terça-feira, 28 de julho de 2009

Artigo: O negro pobre, o repórter e a mídia

Primeiro caso (todos os dias). A cena se repete, com uma insistência rotineira: o suspeito, negro, pobre, pouco nutrido, quase nu, algemado, com lesões visíveis pelo corpo – cuja causa, porém, não é explicada – acuado contra a parede de uma Delegacia de Polícia, como se fosse um bicho, uma fera que pudesse, a qualquer momento, atacar o incauto que dela arriscasse se aproximar. A sua frente, um repórter policial que parece estar bem à vontade naquele ambiente, aponta desafiadoramente um microfone para o rosto do preso, e lhe dirige perguntas irônicas, em tom sarcástico, num verdadeiro interrogatório midiático, que não se faz preceder, todavia, de advertências quanto às garantias constitucionais de permanecer em silêncio, ter assistência de um advogado etc. Em alguns momentos, repetem-se perguntas já respondidas de forma evasiva, desta feita com insinuações explícitas, deixando clara a descrença do repórter inquisidor nas explicações do interrogado, tudo sob a escolta de algum policial que garante a segurança, estrategicamente posicionado por trás da câmera – como se isso fosse necessário – e que presta, na sequência, ao mesmo repórter, esclarecimentos sobre a prisão do “elemento de alta periculosidade”, que tem “várias passagens” por aquela delegacia, e sempre destaca, com ar de quem tem vasta experiência no assunto, que tudo o que foi dito pelo preso é mentira.

Segundo caso (abril de 2008). Famoso repórter policial de uma das maiores redes de televisão do País é preso em São Paulo. Os telejornais divulgam discretamente o fato. As matérias esclarecem que o repórter foi detido na zona sul da cidade, pois, “segundo a polícia”, havia dez papelotes de cocaína em seu carro. Mas destacam, enfaticamente, que tudo não passaria de uma “armação”, já que, de acordo com a rede de comunicação que o emprega (pagando-lhe um salário de R$ 105.000,00 por mês!), o repórter estaria trabalhando em uma matéria “investigativa” sobre o tráfico de drogas. Uma mulher, que servia como “fonte” do repórter para informações sobre determinada facção criminosa, teria forjado o flagrante para comprometê-lo. Em carta posteriormente divulgada por diversos meios de comunicação e pela internet, o repórter se diz vítima de uma armação “em virtude de estar investigando assuntos que incomodam a muitas pessoas”, mas que, a despeito disso, protegerá suas fontes, já que considera “o respeito entre fonte e jornalista um dos princípios mais sagrados” da sua profissão. Nenhuma imagem do repórter, preso ou após ser-lhe restituída a liberdade, é divulgada.

Alguns atributos nos acompanham de quando nascemos até o instante em que morremos. A imagem é um deles(1). Aliás, um atributo cuja revelação é esperada por muitos, antes mesmo de virmos ao mundo. Qual pai ou mãe grávida não aguardam, ansiosamente, o dia do parto, dentre tantas outras razões, para saber com quem o filho se parecerá e para, enfim, co­nhecer aquele sorriso tão doce? Essa primeira imagem marca a memória para sempre. A última de todos nós, de igual modo, é difícil de esquecer. Quem já esteve em um velório que o diga! Mas nossa imagem está conosco não apenas nesses momentos extremos. Também e, sobretudo, em cada instante de nossos dias. E vários ganham a vida (aliás, muito bem!) com ela. O “mundo da moda”, das passarelas e das fotografias, proporciona isso. A imagem é o nosso cartão de visitas nas relações humanas. Aquilo que nos identifica, nos individualiza, nos destaca nesse universo de seres humanos em que vivemos. Há quem ganhe ou perca o emprego por causa dela, seja respeitado ou discriminado em virtude dela. A imagem define o resultado de eleições, constrói e destrói políticos. Pompeia, mulher de Júlio César, foi punida porque não parecia honesta, muito embora o fosse. “A mulher de César, como César, tem que estar acima de qualquer suspeita”, disse o imperador romano. A imagem de honestidade lhe era imprescindível.

Mas a imagem, muito embora seja nossa, é moldada na mente do outro. É a subjetividade do nosso interlocutor ou do receptor da informação que filtra a imagem do que somos, modelando o que seremos para eles. E é exatamente aqui que se avulta a relevância do eventual intermediário dessa comunicação: aquele que leva nossa imagem ao destinatário da mensagem. A mídia, nas sociedades modernas, desempenha, por excelência, o papel desse intermediário. Porém não o faz por acidente, ou por simples acaso. Ninguém vive, em nossos tempos, sem informação. Poder informar e ser informado é uma necessidade imposta pelo modo de vida contemporâneo, forjado nas sociedades do capitalismo tardio(2), em que tudo se consome, inclusive informação. Mas nada se consome sem antes ser produzido. Também, aqui, a informação. Aquilo que se produz para consumo, não nos esqueçamos, é mercadoria, cuja circulação se sujeita às regras de mercado, inclusive aquela que pode ser tida como a mais conhecida de todas: a lei da oferta e da procura. O produtor oferece ao mercado o produto que tem maior demanda.

