terça-feira, 28 de julho de 2009

Artigo:Breve notícia sobre o projeto de lei do senado federal 156/2009, que trata da reforma do código de processo penal

Decorridos nove meses da entrada em vigor da chamada reforma processual penal, em agosto de 2008(1), a Comissão externa, criada pelo Senado Federal em junho de 2008, para apresentar o Anteprojeto de Lei de reforma do Código de Processo Penal e coordenada pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido(2), apresentou o resultado de seu trabalho, que se transformou no Projeto de Lei do Senado Federal 156/2009.

A grande novidade é que se trata de versão de Código inteiramente novo, opção esta diferente daquela tomada pela Comissão presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover em 2000(3).

Dividido em seis Livros(4), o Projeto de Código inicia com a enumeração dos princípios fundamentais que o regem e invoca a estrita obediência ao devido processo legal constitucional(5), assumindo o compromisso com as garantias individuais. Este comprometimento (aliás também presente na Comissão de 2000) é importantíssimo para que o respeito aos direitos fundamentais se dê de forma efetiva e concreta. Como asseverado na Exposição de Motivos: “... As garantias individuais não são favores do Estado. A sua observância, ao contrário, é exigência indeclinável para o Estado. Nas mais variadas concepções teóricas a respeito do Estado Democrático de Direito, o reconhecimento e a afirmação dos direitos fundamentais aparecem como um verdadeiro núcleo dogmático. O garantismo, quando consequente, surge como pauta mínima de tal modelo de Estado(6).

O princípio acusatório é adotado de forma expressa. A proposta levada ao Congresso Nacional veda, de forma explícita, a atividade instrutória do juiz na fase de investigação(7) e institui a figura do “juiz das garantias”, responsável “pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais(8), com duplo intuito, de acordo com a Comissão: otimizar a atuação jurisdicional e manter o distanciamento do juiz do processo em relação aos elementos de convicção produzidos na investigação e dirigidos ao Ministério Público. Ainda com relação à fase preliminar da persecução penal, altera-se a tramitação do inquérito policial, retirando do Poder Judiciário o controle de seu arquivamento, que passa a ser exclusivo do Ministério Público(9). Quanto a este último aspecto, em especial, é de se notar que a Comissão de 2000 também estabeleceu tal proceder(10).

No âmbito da ação penal, o Projeto vai mais além da estrutura hoje vigente, que assegura ao Ministério Público a promoção, de forma privativa, da ação penal de natureza pública, conforme a previsão contida no art. 129, I, da Constituição da República. Pela nova proposta, deixa de existir a ação penal de iniciativa exclusivamente privada, dispondo o art. 45 do Projeto que “a ação penal é pública, de iniciativa do Ministério Público”. A ação de iniciativa privada será apenas subsidiária, em caso de morosidade do poder público. Admite-se, porém, a ação pública condicionada à representação, nos casos previstos no art. 46.

O Projeto abre espaço para a chamada justiça restaurativa, ao instituir a possibilidade de composição civil dos danos, com efeitos de extinção da punibilidade no curso do processo, relativamente às infrações de menor potencial ofensivo e aos crimes contra o patrimônio praticados sem violência ou grave ameaça, tornando estes últimos, aliás, dependentes de representação(11).

Dentre outras novidades do Projeto, destaca-se a possibilidade de ingresso da vítima, enquanto parte civil, nos autos. Poderá ela atuar não só como assistente do Ministério Público, mas também, se o desejar, como parte processual a ser alcançada na sentença penal condenatória(12). Neste passo, o Projeto disciplina polêmico assunto, qual seja, o da possibilidade de, no âmbito penal, ser arbitrada indenização pelo dano moral causado pelo ilícito penal, sem prejuízo da ação civil com relação aos danos materiais, a ser ajuizada contra o acusado e o eventual responsável civil. A redação atual, de acordo com a Lei 11.719/2008, permite ao juiz fixar “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”, sem especificar a natureza de tais danos (art. 387, IV, CPP).

