quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Artigo: A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal

O tema da delação premiada desafia diversos questionamentos: desde sua conveniência político-criminal, passando por sua apreciação sob o ponto de vista da quebra da ética ínsita ao proceder dentro de um Estado Democrático de Direito, ou pelas questões relativas ao seu valor probatório(1), até sua natureza jurídico-penal, sua função processual penal e as implicações daí decorrentes para o postulado do devido processo legal em nosso direito positivo. Nesta oportunidade, passaremos os olhos por estes três últimos aspectos quanto à delação que tem por objeto a identificação dos demais coautores ou partícipes(2).
Todos os dispositivos legais em vigor em nossa legislação definem a delação premiada como causa de diminuição da pena ou de extinção da punibilidade pelo perdão judicial e têm, assim, natureza material.
Assim, o artigo 6º da Lei n. 9.034/95; o artigo 25, § 2º, da Lei n. 7.492/86; o artigo 16, parágrafo único, da Lei n. 8.137/90; o artigo 1º, § 5º, da Lei n. 9.613/98; o artigo 41 da Lei n. 11.343/06, e, finalmente, os artigos 13 e 14 da Lei n. 9.807/99, que cuidam dos “réus colaboradores”, prescrevendo, no que nos interessa, que o juiz poderá conceder perdão judicial ao acusado primário que tenha colaborado efetiva e voluntariamente para a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa (art. 13, inciso I); ou reduzir, de um a dois terços, a pena do “indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime” (artigo 14, primeira figura).
Daí afirmar Mariana Lauand, em trabalho digno de nota, que “a delação premiada consagrada na legislação brasileira configura instituto de direito material a partir do qual, preenchidos determinados requisitos previstos em lei, poderá o imputado ser beneficiado pela autoridade judicial com redução de pena ou perdão judicial” (3).
Sendo causa de diminuição da pena ou de perdão judicial, sua aplicação está condicionada lógica e cronologicamente a um prévio juízo condenatório. Isto é, o magistrado deve se convencer da prática do crime pelo acusado-delator e só então, constatado o preenchimento dos requisitos legais, aplicar o perdão judicial ou a causa de diminuição da pena, na segunda etapa da dosimetria. Assim, por sua própria natureza jurídica, a delação premiada impede que se celebre qualquer “pacto” antecipando a aplicação dos benefícios.
Implica, ainda, na impossibilidade de se oferecer imunidade processual ao delator, coautor ou partícipe nos fatos. “Em virtude da regra da obrigatoriedade da ação penal”, ensina Mariana Lauand, “não existe, ao contrário dos ordenamentos jurídicos da common law, benefício processual para estimular a colaboração de imputado como, por exemplo, as imunidades e os non-prosecution agreements”. Todavia, observamos com ela, “tem sido freqüente a realização de acordos ‘informais’ entre acusação e defesa no Brasil” (4).
Concorde-se ou não, fato é que não há, em nosso país, autorização legal para a “celebração de acordo entre acusação e indiciado/acusado” e muito menos que venha a ser “homologado pelo juiz competente para julgar a ação penal”, ou mesmo para a celebração de “acordo entre juiz e indiciado/acusado”.
O que existiu por curto período de tempo (até a revogação completa da Lei n. 10.409/02 pela Lei n. 11.343/2006) foi a possibilidade de um acordo entre o indiciado e o Ministério Público para o sobrestamento do processo ou a redução da pena quando a colaboração espontânea revelasse a existência de organização criminosa, permitindo a prisão de seus integrantes, a apreensão da substância ilícita ou de seu produto ou, de qualquer forma, contribuísse para os interesses da Justiça (art. 32, § 2º, Lei n. 10.409/02). Caso a colaboração se desse após o recebimento da denúncia, o magistrado, por proposta do Ministério Público, poderia reduzir a pena ou deixar de aplicá-la (perdão judicial) (art. 32, § 3º, do mesmo diploma legal).
Ocorre que tal disciplina legal foi expressamente revogada pela Lei n. 11.343/06, que não renovou a previsão(5). Assim, é lícito dizer que vigem íntegras, em nosso direito positivo, as regras da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal pelo Ministério Público. Note-se, em acréscimo, que sequer a revogada disciplina legal dispunha sobre a participação do juiz no referido acordo, muito menos previa sua oponibilidade a ele.