E quanto maior a demanda, maior a produção. Ora, se informação é, também, objeto de consumo, será, igualmente, mercadoria. E como tal, seu conteúdo será condicionado pelos interesses do consumidor. Ao produtor da informação – a mídia – restará satisfazê-lo. Essa avaliação, por mais pragmática e realista que pareça, não ignora, todavia, o papel político conferido à imprensa. Legatária do ideal iluminista de que os cidadãos devem ser esclarecidos sobre as atividades do Estado, foi dela, imprensa, no auge das revoluções burguesas, a função de monitoramento do poder. Ser o fiscal e o guardião das liberdades individuais, o “cão de guarda” da democracia. A combinação desses elementos – imagem + informação como produto de consumo + função política da imprensa – torna-se hoje, entretanto, extremamente perigosa quando o trabalho dos meios de comunicação se volta para a dinâmica da intervenção penal. E isto porque o fenômeno da delinquência, com toda a sua complexidade, passa a ser a matéria prima da informação que será oferecida como mercadoria. Sem compreender a criminalidade em sua dimensão social, a partir de suas múltiplas causas, e menos ainda o papel que as instâncias formais de controle social devem desempenhar no Estado democrático de direito, a abordagem midiática de episódios eleitos como relevantes, sem qualquer critério claro e seguro para isso – ora toma-se em conta a posição social e econômica do suspeito, ora a vio­lência do delito, ora uma condição especial da vítima etc. – se resume a uma cobertura panfletária, açodada e tendenciosa, que simplesmente publica uma opinião, quando deveria, a rigor, informar a opinião pública.

A intervenção penal é seletiva. Não há quem hoje, com argumentos sólidos, se disponha a questionar essa afirmação. E a mídia, de certa forma, acompanha essa seletividade. Só pode divulgar como crime aqueles fatos assim definidos em lei. Nada obstante, a imprensa desenvolve uma seletividade própria. Escolhe, no universo dos delitos passíveis de divulgação, aqueles que devem virar “notícia”. Assim, se o “criminoso” é pobre, socialmente excluído, desconhece suas garantias fundamentais e não é assistido por alguém que possa orientá-lo a respeito, sua vulnerabilidade à exposição midiática se potencializa. Por outro lado, se a pessoa presa é um repórter policial influente – que não é mais tratado como “criminoso”, pois a audiência dos programas que apresenta depende da sua imagem de cidadão honesto – a matéria-prima torna-se desinteressante, e a mercadoria, pouco vendável.

O Direito Penal é mecanismo de exercício de poder. Constrói um discurso que precisa ser convincente, para conseguir “controle” (ou tentar consegui-lo). A imprensa também atua como instrumento de exercício de poder, e, no que afeta a delinquência, desenvolve um discurso próprio, tão estereotipado quanto o próprio discurso penal. Não é à toa que ela, imprensa, cria meios para que esse discurso se torne o mais apelativo possível: repórteres travestidos de arapongas, com câmeras ou gravadores escondidos, que registram imagens e sons sem a ciência do interlocutor, como se esse fosse um instrumento legítimo de coleta de informação no Estado democrático de direito; testemunhas “sem rosto”, que não querem ser identificadas – e que, só por isso, não deveriam sequer ser entrevistadas no ar – e prestam depoimentos fragmentados sobre algum episódio da pauta do dia, sem que se possa saber, afinal de contas, quem é aquela pessoa que está falando; conversas telefônicas que deveriam, pelo menos até o encerramento da investigação policial, ser sigilosas, são divulgadas em pequenos trechos, pontualmente escolhidos, mas sem que se explique como o órgão de imprensa teve acesso àquela gravação(3).

A ideia de que a imprensa revela a “verdade”, os fatos segundo ocorreram, é, muitas vezes, falaciosa. Não há verdade que não seja resultado da interpretação da realidade. Cada realidade pode produzir, portanto, diversas verdades, tantas quantas forem as possibilidades de interpretação dessa mesma realidade. E como toda interpretação, aquela que os meios de comunicação fazem dos acontecimentos a fim de construir a notícia será sempre parcial e, portanto, incompleta.

Patrick Charaudeau(4) ressalta que as provas da verdade pertencem à ordem do imaginário, ou seja, estão fundadas nas representações que um grupo social adota a respeito de algo que é suscetível de validar uma informação, dando-lhe certa garantia. E essa validade consiste em demonstrar a autenticidade e a verossimilhança da informação. A autenticidade se caracteriza pelo fato de que é possível atestar a própria existência dos seres do mundo, sem qualquer filtro entre o mundo empírico e a percepção humana. Esse mecanismo busca construir uma realidade de “transparência”, de ordem, portanto, ontológica, provada, como se a verdade dos seres consistisse na simples condição de “estarem aí”. Assim, os meios utilizados para a construção desse imaginário realizam a regra segundo a qual “a verdade é o que eu mostro”. Aqui, recursos como a exibição de documentos e de imagens se prodigalizam no esforço da mídia de mostrar o mundo tal como ele é.