No que se refere ao tema dos procedimentos, o Projeto incorpora várias disposições contidas nas alterações trazidas pelas Leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008, além da Lei 11.900/2009. Mas propõe o que chama de “um novo acomodamento legislativo”(13), segundo a Comissão, ao: i) possibilitar o fracionamento da audiência em algumas hipóteses; ii) modificar o conteúdo do procedimento sumário, com a previsão de imediata aplicação de pena mínima ou reduzida quando, nos crimes cuja pena máxima não seja superior a oito anos, o acusado confessar os fatos e a sanção for ajustada entre as partes; iii) incorporar o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais ao Código; iv) alterar as regras do procedimento do júri, aumentando o número de jurados de sete para oito e disciplinando a separação dos processos conexos, não dolosos contra a vida, dentre outras alterações(14).

O Projeto disciplina as medidas cautelares (o que também fez, neste passo, a Comissão de 2000), trazendo disposições gerais e tratamento das medidas cautelares pessoais e reais(15). De acordo com a Exposição de Motivos(16), o texto proposto adotou quatro principais diretrizes: i) o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da CR), na medida em que a prisão e outras formas de restrição só se justificam se houver necessidade concreta; ii) a estrutura do modelo acusatório, proibindo-se a decretação de medidas cautelares de ofício na fase de investigação; iii) o princípio da proporcionalidade, já que o recurso à prisão somente será legítimo quando outras medidas cautelares se revelarem inadequadas ou insuficientes; iv) o princípio da duração razoável do processo, por meio da proposição de duas faixas de prazos: uma para os crimes com pena privativa de liberdade inferior a 12 anos e outra para crimes cuja pena seja superior a tal patamar(17). Ainda no âmbito cautelar, o Projeto disciplina o uso de algemas(18) e traz novo regramento para a prisão especial.

No tocante aos recursos(19), a proposta altera a sistemática hoje vigente, restringindo o cabimento dos embargos infringentes e de declaração e trazendo novo regramento aos recursos de apelação, agravo, extraordinário e especial e embargos de divergência. O agravo cabível contra a inadmissão dos recursos extraordinário e especial será interposto nos próprios autos do processo, atribuindo-se, outrossim, ao relator, competência para julgamento monocrático dos recursos, quando a decisão impugnada contrariar a jurisprudência dominante ou enunciado de súmula. É de se destacar, quanto ao tema, que a Comissão de 2000 também deu tratamento diverso daquele em vigor desde 1941(20).

Já no âmbito das ações de impugnação(21), o Projeto deixa expressa a natureza jurídica do habeas corpus e da revisão criminal, hoje inseridos nas disposições que tratam dos recursos, tal como posto pela Comissão de 2000(22). O habeas corpus, porém, passa a ter sua aplicação restringida aos casos de prisão e de iminência de prisão ilegais, uma vez que, das decisões interlocutórias, inclusive o recebimento da denúncia, o recurso cabível será apenas o agravo. O projeto regulamenta, ainda, o mandado de segurança em matéria penal e amplia a legitimidade na ação de revisão criminal.

O Projeto de Lei do Senado nº 156, de 2009, segue, agora, sua tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). A primeira audiência pública, de uma série programada, realizou-se em 4 de maio de 2009, com a presença dos membros da Comissão. A segunda deu-se em 4 de junho, tendo sido promovida pela Comissão Temporária de Reforma do Código de Processo Penal, que foi criada no âmbito do Senado Federal, sob a presidência do senador Demóstenes Torres, tendo na vice-presidência a senadora Serys Shlessarenko e na relatoria o senador Renato Casagrande(23).

O paradoxo que pode ser desde logo apontado é que a reforma processual penal, iniciada pela Comissão de 2000, ainda não foi concluída, encontrando-se em tramitação no Senado Federal três Projetos de Lei (investigação policial, medidas cautelares e prisão e recursos), já aprovados na Câmara dos Deputados. E as leis promulgadas em 2008 entraram em vigor no mesmo mês em que a Comissão Externa do Senado iniciou seus trabalhos.

