sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Artigo: O princípio da ne reformatio in pejus indireta nas decisões do tribunal do júri

Em abril do corrente ano, a 2ª Turma do egrégio Supremo Tribunal Federal tomou decisão que merece ser festejada, por importar significativo avanço no sentido da construção de um verdadeiro Direito Processual Penal Constitucional.
Trata-se do acórdão prolatado no HC nº 89.544-1, que teve por relator o ministro Cezar Peluso, no qual se admitiu a prevalência do princípio da ne reformatio in pejus também nas decisões proferidas pelo Tribunal do Júri(1).
O princípio da ne reformatio in pejus, em sua perspectiva direta, impede que o juízo ad quem, quando provocado por recurso exclusivo da defesa, piore a situação do réu. Obviamente, se a defesa recorre é porque busca uma melhora na situação do acusado. Se a interposição de recurso defensivo pudesse significar uma piora para o réu, estar-se-ia, pelo menos, desestimulando a defesa a utilizar mecanismos disponíveis para impugnação de decisões judiciais desfavoráveis. Com isso, restringir-se-ia indevidamente o princípio constitucional da ampla defesa e o devido processo legal.
Mas o princípio da ne reformatio in pejus não possui apenas a perspectiva direta. Na sua perspectiva indireta, impede que a situação do réu seja piorada em novo julgamento, quando a cassação do julgamento anterior foi provocada por recurso exclusivo da defesa. Toda vez que o réu recorrer sozinho de um julgado e obter a sua anulação, o novo julgamento não pode ser pior do que o julgamento cassado. Como se percebe, em sua perspectiva indireta, o princípio da ne reformatio in pejus não se dirige ao juízo ad quem, mas sim ao juízo a quo, que, ao renovar o julgamento – em virtude de haver sido o primeiro cassado pelo juízo ad quem –, está impedido de tomar decisão que agrave a situação do réu, devendo tomar por parâmetro o julgamento anulado.
Contudo, a incidência da vedação da reformatio in pejus indireta costumava não ser reconhecida nas decisões do Tribunal do Júri em virtude de um argumento central: afirmava-se que, no caso das decisões prolatadas pelo Júri, o princípio da soberania dos veredictos, estabelecido no art. 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição da República, afastaria a regra geral da proibição da reforma para pior, ao menos no que toca à decisão dos jurados.
A simplória construção doutrinária de então atentava para a existência de irremediável conflito (rectius, colisão) entre o princípio da ne reformatio in pejus e o princípio da soberania dos veredictos e defendia a solução da questão através da aplicação do critério hierárquico: enquanto a norma jurídica que consagra o princípio da ne reformatio in pejus está situada na legislação infraconstitucional, principalmente no art. 617 do Código de Processo Penal, a norma que prevê o princípio da soberania dos veredictos tem assento constitucional. Diante de colisão entre princípio veiculado em norma constitucional e princípio veiculado em norma infraconstitucional a primeira excepcionaria, sem mais, a regra geral veiculada pela segunda, no tocante às decisões proferidas pelo Tribunal do Júri.
Passou-se a defender, diante desse argumento, que, nos processos julgados perante o Tribunal do Júri, o princípio da ne refomatio in pejus vincularia apenas o Juiz Presidente do Tribunal do Júri (juiz togado), jamais vinculando a decisão dos jurados (juízes leigos), uma vez que esta estaria revestida de soberania.
Aliás, o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado no sentido de que, quando o novo Conselho de Sentença reconhecesse as mesmas circunstâncias fáticas que haviam sido reconhecidas pelo Conselho de Sentença anterior, em sua decisão cassada, o Juiz Presidente não poderia aplicar pena mais severa do que aquela que havia sido aplicada no julgamento anulado(2). A contrario sensu (e era o que se costumava afirmar), se, em novo julgamento, os jurados reconhecessem circunstâncias mais graves do que as que haviam sido reconhecidas no julgamento cassado, estaria o Juiz Presidente autorizado a fixar pena mais grave do que a anteriormente fixada, em respeito ao princípio da soberania dos veredictos (e – acrescente-se – em desrespeito ao princípio da vedação da reforma para pior).
O entendimento supracitado envolve um grave equívoco de perspectiva constitucional – equívoco este que precisa ser diluído, e para tanto, a decisão de nossa Corte Suprema, mencionada no início deste artigo, muito contribuirá. O raciocínio aqui criticado parte de premissas inexatas que transportam a conclusão do problema para fora dos muros do Direito Processual Penal Constitucional.
Inicialmente, deve-se considerar inadequado, do ponto de vista constitucional, a afirmação de que o princípio da ne reformatio in pejus tem status infraconstitucional. Não é preciso muito para concluir que se trata, isso sim, de um princípio constitucional implícito, decorrente do princípio da ampla defesa e do devido processo legal.
Assegurar ao acusado a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, significa, consequentemente, assegurar ao acusado a possibilidade de impugnar decisões que lhe sejam desfavoráveis sem medo de que sua situação possa ficar ainda pior. O medo de uma reforma para pior inibe a utilização de mecanismo inerente à ampla defesa e macula o due process of law.
Com razão, Pacelli reconhece a natureza constitucional do princípio da ne reformatio in pejus ao afirmar que o princípio é “uma das manifestações da ampla defesa”, porque, continua o autor, “a garantia do duplo grau, como conteúdo da ampla defesa, deve abranger também a garantia da vedação da reformatio in pejus. O risco inerente a todas as decisões judiciais poderia ter efeitos extremamente graves em relação ao acusado, no ponto em que atuaria como fator de inibição do exercício do direito ao questionamento dos julgados” (3).
