sexta-feira, 12 de junho de 2009

Artigo: A conformação do estatuto de Roma com a constituição de 1988:

A conformação do estatuto de Roma com a constituição de 1988: a imprescritibilidade e os princípios do estado democrático de direito e da segurança e estabilidade das relações jurídicas.

Durante a pós-modernidade, dois grandes movimentos marcaram o direito: a afirmação histórica do direito internacional e a sedimentação do constitucionalismo. Neste cenário, se desenvolveram o Direito Penal Internacional e o Direito Constitucional. Da relação entre a projeção internacional e interna da ordem jurídica, em razão da supremacia e força normativa da constituição, eventual conflito entre as disposições deverá ser solucionado a partir do filtro axiológico constitucional. Por conseguinte, as normas do Estatuto de Roma (ER) devem guardar conformidade com a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), sob pena de invalidação.

O artigo 29, do ER dispõe que todos os crimes internacionais contemplados em suas disposições são imprescritíveis. Este é o tema do estudo. Para a exata compreensão de sua conformidade ou não com a CRFB/88, deve-se, inicialmente, compreender a ideia de prescrição e de imprescritibilidade.

A prescrição penal é a perda da pretensão punitiva ou executória do Estado em razão de sua inércia e pelo decurso do tempo, funcionando como uma causa de extinção da punibilidade de um crime ou contravenção (artigo 107, inciso IV, do Código Penal), portanto, instituto de ordem pública e de natureza material, uma vez que afeta o valor constitucional da liberdade. Revela, desta forma, um duplo aspecto: ao passo que a incidência da prescrição limita o Estado no exercício do seu direito de punir, também incide sobre os direitos individuais, uma vez que preserva, consolida e amplia o exercício pleno do direito decorrente do valor constitucional da liberdade.

A imprescritibilidade, por outro lado, é a situação diametralmente oposta porque ao permitir que o Estado, a qualquer tempo, exerça o seu direito de punir, impede o exercício pleno do direito decorrente do valor constitucional da liberdade pela promoção de acentuado grau da sensação de insegurança pública e desestabilização social; num ambiente de pós-modernidade, marcada pela juridicidade e pela ampla liberdade pública, além da afirmação e do reconhecimento das garantias e liberdades constitucionalmente reconhecidas, é completamente ilegítimo que a própria ordem jurídica, constitucional e legal, fomente a incompetência do Governo e a ineficiência do Estado em detrimento dos direitos e das garantias fundamentais dos indivíduos, especialmente quando há referência aos direitos substancialmente mais caros, como é o direito decorrente do valor constitucional da liberdade.

Ao lado destas considerações, o Poder Constituinte Originário estabeleceu apenas duas hipóteses de imprescritibilidade: o crime de racismo (artigo 5º, inciso XLII) e o crime contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (artigo 5º, inciso XLIV). Com efeito, a regra constitucional é a da prescritibilidade, salvo em duas situações excepcionais, como forma de densificar o princípio da segurança e estabilidade das relações sociais e, consequentemente, promover o direito decorrente do valor constitucional da liberdade.

Neste ponto, duas questões relacionadas com os direitos fundamentais revelam a sua importância. No que se refere à técnica interpretativa, qualquer interpretação que imponha restrição aos direitos fundamentais deve ser restritiva para que se preserve, ao máximo, o seu conteúdo. Uma segunda consideração, a mais importante, sobre a projeção do status negativo dos direitos fundamentais porque, a partir do momento em que o instituto da prescrição penal guarda natureza material, atingindo o direito decorrente do valor constitucional da liberdade, revela o seu assento constitucional; ou seja, a prescrição penal, por encontrar fundamento não apenas no princípio do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput, da CRFB/88, revelador da paz pública e da segurança e estabilidade das relações jurídicas), também encontra fundamento constitucional no direito decorrente do valor constitucional da liberdade, expresso no caput, do artigo 5º, da CRFB/88, que foi erigido a direito fundamental. Nesta ordem de ideias, pode-se afirmar que a prescritibilidade, por ser expressão do direito fundamental das liberdades (artigo 5º, caput, da CRFB/88) e é cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, inciso IV, da CRFB/88), sendo vedada a sua remoção ou modificação(1).

Portanto, o artigo 29 do ER não está em conformidade com a normatividade interna constitucional porque prevê hipóteses de imprescritibilidade não contempladas pela CRFB/88, além de não possuir o condão de remover ou modificar o conteúdo das disposições constitucionais confrontantes. Com efeito, a preservação deste dispositivo estatutário com a normatividade interna constitucional exige a sua interpretação conforme a CRFB/88, extrain­do-se, por conseguinte, que a única interpretação compatível e harmônica com a CRFB/88 é admitir a imprescritibilidade dos crimes previstos no ER apenas quando guardarem relação com racismo ou com a ofensa a normatividade constitucional e o Estado Democrático, tal como ocorre, por exemplo, no crime de genocídio praticado com a intenção de destruir um grupo racial, em todo ou em parte (artigo 6º, do ER).

Nota

(1) Conforme observa Oscar Vilhena Vieira, neste ponto há divergência na doutrina. A profundidade da cláusula pétrea revelada pela expressão “tendente a abolir” constante do artigo 60, da CRFB/88 recebe três interpretações. A primeira interpretação é no sentido de que não é possível qualquer acréscimo ou redução, pois a identidade da Constituição já estaria formada; uma segunda interpretação realizada por parte da doutrina é no sentido de se admitir, porém, apenas acréscimo quando se trate de explicitação de limite material implícito; e, por fim, uma terceira e última interpretação possível no sentido de se admitir até a redução, desde que seja de pequena monta, respeitado o princípio da razoabilidade; o núcleo básico e fundamental não pode ser alterado (“limites dos limites”), os institutos e valores podem ser atingidos. Ocorre que, para a parte doutrinária que admite modificações, se exige que a alteração seja realizada por meio de emenda constitucional, jamais atos infraconstitucionais como os provenientes da normatividade internacional com o Estatuto de Roma. VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça: Um Ensaio sobre os Limites Materiais do Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 134-140.

Felipe Machado Caldeira
Doutorando em Direito Penal pela Universidade de Castilla-La Mancha (UCLM, Espanha); mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); professor de Direito Penal UERJ e UFRJ; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal no curso de pós-graduação da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ); advogado criminalista.


CALDEIRA, Felipe Machado. A conformação do Estatuto de Roma com a constituição de 1988: a imprescritibilidade e os princípios do estado democrático de direito e da segurança e da estabilidade das relações jurídicas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 198, p. 2, maio 2009.


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