quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Artigo: A condenação pelo artigo 28 da lei de drogas não gera reincidência e outros efeitos secundários

Trata o artigo 28 da Lei de Drogas da conduta daquele que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. O legislador deu novo tratamento aos consumidores de drogas, deixando de puni-los com pena privativa de liberdade(1). Esses agentes doravante sofrerão medidas despenalizadoras, abandonada que foi a ideia do encarceramento. Em razão disso, instalou-se discussão acerca da natureza jurídica do artigo 28 da Lei de Drogas.
Nos autos do RE de n. 430.105 QO/RJ, julgado em 13 de fevereiro de 2007, de que relator o ministro Sepúlveda Pertence, o egrégio STF decidiu que o artigo 28 é crime e o usuário, tóxico-delinquente(2). Desse modo, na linha do entendimento sufragado pela mais alta Corte de Justiça do País, a condenação pelo artigo 28 da Lei de Drogas produzirá os mesmos efeitos secundários de qualquer outra infração penal.
A favor dessa orientação, será dito que esses efeitos decorrem da lei penal, cuja incidência é imperativa e inderrogável. Verificado o suporte fático autorizador da aplicação da lei penal(3), o silogismo daí decorrente conduziria necessariamente à produção de todos os efeitos secundários decorrentes de uma sentença penal condenatória.
Entretanto, a adoção acrítica desse pensamento é nefasta e redunda em sérios prejuízos ao status libertatis do indivíduo. A interpretação puramente legalista(4), despida do conteúdo da razoabilidade, ao permitir que a condenação pelo artigo 28 seja apta a produzir todos os efeitos secundários, estende (indevidamente) o tempo do indivíduo no cárcere. A depender do caso concreto, essa manutenção no sistema penitenciário pode durar anos.
Essa conclusão pode ser evidenciada por meio da seguinte situação de fato: um agente que fora condenado anteriormente pela prática do delito previsto no artigo 28 da Lei de Drogas é réu de uma ação penal que objetiva a apuração do crime de tráfico (artigo 33, caput). Comprovada autoria e materialidade delitivas, bem como reconhecida a culpabilidade do agente, será ele condenado à pena privativa de liberdade de, no mínimo, cinco anos.
Suponha-se que o julgador, partindo do mínimo legal, reconheça a reincidência e aplique o percentual de aumento de um sexto. A pena que era de cinco anos passará a ser de cinco anos e dez meses, isto é, utilizando o artigo 28 da Lei de Drogas o juiz determinará que o réu fique mais dez meses no cárcere!
No processo de execução da pena, considerar o condenado pelo artigo 28 reincidente significa ampliar sua manutenção na prisão, pois nesse caso os prazos conducentes à obtenção de direitos são mais extensos. Basta recordar a progressão de regime prisional nos crimes hediondos e equiparados, que passou a exigir dos reincidentes o cumprimento de três quintos da pena privativa de liberdade após a promulgação da Lei n. 11.464/07(5).
Predomina entre os intérpretes que não infirmam a constitucionalidade do instituto da reincidência o entendimento segundo o qual o reincidente revela maior grau de periculosidade, estando a exacerbação da pena justificada pela insuficiência da punição anterior(6-7). Todavia, pode ser considerada perigosa uma pessoa anteriormente condenada por um fato que nem mesmo enseja pena de prisão? É merecido tal estigma e justificada a exacerbação da reprimenda penal àquele que teve contra si imposta medida despenalizadora que se descumprida não o sujeita ao cárcere? Óbvio que não!
Ademais, a exacerbação vulnera a não mais poder o princípio da proporcionalidade, “uma vez que o acessório (agravante da reincidência) não pode exceder o principal (a pena imposta)” (8). E é precisamente isso o que ocorre: as consequências da reincidência são mais pujantes que a condenação anterior pela prática do artigo 28.
De outro lado, a valoração da condenação anterior pelo artigo 28 como hábil a permitir a produção de efeitos penais secundários conduz à equiparação dessa conduta a crimes graves, tais como os crimes hediondos e equiparados (v.g., latrocínio, homicídio qualificado, tráfico de drogas, extorsão mediante sequestro, estupro etc.). A toda evidência, esse proceder viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade, pois confere idêntico tratamento jurídico a situações fáticas distintas.
Calha tracejar outro argumento: até mesmo as contravenções penais estatuem respostas penais mais gravosas que as previstas no artigo 28 da Lei de Drogas. Em conformidade com o artigo 5º da LCP, o agente que incidir numa das figuras típicas previstas nesse diploma legal será obrigado a cumprir pena de prisão simples, que deve ser cumprida em regime semiaberto ou aberto pelo prazo de até 5 (cinco) anos, ou pena de multa.
Se aquele que vier a cometer uma contravenção penal, que possui tratamento penal mais rigoroso, posteriormente cometer um crime, é considerado primário (artigo 63, CP), é desarrazoada, ferindo inevitavelmente o princípio da proporcionalidade, a conclusão segundo a qual a condenação pelo artigo 28 pode gerar reincidência e outros efeitos secundários, já que essa infração penal prevê consequências penais bem menos severas à esfera de liberdade do indivíduo(9).
São diminutas as consequências penais daqueles que incidam nas elementares do artigo 28 da Lei de Drogas. Tanto isso é verdade que sequer houve previsão legal de pena privativa de liberdade aos consumidores de entorpecentes. Nesse contexto, é desproporcional utilizar a condenação definitiva anterior pela prática do artigo 28 da Lei de Drogas para o fim de incrementar a reprimenda penal, retirar direitos subjetivos do acusado e mantê-lo mais tempo segregado, suportando as agruras do cárcere.