Não obstante, uma parte dos autores nacionais que se debruçaram sobre o tema, admite a possibilidade de celebração do referido acordo. Nessa linha, por exemplo, entende-se, em apertada síntese, que apesar da vigência dos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal, não haveria dispositivo legal impedindo o Ministério Público de negociar com o investigado/acusado e sua defesa ou, então, que haveria um amplo espectro normativo autorizador da delação, inclusive com a participação do magistrado na celebração do acordo (6).
Assim não nos parece. Ao contrário, no estágio atual de nosso direito positivo, a celebração de qualquer acordo entre acusação e indiciado/imputado ou entre juiz e indiciado/imputado é ilegal. Quer sob o ponto de vista de “negociação” da aplicação da redução da pena ou do perdão judicial, quer sob o ponto de vista da concessão de benefícios processuais: nosso direito positivo “não prevê a concessão de benefícios de caráter processual ao imputado colaborador, isto é: os benefícios se restringem à redução da pena, concedida pelo magistrado ao final da persecução penal” (7). Por isso, em virtude da regra da obrigatoriedade da ação penal, os acordos “informais” celebrados entre acusação e defesa, no Brasil, homologados ou não pelo juiz, são ilegais(8) .
Estabelecida a natureza jurídica de direito material da delação premiada em nosso direito positivo (causa de diminuição da pena ou de concessão de perdão judicial), dela decorre logicamente que somente pode ser aplicada na sentença condenatória , como momento final de um devido processo legal, após exauriente análise probatória; porque, como advertem Tiago Dutra Fonseca e Milena de Oliveira Franzini, “o ‘delator’ pode, como em qualquer outro processo, ser absolvido ao final da instrução (CPP, art. 386), bem como ser beneficiado pela prescrição da ação penal, o que a ele certamente será mais benéfico. Sem prejuízo, as informações fornecidas podem ser consideradas insuficientes e danosas para o desmantelamento da organização criminosa, o que impedirá o reconhecimento do instituto” (9). Devido ao valor relativo da confissão, observa Mariana de Souza Lima Lauand(10), o delator pode até mesmo vir a ser absolvido, do que decorre a necessidade de que entre a confissão/delação e a aplicação da causa de diminuição da pena ou do perdão judicial, no bojo do juízo condenatório, de desenvolva o devido processo legal.
Assim, afora a ínsita ilegalidade da celebração de acordo entre indiciado/acusado e Ministério Público e sua homologação pelo juiz, a natureza jurídica da delação premiada impede que se possa falar em acordo antecipando sua aplicação. De um lado porque não incumbindo ao Ministério Público proferir sentença, não pode (ou não deve) prometer algo que não pode cumprir; de outro porque, acaso o acordo seja “homologado” pelo magistrado, tal proceder implica duplo julgamento antecipado do mérito da ação penal: a) o juízo de condenação; b) o juízo acerca da presença dos requisitos legais para a aplicação da causa de diminuição da penal.
Caso o objeto da delação seja a “identificação dos demais co-autores ou partícipes” (11), esse julgamento antecipado do mérito da ação penal efetuado na celebração do “acordo” priva delator e delatado de garantias básicas decorrentes do devido processo legal: de um lado, priva o acusado delator de qualquer possibilidade de um julgamento justo, porque o seu julgador já se “comprometeu” a condená-lo; e, de outro, tira dos delatados a mesma possibilidade, pois já se proferiu um juízo antecipado de certeza sobre a “identificação dos demais co-autores ou partícipes”.
Isto porque no momento em que um magistrado “homologa o acordo”, está ele a afirmar (antecipadamente) sua convicção sobre a veracidade das informações fornecidas pelo delator sobre a “identificação dos demais co-autores ou partícipes”. Lembremos que o delator só fará jus à diminuição da pena ou ao perdão judicial quando o magistrado se convencer de que ele “colaborou voluntariamente na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime”; ou seja, é necessário que o magistrado esteja convencido de que as pessoas apontadas pelo delator efetivamente são coautores ou partícipes do crime perpetrado. Isto implica dizer que a “homologação” tira do magistrado aquela que deve ser sua qualidade elementar para o exercício da jurisdição: a imparcialidade. Ensina Paolo Tonini ser essencial ao sistema acusatório que o juiz esteja em uma “posizione di assoluta neutralità psichica” (12), impossível quando “homologa” acordo de delação premiada.