A verossimilhança, por sua vez, pressupõe a possibilidade de se reconstruir analogicamente aquilo que foi (passado), partindo-se do pressuposto de que, para o destinatário da informação, os fatos já se produziram. Molda-se, desta forma, uma realidade de suposição, com meios que tendem à reconstrução de um acontecimento, segundo a regra “assim deve ter ocorrido isto”. Entrevistas e depoimentos de testemunhas compõem um trabalho de investigação que a imprensa realiza buscando refazer o que aconteceu(6).

Ocorre que esses recursos, a despeito de sua idoneidade para construir a informação, não podem representar violação a princípios constitucionais como o da presunção de inocência e da inadmissibilidade de provas ilícitas. Ademais do aspecto de conformidade constitucional, há que se ter em conta que os meios empregados pela mídia para conferir autenticidade e verossimilhança à informação tendem, invariavelmente, a robustecer a estigmatização inerente à dinâmica da intervenção penal e a interferir, não raro, nos rumos da política criminal. No Brasil, e desde bastante tempo, leis penais são promulgadas em virtude da maior intensidade com que determinadas notícias são veiculadas. O direito penal como ultima ratio torna-se, então, uma fórmula teórica meramente ideal. Antes da criminalização primária, há a criminalização midiática. O processo penal se recrudesce, pois a ansiedade social pela resposta condenatória funciona como um sintoma da celeridade com que os meios de comunicação tiram e divulgam conclusões. E nada melhor para satisfazer essas expectativas punitivas do que avivar a inquisitoriedade do processo, prodigalizando a prisão provisória, reduzindo as possibilidades de defesa e entregando à massa, muito antes do que se deveria, um culpado.

Em outras palavras, o modelo de intervenção penal nas sociedades neoliberais acaba condicionado, e muito, pela influência da mídia. No mais das vezes, essa influência tem proporcionado apenas a expansão do direito penal, que passa a ser utilizado como instrumento de defesa social, e que encontra legitimidade na ideia de que tem ele, direito penal, aptidão para proteger a maioria, não desviada e socialmente ajustada, da minoria desviada e perigosa. É a proposta maniqueísta da segurança pública, segundo a qual a delinquência constitui um fenômeno indesejado, protagonizado por indivíduos que compõem uma camada social perfeitamente identificável, e que podem, portanto, ser inocuizados.

Já é passada a hora de se reconhecer, com sinceridade e coragem, que o exercício de garantias processuais penais não pode depender da utilização que a mídia faz da imagem do investigado ou acusado; que a pauta da política criminal não pode ser definida pelo que a mídia elege como relevante; e que a seletividade dos meios de comunicação na escolha de quem será rotulado como “criminoso” não constitui aspecto da liberdade de informação, mas, ao contrário, representa exercício arbitrário desse direito constitucional. Se isto acontecer, talvez o negro pobre e o repórter sejam tratados pela mídia da mesma forma. E é claro, quem vai agradecer é o negro pobre.

NOTAS

(1) A Constituição Federal de 1988 conferiu ao direito à imagem o status de garantia fundamental prevista em seu art. 5º, X, assegurando não apenas a sua inviolabilidade, mas também o direito do lesado à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua afetação.

(2) A expressão é de Nilo Batista (“Mídia e sistema penal no capitalismo tardio”, in Discursos Sediciosos nº 12. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002).

(3) O Anteprojeto do novo Código de Processo Penal, elaborado por comissão de juristas cujos trabalhos foram coordenados pelo min. Hamilton Carvalhido, do Superior Tribunal de Justiça, e recentemente encaminhado ao Congresso Nacional, prevê, em seu art. 11, caput, que “toda investigação criminal deve assegurar o sigilo necessário à elucidação do fato e preservação da intimidade e vida privada da vítima, das testemunhas e do investigado”, acrescentando, em seu parágrafo único, que “a autoridade diligenciará para que as pessoas referidas no caput deste artigo não sejam submetidas à exposição dos meios de comunicação” (grifado).

(4) El discurso de la información: la construcción del espejo social. Barcelona: Gedisa Editorial, 2003, pp. 65-66.

(5) Ibidem, p. 66.

Marcus Alan de Melo Gomes

Mestre e doutor em Direito pela PUCSP. Professor Adjunto de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Pará (Graduação e Programa de Pós-Graduação em Direito). Juiz de Direito.


GOMES, Marcus Alan de Melo. O negro pobre, o repórter e a mídia. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 200, p. 10-11, julho 2009.

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