Uma vez que se reconheça natureza constitucional ao princípio da ne reformatio in pejus, a resolução da questão não mais se pode dar com base no critério hierárquico – pois, agora, se está diante de dois princípios constitucionais fundamentais –, mas deve ser solucionada no âmbito da ponderação de princípios.
No voto proferido pelo ministro Cezar Peluso, relator do habeas corpus acima referido, ficou claro que a decisão foi tomada com base no critério ou princípio da concordância prática, definido como uma “recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum” (4).
Assim, diante da colisão de dois princípios constitucionais – o princípio da ne reformatio in pejus, de um lado, e o princípio da soberania dos veredictos, de outro – , e, considerando que não há princípios constitucionais absolutos, a solução adotada pelo Supremo Tribunal Federal foi no sentido de vedar a reformatio in pejus em sua perspectiva indireta, também nas decisões do Tribunal do Júri.
Como restou decidido naquela ocasião, em caso de cassação da primeira decisão, provocada por recurso exclusivo da defesa, não há qualquer impedimento para que, em novo julgamento, os jurados decidam como melhor lhes aprouver, desde que não se afastem demasiadamente da prova dos autos. Com isso, se assegura vigência ao princípio da soberania dos veredictos. Contudo, no momento seguinte, o magistrado não pode, ao aplicar a pena, fixá-la de maneira mais severa do que aquela que havia sido fixada anteriormente, ainda que os jurados tenham reconhecido fatos ou circunstâncias não contempladas no primeiro julgamento. É dizer, em nenhuma hipótese a pena do segundo julgamento pode ser pior do que a do primeiro, quando o julgamento anterior houver sido anulado em virtude de recurso exclusivo da defesa. Nesse passo, se assegura vigência ao princípio da ne reformatio in pejus também nas decisões do Tribunal do Júri.
Foi esse o teor da decisão do Supremo Tribunal Federal. Mas, bem analisadas as coisas, não haveria necessidade sequer de se falar em colisão de princípios constitucionais. Poderia ter-se dado mais um passo na constitucionalização do processo penal.
Bastaria, para tanto, uma exegese contextualizada do princípio da soberania dos veredictos, situando seu círculo hermenêutico dentro de um contexto protetivo do acusado. Em outros termos, deve-se entender o princípio da soberania dos veredictos como uma garantia constitucional do acusado e não dos jurados.
De fato, a Constituição estabelece o instituto do Tribunal do Júri no âmbito dos direitos fundamentais da pessoa, sendo certo que o Tribunal do Júri sempre foi entendido como o direito fundamental que possui o acusado de crime doloso contra a vida de ser julgado por seus próprios pares (por juízes leigos).
É preciso, assim, analisar o Tribunal do Júri e os princípios a ele inerentes sob essa perspectiva de garantia, pois, quisesse o constituinte ter criado apenas uma norma de competência, teria instituído o Júri e estabelecido os seus princípios no capítulo que dispõe sobre o Poder Judiciário. Mas não o fez. Colocou o Júri entre os direitos fundamentais da pessoa humana.
Por esse prisma, também o princípio da soberania dos veredictos deve ser visto como uma garantia do acusado, pois de nada adiantaria assegurar a este o direito de ser julgado por seus pares, se se admitisse que o tribunal técnico pudesse “rejulgar” o caso quando provocado. Bastaria, pois, um simples recurso para que fosse afastado o direito fundamental da pessoa de ser julgada por juízes leigos. Nessa senda, o princípio da soberania dos veredictos deve ser compreendido como um instrumento destinado a garantir o direito fundamental do réu de crime doloso contra a vida de ser julgado por seus pares (juízes leigos).
Estando, pois, o princípio da soberania dos veredictos situado em um contexto de garantia do acusado, não pode o princípio ser utilizado em seu prejuízo. Portanto, quando houver recurso exclusivo da defesa, a pena do segundo julgamento não poderá jamais ser mais severa do que a fixada na decisão cassada, mesmo nos processos de competência do Tribunal do Júri, em virtude da vedação da reformatio in pejus e da impossibilidade de se invocar o princípio da soberania dos veredictos em prejuízo do acusado (em razão do caráter garantista deste princípio).
Se o princípio da soberania dos veredictos fosse compreendido dessa maneira, por certo não haveria necessidade de se falar em sua colisão com o princípio da ne reformatio in pejus, nas hipóteses de cassação das decisões do Tribunal do Júri. O que ocorreria é a não-incidência do princípio da soberania dos veredictos contra o acusado, uma vez que se trata de um princípio-garantia do réu de crimes dolosos contra a vida. Não sendo hipótese de incidência do princípio da soberania dos veredictos, não haveria colisão e o princípio da ne reformatio in pejus regulamentaria sozinho o caso.
Mas a verdade é que, admitida a hipótese ora ventilada, o resultado prático seria o mesmo da decisão do egrégio Supremo Tribunal Federal (embora o fundamento teórico fosse diverso): a impossibilidade de que, no novo julgamento, o resultado fosse pior do que obtido em julgamento anterior, quando a decisão houver sido cassada em virtude de recurso exclusivo da defesa. Merece, pois, aplausos a decisão do Supremo Tribunal Federal. Mais um passo foi dado.
NOTAS
(1) STF, 2ª Turma, HC 89.544-1/RN, rel. min. Cezar Peluso, julgado em 14-04-2009, publicado em 15-05-2009.
(2) STF, 1ª Turma, HC 73.367-1/MG, rel. min. Celso de Mello, julgado em 12-03-96, publicado em 29-06-2001.
(3) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 669.
(4) MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 107.


Galvão Rabelo, Especializando em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Advogado. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC, em Ubá, Minas Gerais.

RABELO, Galvão. O princípio da Ne reformatio in Pejus indireta nas decisões do tribunal do júri. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 16-18, out., 2009
 

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