quinta-feira, 18 de junho de 2009

Artigo: WALDIR

Uma das coisas pelas quais agradeço ao Senhor foi ter sido preso antes de ter sido advogado(1).

Chico Buarque de Hollanda, em sua bio­grafia, afirma jamais ter tido interesse em conhecer os escritores que admirava, lhe bastava conhecer a obra dos mestres.

Lembro-me disso para dizer que minha geração foi privada, pela madrastaria do destino, de poder conhecer o grande mestre da advocacia paulista Waldir Troncoso Peres, tanto sua figura mítica como sua assustadora obra, que se perdeu, em sua grande maioria, incrustada nas paredes dos tribunais e na névoa das madrugadas.

O que dizer de alguém que não conheci e de quem só ouvi falar por alguns de seus amigos, sobre suas proezas, malandragens até e por sua vida poética — Drummond afirmou certa vez que nosso maior poeta fora Vinícius de Moraes, por não ser apenas um grande poeta, mas por ser o único a ter vivido como poeta?

Seriam comentários de ouvir dizer, coisa que com certeza o grande mestre repudiaria caso atestassem algo, pró ou contra alguém.

Restrinjo-me apenas a minha experiência com Waldir, que confesso tardia, mas intensa.

Lembro-me da primeira vez que o ouvi. Estávamos alguns amigos reunidos quando um deles, meio que em tom provocativo, colocou gravação de discurso de Waldir no som da sala e, entre um trago e outro, imperativamente afirmou, apontando o dedo para mim: “Ouça e me diga se já ouviu algo igual, depois descubra quem é!”

O tom provocativo se dava, simplesmente, pela admiração que eu tinha às três grandes gerações de advogados criminais cario­cas e pela importância política, científica e histórica de mestres como Evaristo de Moraes, Bulhões Pedreira, Jorge Severiano, João da Costa Pinto (os da primeira geração), Romeiro Neto, Evandro Lins e Silva, Alfredo Tranjan, Carlos Araújo Lima (os da segunda), Evaristo de Moraes Filho, George Tavares, Augusto Thompson, Laér­cio Pellegrino, Humberto Teles (os da terceira) entre tantos outros.

Mas juro que, embora um pesquisador com certo êxito, no que toca conhecer os discursos dessas lendárias figuras — gravados ou transcritos — nada se parecia com aquilo.

O som tornara-se sólido e todos os espaços do ambiente se preencheram pela voz estridente instantaneamente, tamanha era a velocidade e potência daquilo.

Não tenho dúvida que primeiro houve o espanto; não conseguia eu, atordoado, identificar nenhuma palavra que era jorrada à sala e à minha mente. Ouvi apenas a voz.

Alguns minutos depois, esmaecido o espanto, comecei a perceber as palavras que vinham daquele vulcão e senti orgulho de minha língua, de como é lindo o uso do prenome nós ao invés do “a gente”.

Já apaixonado pelo formato daquilo tentei compreendê-lo, sem saber até hoje como o raciocínio de um homem pode ser tão ágil, encadeado e transformar-se em palavras tão hipnotizantes e indulgentes.

A sala estava silente, e assim permaneceu por um longo período, até que, sem nunca tê-lo ouvido afirmei: “O que pelas descrições parecia ser mentira, é verdade esse cara é o Waldir.”

O resultado daquela noite deve ter sido similar à de algum torcedor santista perdido numa noite fria, na Vila Belmiro, pelo ano de 56 ou 57, que recebeu a camisa de um jovem atacante de 16 anos, com o número 10 estampado nas costas.

Em miúdos, descobri Pelé e fiquei com a camisa. Descobri Waldir e surrupiei a mídia.

Convivi com Waldir intensamente graças à curiosa relação — meu carro, CD e trânsito da cidade de São Paulo — e por obra do destino, tempos depois, me chegou pelas mãos de um fraternal amigo e defensor público longa filmagem de Waldir num programa de entrevistas.

Eu nunca havia visto Waldir.

Juro que fiquei um tanto decepcionado ao perceber que a voz tinha também carne e osso, que o mestre era um ser humano — não no sentido de normalidade que traz o termo. Mais ou menos como se Moisés não encontrasse apenas uma voz no topo do monte, mas um velhinho de óculos vestido de terno e gravata.

Só que ali, naquela gravação, havia mais.

Os gestos daquele homem, o desenho das palavras feito por suas mãos fazia mais compreensível a enxurrada de palavras e os motivos da pausa no discurso.

Suas afirmações faziam par com gesto vertical, de cima para baixo.

Suas negações acompanhadas de seus longos dedos e do balançar da cabeça.

O tom desafiador do corpo inclinando-se para frente e enfrentando o interlocutor.

O silêncio sepulcral após a observação perfeita.

Esse foi o Waldir que pude conhecer. Em duas mídias distintas, ou melhor, em duas horas e meia de gravação aprendi tanto ou mais do que anos nos bancos escolares, nas centenas de júris que assisti ou nas dezenas que participei.

Algum tempo depois, descobri que Waldir fora defensor público do Júri, na época que os serviços de defensoria pública eram exercidos pela jazida Procuradoria de Assistência Judiciária. Razão pela qual ouvi encantado em uma dessas mídias: “Com certeza fui mais feliz no tempo em que defendia os réus pobres.”

Fiquei mais espantado ao saber que o grupo de Defensores Públicos do Júri era composto de Waldir Troncoso Peres, Márcio Thomaz Bastos e Raimundo Paschoal Barbosa.

A mídia se interessou timidamente por sua morte, quase se esqueceu (para ser educado) de louvar sua vida. A mesma mídia que sempre prejulgou e sentenciou seus clientes, sem jamais tê-los acompanhado ou testemunhado quem eram esses, agora se esqueceu daquele que sempre era procurado na busca por um furo de reportagem.

Ouvi de um querido amigo jornalista que sua revista não se interessaria por mencionar Waldir, pois não seria vendível. Isso se passou no dia de sua morte.

De outro lado, ouvi de outro querido amigo, promotor de Justiça, acusador no Júri dos mais talentosos, que sua geração só estava no júri, e ele mais especificamente, por causa do Waldir.

Linda — isso sim! — foi homenagem do gigante José Carlos Dias, que cumpriu sua missão de advogado, poeta e ser humano dos mais sensíveis, ao louvar o amigo e mestre com lindíssimas palavras.

Seja como for, não conheci Waldir. Gostaria de tê-lo feito, pois a obra do mestre não se imortalizou no papel — o que me impede de adotar as restrições de Chico Buarque.

Quem conheceu não quer me contar.

E aos próximos não teremos — a minha geração — o que contar...

...se bem que Waldir, graças à tecnologia, fala por si mesmo.

Morreu o último capaz de louvar, de encantar, de convencer, ficou o seu silêncio e o de muitos que não o cantaram, porquanto deveriam.

Assim como o silêncio antes da sala secreta.

Só que dessa vez, Waldir ganhou o eterno, a liberdade plena.

Nota

(1) Frase proferida pelo saudoso mestre no programa “Jogo da Verdade”, quando entrevistado por Percival de Souza e Márcio Thomaz Bastos.

Thiago Gomes Anastácio

Advogado criminal; membro da Comissão de Segurança Pública e Justiça do IBCCrim; associado do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa)

ANASTÁCIO, Thiago Gomes. Waldir. Boletim IBCCRIM: São Paulo, ano 17, n. 199, p. 17-18, junho 2009.

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