quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ex-presidente defende descriminalização da maconha

No último dia 6 de setembro, foi publicado no jornal britânico The Observer texto do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC), no qual critica a política de combate às drogas, que ficou conhecida como “War on Drugs”.

Ainda, o ex-presidente defende a descriminalização da maconha. Leia o texto abaixo, em tradução livre feita por Luciano Anderson de Souza, Coordenador-chefe de Internet do IBCCRIM:

A guerra às drogas falhou. Agora precisamos de uma estratégia mais humana

A América Latina permanece o maior exportador do mundo de cocaína e maconha. Precisamos de uma nova e global aproximação a este problema

Por Fernando Henrique Cardoso

É hora de admitir o óbvio. A "guerra às drogas" falhou, pelo menos na maneira que tem sido empreendida até agora. Na América Latina, as "despretenciosas" conseqüências foram desastrosas. Milhares de pessoas perderam suas vidas na violência associada às drogas. Os barões da droga tomaram comunidades inteiras. A miséria espalhou-se. A corrupção está minando democracias frágeis.

E, após décadas de ataques, interdições, pulverizações e invasões em fábricas da droga na selva, a América Latina permanece o maior exportador do mundo de cocaína e maconha. Está produzindo cada vez mais ópio e heroína. Está desenvolvendo a capacidade de produção em massa de drogas sintéticas.

Continuar a guerra às drogas com o mais do mesmo é ridículo. O que é necessário é um debate sério que conduza à adoção de estratégias mais humanas e eficazes para tratar do problema global da droga. No começo desse ano, a Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia, que eu chefiei em conjunto com o último presidente da Colômbia, César Gaviria, e com o último presidente do México, Ernesto Zedillo, lançou a primeira medida efetiva para endossar genericamente a política de redução de danos e especificamente de descriminalização da maconha.

A conclusão fundamental do documento é a de que um deslocamento do paradigma é exigido, afastando-se da repressão dos consumidores de droga e em direção ao tratamento e à prevenção. O desafio é reduzir drasticamente os danos causados por narcóticos ilegais às pessoas, às sociedades e às instituições públicas.

Para se caminhar nesta direção, é essencial diferenciar-se as substâncias ilícitas de acordo com o dano que elas impõem. O status dos viciados deve mudar daquele de compradores de droga no mercado ilegal àquele de pacientes tratados pelo sistema de saúde pública. As atividades da polícia podem então ser melhor focadas em face dos barões da droga e do crime organizado.

O dispêndio de esforços em direção a uma política de redução de danos e descriminalização já começou. Recentemente, uma decisão paradigmática da Suprema Corte argentina e uma lei aprovada pelo Congresso do México, diante de todas as propostas práticas, afastaram penalidades criminais naqueles países para a posse de pequenas quantidades de drogas para o consumo pessoal e imediato.

A Colômbia foi o primeiro país a adotar esse rumo. Uma decisão de seu Tribunal Constitucional, em 1994, afastou as penalidades para o consumo privado. Bolívia e Equador liberalizaram suas leis sobre drogas. A mudança é igualmente iminente no Brasil. O chefe da Justiça de nossa Corte mais elevada fez uma argüição pública para o esclarecimento da diferenciação entre o consumidor de droga e o traficante de drogas. Uma ambigüidade atual na lei abre eficazmente oportunidades para a corrupção policial e a extorsão. A atual legislatura do Brasil está a ponto de considerar uma nova lei com vistas a remover as penalidades para o consumo de pequenas quantidades de maconha.

Isto é coerente com a tendência mais forte na Europa: a Holanda descriminalizou anos atrás; Portugal seguiu em 2001, enfatizando-se que a criminalização esvaiu recursos de tratamento e ainda intimidou pessoas na busca por auxílio - o número de pessoas que usavam drogas antes da descriminalização era mais elevado do que após. Nos Estados Unidos, as idéias de descriminalização e tratamentos alternativos à prisão está crescendo, mas não tem conseguido ainda uma massa crítica da sustentação e impulso em face das tradicionais - falhas - políticas punitivas, as quais permanecem fortes.

Há ainda um longo caminho a percorrer. A tendência para a descriminalização do porte ajuda a incrementar um paradigma de saúde pública. Quebra o silêncio sobre o problema da droga. Permite às pessoas pensar em termos de aproximação ao abuso de drogas não no sentido essencial de um problema para o sistema judicial penal. Reduzir o dano causado pelas drogas vai pouco a pouco em direção à diminuição do consumo.

As políticas repressivas para consumidores de droga são firmemente calcadas em preconceito, medo e visões ideológicas, mais do que na avaliação fria e dura das realidades do abuso de drogas. A aproximação recomendada na declaração da Comissão não implica complacência a respeito dos narcóticos e dos seus provedores. O abuso das drogas é prejudicial à saúde. Drogas abusivas minam a capacidade de autodeterminação do usuário. Agulhas compartilhadas propagam HIV/Aids e outras doenças. O vício pode conduzir à ruína financeira e ao abuso familiar, especialmente de crianças.

Para ser digna de crédito e eficaz, a descriminalização deve ser combinada com robustas campanhas de prevenção. A queda profunda no consumo de tabaco nas últimas décadas mostra como as campanhas de informação pública e de prevenção podem ser eficazes quando são baseadas em mensagens coerentes com a experiência daqueles que alvejam.

Nenhum país divisou uma solução detalhada ao desafio do abuso de drogas. E a solução não precisa de ser de uma escolha maniqueísta entre a proibição e a legalização. As aproximações alternativas estão sendo testadas e devem com cuidado ser revistas. Mas é claro que o caminho a seguir envolverá uma estratégia de alcance, paciente e persistentemente dirigida aos usuários, e não à contínua manutenção de uma guerra equivocada e ineficaz, que faz dos usuários, mais do que dos barões da droga, as vítimas principais.

Fernando Henrique Cardoso foi presidente do Brasil (1995-2003)
(Fonte: The Observer, 6 de setembro de 2009)

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