Para situação muito menos comprometedora do que a acima analisada, quando o juiz apenas colhe as declarações do imputado delator, observou Mariana de Souza Lima Lauand que, ao fazê-lo, “muitas vezes ficará o julgador ‘contaminado’ pelo teor daquelas alegações, perdendo a imparcialidade para realizar o julgamento do co-imputado delatado”. Daí que, em seu entender, a solução seria “tornar o juiz que colhesse as declarações do imputado colaborador impedido de julgar a ação penal proposta contra o co-imputado delatado, a fim de se evitar qualquer interferência no estado anímico do julgador que irá presidir a ação penal a ser eventualmente proposta em face do terceiro incriminado” (13).
A homologação de acordo pelo magistrado implica em dupla violação aos cânones mais básicos do due process of law: de um lado retira-lhe a imparcialidade objetiva e, de outro, impede o desenvolvimento contraditório do processo.
Sob este último ângulo, se o princípio do contraditório visa garantir às partes que possam colocar em dúvida a existência do fato, a “homologação do acordo” pelo magistrado, que implica convencimento sobre a coautoria ou participação do delatado na prática do crime, extirpa qualquer possibilidade de desenvolvimento contraditório do processo que trate de tal crime e de tal acusado delatado. Porque com a “homologação do acordo” e com seu eventual “cumprimento” na sentença do delator, torna-se impossível, ao delatado, “colocar em dúvida”, mediante atividade probatória, os fatos delatados (a coautoria ou participação no fato delituoso), já que foram antecipadamente considerados pelo magistrado como “verdadeiros”.
Não é de se estranhar – e é funcional a tal proceder – que se invoque, aqui e ali, o caráter “sigiloso” dos “acordos”, também sem respaldo legal, mas isto é tema para um novo escrito.
NOTAS
(1) Sobre este tema há publicações recentes, v.g., FERNANDES, Antonio Scarance, ALMEIDA, José Raul Gavião de, MORAES, Maurício Zanóide de (coord.). Crime organizado: aspectos processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009; PEREIRA, Frederico Valdez. Valor probatório da colaboração processual (delação premiada). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 77, março-abril/2009, p. 175-201.
(2) Em trabalho ulterior, de maior fôlego, pretendemos nos aprofundar um pouco mais nessas e em outras questões.
(3) LAUAND, Mariana de Souza Lima. O valor probatório da colaboração processual. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 63.
(4) LAUAND, Mariana de Souza Lima. ob. cit., p. 63-64.
(5) Aliás, a revogação integral da Lei 10.409/2002 pela Lei n. 11.343/2006 sem a manutenção do “sistema”, ou seja, extirpando de nosso direito positivo não só o referido “acordo” como também a disponibilidade sobre a ação penal pública, só faz evidenciar a incompatibilidade do instituto com os cânones do due processo of law em um sistema jurídico baseado na legalidade do processo penal. Seja por isso, seja por razões de política criminal, fato é que atualmente nenhuma norma processual penal prevê o referido acordo.
(6) GRANZINOLI, Cassio M. M. A delação premiada. In: Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. José Paulo BALTAZAR JÚNIOR e MORO, Sérgio Fernando. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 157; DE SANCTIS, Fausto Martins. Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática. Campinas: Millennium, 2008, p. 124 e ss.
(7) LAUAND, Mariana de Souza Lima, ob. cit., p. 155-156.
(8) LAUAND, Marina de Souza Lima, ob. cit., p. 63-64.
(9) FONSECA, Tiago Dutra, FRANZINI, Milena de Oliveira. Delação premiada: metástase política. Boletim IBCCRIM, n. 156, novembro de 2005, p. 9.
(10) “Caso ao final da persecução penal não se tenha obtido prova suficiente para condenar o imputado colaborador – ou seja, não obstante tenha ele confessado, não se tenha conseguido provar materialidade e autoria – deve, em virtude do in dubio pro reo, ser decretada a absolvição, uma vez que a confissão não possui valor absoluto, devendo ser corroborada pelas demais provas do processo, nos termos do artigo 197, do Código de Processo penal” ( LAUAND, Marina de Souza Lima, ob. cit., p. 98).
(11) Porque a delação pode recair sobre a localização da vítima e/ou sobre a localização e recuperação do produto do crime.
(12) TONINI, Paolo. Manuale di procedura penale. Quarta edizione, Milano: Giuffrè, 2002,, p. 10.
(13) LAUAND, Mariana de Souza Lima, ob. cit., p. 92-93, grifei.

Heloisa Estellita, Advogada. Doutora em Direito Penal pela USP

ESTELLITA, Heloísa. A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 2-4, set. 2009.

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