segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Artigo: Arma de fogo desmuniciada: Perigo abstrato ou concreto? A polêmica continua

A Min. Ellen Gracie voltou a se manifestar a respeito do polêmico tema que envolve a arma de fogo desmuniciada. É crime ou não é crime? A Primeira Turma do STF (RHC 81.057-SP, rel. Min. Pertence), acertadamente, reconhecera a inexistência de crime, por faltar, na arma desmuniciada, potencialidade ofensiva (para os bens jurídicos protegidos pela lei: incolumidade pública assim como bens jurídicos pessoais: vida, integridade física, patrimônio etc.). A Ministra Ellen Gracie, desde seu voto dado neste RHC, vem se posicionando noutro sentido (crime de perigo abstrato, o bem jurídico é a tranquilidade pública etc.). Vejamos a sua argumentação:

"Habeas-corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 14 da Lei 10.826/03 - Estatuto do Desarmamento -, no qual se pretende a nulidade da sentença condenatória, sob alegação de atipicidade da conduta, em razão de a arma portada estar desmuniciada. A Min. Ellen Gracie, relatora, denegou a ordem por entender que o tipo penal do art. 14 da mencionada lei contempla crime de mera conduta, sendo suficiente a ação de portar ilegalmente a arma de fogo, ainda que desmuniciada. Aduziu que a ofensividade deste artefato não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, mas também, no seu potencial de intimidação. Enfatizou que o crime é de perigo abstrato, não tendo a lei exigido a efetiva exposição de outrem a risco, irrelevante a avaliação subseqüente sobre perigo à coletividade." HC 95073. Rel. Min. Ellen Gracie, 2/6/09.

Comentários: a ementa que acaba de ser transcrita é o retrato (acabado) do velho Direito penal, positivista legalista, causalista, subjetivista, antinormativista formal etc. Está na mesma linha de outra recente decisão do STF: HC 96.922-RS, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 17/3/2009.

Para nossa teoria constitucionalista do delito nada disso se sustenta, na atualidade. O crime é de mera conduta, mas essa classificação (do provecto Direito penal) é puramente naturalista. Depois de Roxin (1970), sobretudo, o Direito penal e, especialmente, a tipicidade, se desenvolve, necessariamente, em dois planos: formal e material. O crime (portar arma de fogo), no plano formal, é de mera conduta. No plano jurídico-material é um crime de perigo (perigo de lesão). Por força do princípio da ofensividade, sem a comprovação efetiva do perigo (concreto) não existe crime.

Para a Ministra basta a ação (desvalor da ação) para a configuração do crime, porque tratar-se-ia de perigo abstrato. Com a devida vênia, não existe mais (já não pode existir) crime fundado exclusivamente no desvalor da ação. Todo delito, necessariamente, exige também desvalor do resultado jurídico (que é a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico protegido). Para a Ministra a ofensividade reside no poder de intimidação da arma. Ocorre que o bem jurídico protegido não é a tranquilidade social (tranqüilidade das pessoas), sim, a incolumidade pública (de forma direta) assim como bens jurídicos pessoais tais como a vida, integridade física etc. (de forma indireta). Claro que a arma de fogo (municiada ou desmuniciada) tem poder de intimidação. Precisamente por isso, quando usada numa subtração, o delito é o de roubo (não o de furto). A arma desmuniciada pode ser instrumento do delito de roubo (não há nenhuma dúvida). Mas a questão, problemática, é outra: e quando a posse da arma é o único fato cometido? Para nós (teoria constitucionalista do delito) só existe crime, nesta situação, se a arma tem capacidade de disparo e disponibilidade de uso (RHC 81.057-SP).

Com a devida vênia, a decisão ora comentada é muito preocupante. Espelha um grande retrocesso na jurisprudência do STF (firmada no HC 81.057), que coloca em risco o estatuto das liberdades típicas do Estado de Direito. Segue a linha do perigo abstrato, que ignora o Direito penal da ofensividade assim como a teoria do bem jurídico, a questão da proporcionalidade etc. Filia-se, ademais, à concepção do delito como mera violação - formal - da norma, sem nenhum questionamento sobre o verdadeiro bem jurídico protegido e a ofensa respectiva.

Estamos falando de um crime de posse ("posesion"), que significa uma extraordinária antecipação da tutela penal (Vorfeldkriminalisierung). Essa antecipação da proteção penal (que dispensa uma lesão ao bem jurídico) só é legítima (no Estado constitucional e democrático de Direito) quando se constata um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos (incolumidade pública ou bens pessoais). No caso da arma de fogo o perigo concreto exige: (a) idoneidade ofensiva da arma e (b) disponibilidade de uso (tal como reconhecido pelo STF, HC 81.057).

Arma desmuniciada é arma, mas não é de fogo (porque não conta com possibilidade de disparo) (STF, HC 81.057). Salientou-se (na decisão da Ministra) que a lei (atual art. 14 da Lei 10.829/2006) não faz nenhuma referência à necessidade de se aferir o potencial lesivo da arma. A lei, secamente enfocada, de fato, nada diz. Mas quem faz essa exigência é a Constituição, o princípio da proporcionalidade, a teoria da norma, o princípio da ofensividade etc. Detrás do texto legal está a norma (é proibido portar arma de fogo). Toda norma primária tem dois aspectos: (a) o valorativo e (b) o imperativo. Quem porta ou possui qualquer tipo de arma de fogo viola o aspecto imperativo da norma (que manda exatamente o contrário). Esse é um lado da questão. O outro reside na violação do aspecto valorativo da norma, ou seja, na violação do bem jurídico protegido (que, para nós, indiretamente, são a vida, a integridade física etc.). Arma desmuniciada, quebrada etc. não provoca risco concreto para ninguém. Por isso que não serve para a configuração do delito (isolado, de porte de arma). Na atualidade, houve abandono total da teoria determinista pura em relação à norma. É um retrocesso a sua adoção, com a devida vênia.

A decisão, como se vê, incorreu em equívoco manifesto. Palmilhou o caminho do perigo abstrato, aceitou o pacote (o embrulho) do legislador e foi totalmente acrítica. Juiz que assim procede cumpre o papel de correia de transmissão (do jeito que vem, vai). É com preocupação e decepção que vemos uma decisão como a que acaba de ser comentada (sobretudo quando vem da nossa mais alta Corte de Justiça). Quem já votou brilhantemente pela inconstitucionalidade de vários dispositivos do próprio Estatuto do Desarmamento (ADIn 3112), valorizando a cultura das bases democráticas do nosso direito, não pode sofrer recaída tão profunda.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 12/10/2009.

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