NOTAS

(1) Resultado da promulgação das Leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008, em junho de 2008, que entraram em vigor no mês de agosto daquele mesmo ano.

(2) Constituem, ainda, a Comissão: Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Eugênio Pacelli de Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Júnior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral. A Comissão foi criada a pedido do senador Renato Casagrande (PSB-ES) e designada pelo Presidente do Senado, senador Garibaldi Alves Filho, por meio do Ato 11/08.

(3) A Comissão, secretariada por Petrônio Calmon Filho, foi composta ainda por Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti. A Comissão de Reforma justificou, à época, a opção pela reforma fatiada em oito Projetos, tendo em vista as reconhecidas dificuldades na aprovação de um Código inteiramente novo.

(4) Assim denominados: da persecução penal; do processo e dos procedimentos; das medidas cautelares; das ações de impugnação; das relações jurisdicionais com autoridade estrangeira e disposições finais.

(5) V., em especial, arts. 1º a 4º do Projeto.

(6) Cf. item I da Exposição de Motivos.

(7) V., a propósito, art. 4º do Projeto.

(8) Cf. item III da Exposição de Motivos. O Juiz das Garantias está disciplinado nos arts. 15 a 18 do Projeto.

(9) V. arts. 37 a 40 do Projeto.

(10) V., a propósito, art. 28 e parágrafos do Projeto de Lei 4.209/2001, que tramita no Congresso Nacional. O texto aprovado na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal, porém, é resultado de substitutivo que introduziu profundas alterações no texto original.

(11) Cf. art. 46 e § 2º do Projeto.

(12) Cf. arts. 79 a 82 do Projeto.

(13) Cf. item V da Exposição de Motivos.

(14) Os procedimentos estão disciplinados no Livro II, Título II, arts. 257 a 398, dividindo-se em: i) disposições gerais; ii) do procedimento ordinário; iii) do procedimento sumário; iv) do procedimento sumaríssimo (que se desenvolve perante o Juizado Especial Criminal; v) do procedimento na ação penal originária; vi) do procedimento relativo aos processos da competência do tribunal do júri.

(15) As medidas cautelares estão disciplinadas nos arts. 513 a 626 do Projeto.

(16) Cf. item VI da Exposição de Motivos.

(17) Os prazos máximos de duração estão previstos nos arts. 546 a 549 do Projeto, exigindo-se reexame obrigatório pelo juiz ou tribunal competente, quando a prisão exceder 90 dias.

(18) O uso das algemas vem disciplinado no art. 525 e parágrafos, do Projeto.

(19) Os recursos estão disciplinados nos arts. 447 a 512 do Projeto.

(20) Cf. Projeto de Lei 4.206/2001, que ora tramita no Congresso Nacional. O Projeto encontra-se em tramitação no Congresso Nacional. O texto aprovado na Câmara dos Deputados é resultado de substitutivo apresentado pelo deputado João Campos, que alterou, em alguns aspectos, o texto original.

(21)A revisão criminal, o habeas corpus e o mandado de segurança estão previstos, respectivamente, nos arts. 627 a 634; 635 a 652 e 653 a 663 do Projeto.

(22)Cf. Projeto de Lei 4.206/2001.

(23)Também fazem parte da Comissão Temporária os senadores Marco Maciel, Papaléo Paes, Almeida Lima e Patrícia Saboya. De acordo com o Jornal do Senado, de 21/5/2009, a Comissão Temporária de Reforma do Código de Processo Penal iniciou seus trabalhos no dia 20 de maio, sendo que o presidente designou os seguintes senadores para as sub-relatorias criadas: Romeu Tuma (inquérito policial); Valter Pereira (provas); Serys Slhessarenko (recursos); Marconi Perillo (medidas cautelares) e Tião Viana (procedimentos).

Maria Thereza Rocha de Assis Moura

Ministra do Superior Tribunal de Justiça. Professora Doutora de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da USP.

MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Breve notícia sobre o projeto de lei do Senado Federal 156/2009, que trata da reforma do código de processo penal. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 200, p. 04-05, julho 2009.

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