Portanto, o magistrado deve emitir resposta jurisdicional diversa quando depara com condenação anterior pelo artigo 28 da Lei de Drogas, levando em consideração as especificidades dessa infração. Para chegar a uma decisão adequada e socialmente convincente, deve o magistrado superar o puro positivismo jurídico, fazendo valer a principiologia em que está escorada a CF e o rosário de direitos fundamentais previstos no artigo 5º, todos unificados pelo valor da dignidade humana.
Desse modo, não há como se chegar à conclusão diversa: a condenação pelo artigo 28 da Lei de Drogas é incapaz de gerar reincidência e outros efeitos secundários(10).
NOTAS
(1) Artigo 28: “I – advertência sobre os efeitos da drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
(2) Os principais argumentos da decisão podem ser encontrados no Informativo n. 456.
(3) Exemplificativamente, podem ser citados os artigos 67; 44, II; 60, § 2º, 77, I, 33, § 2º, b e c; 117, VI, 81, I; 86, I; 155, § 2º; todos do CP. Guilherme de Souza Nucci lista 14 efeitos que a reincidência produz (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 378).
(4) No Estado Democrático e Social de Direito, o juiz não deve se limitar a ser a boca que reproduz as palavras da lei. Nesse sentido, a lapidar lição de Marco Antonio Rodrigues Nahum: “Neste papel primordial, o Juiz não pode se sujeitar apenas a simples letra da lei ou ao aspecto de vigência da norma, mas sim à Constituição como fonte de vínculos de vigência e validade de todo o sistema jurídico. É esta necessária garantia de um sistema jurídico coerente com a vontade constitucional, que legitima a função jurisdicional” (NAHUM, Marco Antonio Rodrigues. Os Direitos Fundamentais Garantidos Constitucionalmente e a Função Jurisdicional. Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 307-308). Portanto, a função essencial do juiz nesse modelo de Estado é a proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. 1, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 116-117).
(5) Também pode ser citado o caso do indivíduo que cumpre pena privativa de liberdade pela prática do crime de extorsão mediante seqüestro que teve duração superior a 24h. Nessa hipótese, a pena mínima é de 12 anos (art. 159, § 1º, CP). Condenado anteriormente pelo art. 28 da Lei de Drogas, em vez de dois quintos, terá que cumprir três quintos da pena privativa de liberdade para progredir de regime prisional (artigos 1º, IV e 2º, § 2º da Lei 8.072/90), o que certamente exigirá a permanência por mais alguns anos no regime fechado antes de ingressar no semiaberto.
(6) É dessa forma que Julio Fabbrini Mirabete expõe a legitimação do aumento decorrente da reincidência: “A exacerbação da pena justifica-se plenamente para aquele que, punido anteriormente, voltou a delinqüir, demonstrando com sua conduta criminosa que a sanção normalmente aplicada se mostrou insuficiente para intimidá-lo ou recuperá-lo. Há, inclusive, um índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reincide” (MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, São Paulo: Atlas, 2000, p. 301). Entretanto, a reincidência não é necessariamente um sinal de periculosidade. Nem sempre o reincidente é mais perigoso que o primário.
(7) Há autores, entretanto, que rechaçam a conformidade constitucional da reincidência, por manifesta violação aos princípios da proporcionalidade e da legalidade, que vedam o bis in idem. (CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 65; COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 194; FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e sua interpretação. 8ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 367; QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal – Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 29).
(8) (QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – Parte Geral, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 344).
(9) Escudado na proporcionalidade e na normativa estabelecida pelo Código Penal, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira sustenta que o crime previsto no artigo 28 da Lei de Drogas é incapaz de gerar efeitos penais secundários. “Eis o necessário raciocínio pela proporcionalidade: ora, se mesmo as contravenções penais que cominam pena privativa de liberdade não configuram falta grave, não revogam necessariamente o sursis e não geram reincidência para a futura prática de crime, como uma infração penal com ilícito menos intenso e abstratamente menos reprovável pode fazê-lo? Seria evidentemente desproporcional, contrariando os ditames de isonomia e razoabilidade que regem a interpretação racional do ordenamento” (JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; FULLER, Paulo Henrique Aranda. Legislação penal especial, vol. 1. 5ª ed., São Paulo: Premier Máxima, 5ª ed., 2008, p. 226).
(10) Tem pertinência o registro de que no II Encontro Estadual de Defensores Públicos do Estado de São Paulo, realizado em 2008, foi aprovada, por unanimidade, tese institucional com o seguinte teor: “Tese 18: A condenação pelo artigo 28 da Lei de Drogas não gera reincidência e outros efeitos secundários” (Boletim da Escola da Defensoria Pública, vol. I, n. I, janeiro/fevereiro 2009, p. 63).

Carlos Eduardo Afonso Rodrigues, Defensor Público do Estado de São Paulo, Mestrando em Direito Penal pela PUC/SP.

RODRIGUES, Carlos Eduardo Afonso. A condenação pelo artigo 28 da lei de drogas não gera reincidência e outros efeitos secundários. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 14-15 , out., 2009.
 

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog