escrita, podendo alegar alguma causa arrolada no inciso do art. 397 do CPP, e tudo o que interessar à defesa do acusado, nos termos do art. 396-A. A redação desses textos indica que os incisos do art. 397 formam apenas um rol exemplificativo, pois a expressão “tudo o que interesse à sua defesa” compreende todo e qualquer argumento referente ao mérito da ação penal.
À apresentação da resposta segue-se a decisão que a julgará, podendo decorrer a rejeição da inicial acusatória ou a absolvição sumária do condenado. Nesse ponto, deve ficar bem claro que, recusada a resposta escrita do réu, não deve ser proferido novo despacho de recebimento da denúncia, apesar da redação do artigo 399(7) mencionar “recebida a denúncia”, expressão que só pode ser definida como equívoco ou falta de técnica legislativa, porque a inicial acusatória já fora recebida. A interpretação desse texto, nesse ponto, deve ser corretiva, compreendida como “rejeitada a defesa escrita, o juiz designará dia e hora...”.
Não há motivo para receber uma denúncia já considerada plenamente apta por decisão judicial anterior, que afirmou a existência de justa causa para o início da ação penal. Não há qualquer lógica para uma segunda decisão de recebimento da acusação, até porque a própria lei processual considerou a instância instaurada com a citação do acusado, nos termos do art. 363 do CPP(8) completando-se a formação do processo.
Há, portanto, só uma decisão de recebimento da denúncia, aquela do art. 395 do CPP, quando o juiz examina se estão presentes os pressupostos processuais, as condições exigidas e a justa causa para a instauração da ação penal. Existentes esses requisitos, o juiz deve proferir a decisão de recebimento da denúncia.
Abre-se parêntese para reafirmar a necessidade imperiosa de fundamentação dessa decisão, como estabelecido pelo art. 93, IX da Constituição Federal. Não basta o modelo standard do antigo carimbo padrão, nem o modelo hoje arquivado no computador, sem fundamentação adequada, ambos amplamente utilizados sob o fundamento falacioso de impossibilidade de “ingresso no mérito da ação penal nessa fase inicial do processo”, para evitar o exame da correspondência da denúncia com os elementos contidos no inquérito e assim impedir o excesso e abuso de acusação, cujo exame é agora obrigatório.
Sobre a necessidade de fundamentação do recebimento da denúncia e seu conteúdo, menciona-se a precisa lição de Antonio Magalhães Gomes Filho: “Na verdade, ao prescrever os requisitos das peças acusatórias, ao indicar as hipóteses em que a acusação deve ser rejeitada, do que se inferem, a contrário, os casos em que deve ser recebida, e também quando proclama ser ilegal a coação sem justa causa (art. 648, I), a lei processual está traçando um modelo de decisão em que são estabelecidos os temas que devem ser objeto de cognição judicial nesse momento procedimental de graves repercussões para o acusado. É evidente, por outro lado, que a esse modelo de decisão deve corresponder uma adequada justificação, em que o juiz demonstre haver examinado tais questões, dizendo por que concluiu pela admissibilidade da acusação. Trata-se também aqui de conferir à exigência constitucional de motivação de todas as decisões judiciais a apontada função de garantia da efetiva cognição judicial” (9).
A manifestação judicial proferida em seguida à resposta escrita trata de duas possibilidades. A primeira, da rejeição da denúncia já recebida, retratando-se o juiz após examinar o conteúdo da defesa. A segunda possibilidade é do julgamento conforme o estado do processo, nos mesmos moldes previstos no CPC, pois o juiz deve julgar tudo o que constar da resposta: preliminares, excludentes de ilicitude e o mais de interesse da defesa, devendo absolver sumariamente o acusado, de acordo com o art. 397 do CPP.
Se há possibilidade de o juiz reapreciar e rejeitar a denúncia, e absolver sumariamente o acusado, a única conclusão lógica que se extrai é de que deve haver julgamento fundamentado acolhendo ou rejeitando a defesa. Se não for proferida decisão nesses termos, por que motivo o CPP teria aberto a oportunidade de apresentação da resposta do acusado? Teria a lei criado uma armadilha para ser antecipada a tese defensiva a ser desenvolvida no curso do processo? A ausência de decisão sobre a resposta escrita representa ofensa à garantia constitucional do contraditório, porque tudo o que é alegado pelas partes deve ser julgado pelo juiz.
Se a Lei 11.719/2008 abre espaço para que o defensor apresente resposta escrita, manifestando-se sobre o mérito da ação penal, torna-se evidente que “tais questões terão de ser decididas pelo juiz, que deverá, em decisão motivada, indicar, com base nos elementos do inquérito policial, a presença das condições da ação, da justa causa e, caso alegado na resposta, a inocorrência da hipótese de absolvição sumária invocada pela defesa” (10), afirma Gustavo Henrique Badaró.
É necessária, portanto, uma interpretação da reforma processual condizente com os princípios da necessidade de decisão fundamentada e da celeridade processual, e não uma leitura como se nenhuma modificação importante tivesse ocorrido, como nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira: “Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação a que não ficaria mal chamar retrospectiva (11).
NOTAS
(1) Art. 395: “A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I – for manifestamente inepta; II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III – faltar justa causa para ao exercício da ação penal”.
(2) Art. 43: “A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I – o fato narrado evidentemente não constituir crime; II – já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa; III – for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal. Parágrafo único: Nos casos do n. III, a rejeição da denúncia ou queixa não obstará ao exercício da ação penal, desde que promovida por parte legítima ou satisfeita a condição”.
(3) Art. 397: “Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I – a existência manifesta de causa excludente de ilicitude do fato; II – a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III – que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV – extinta a punibilidade do agente”.
(4) Art. 396: “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”.
(5) Art. 396-A: “Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”. (grifo nosso)
(6) Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 390/392.
(7) Art. 399: “Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente”. (grifo nosso)
(8) Art. 363: “O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado”. (grifo nosso)
(9) A Motivação das Decisões Penais. São Paulo:RT, 2001, p. 208.
(10) Rejeição da denúncia ou queixa e absolvição sumária na reforma do CPP. RBCCrim. São Paulo:RT, n. 76, p. 173.
(11) Ada Pellegrini Grinover na apresentação do livro Presunção de Inocência e Prisão Cautelar, de Antonio Magalhães Gomes Filho. São Paulo: Saraiva, 1991.

Márcio Bártoli, Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

BÁRTOLI, Márcio. Recebimento e rejeição da denúncia, e absolvição sumária. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 7, set. 2009.

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