quinta-feira, 14 de maio de 2009

Artigo: Violência e reificação - linhas fundamentais da criminologia do reconhecimento

A queda do World Trade Center tem sido compreendida, no debate internacional, como o triste sinal, o prelúdio do início de uma nova era de desequilíbrio moral e de um decidido abandono dos seculares esforços para reconhecimento de direitos e garantias fundamentais inerentes à condição humana. Depois de um incompreensível ataque aos cidadãos norte-americanos, os USA passaram a reagir também de forma incompreensivelmente violenta e mesmo defensores orgulhosos do sistema político norte-americano não hesitaram em mostrar publicamente os níveis deploráveis que foram atingidos pela política criminal dos USA pós-11 de setembro(1). Aos poucos está ficando cada vez mais claro que o 11 de setembro se tornou o marco inicial de um processo mundial de passagem da sociedade democrática (demo­kra­tische Gesells­chaft) para a sociedade da segurança (Sicher­heits­gesellschaft), de um processo de transformação cultural caracterizado pelo abandono da cultura da liberdade (Kultur der Frei­heit) e pela sedimentação gradativa de uma cultura do medo (Angstkultur). Por fim, pode-se dizer também que o 11 de setembro já se tornou o marco do retorno da concepção do inimigo (Wiederkehr des Feindes), do Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) e do retorno da tortura (Wiederkehr der Folter).

É sabido que o Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) trabalha, basicamente, com a ideia de que a Luta contra o Terror só pode ser desenvolvida eficazmente, se o Estado passar a considerar os inimigos como não-humanos. Frente a essa posição impõe-se a pergunta: por que essa teoria precisa ir tão longe? Por que é necessário que alguém seja caracterizado como não-humano, para que ele seja torturado ou para que ele seja preso de forma sumária sem que essa decisão tenha sido tomada a partir de um processo penal? A resposta parece simples: parece claro para todos nós que um Ser-Humano não pode ser exposto a situações degradantes. Principalmente, parece claro que um Ser-Humano não pode ser tratado como “coisa”, que ele não pode ser “coisificado”, “reificado” ou “instrumentalizado”.

Isso é assim, porque o Ser-Humano adquire a consciência do seu Ser-Humano a partir de um Modo-de-Ser-Humano: o Modo do Reconhecer (der Modus des Aner­ken­nens). Esse modo do Reconhecer precede o Modo do Conhecer (der Modus des Er­ken­nens), típico de processos de instrumentalização, coisificação e reificação. Essa primazia do Modo do Reconhecer (der Modus des Anerken­nens) caracteriza o que Axel Honneth chama de Modo Existencial do Reconhecimento (Der existentielle Modus der Anerkennung). Ele entende que esse Modo Existencial do Reconhecimento (Der existentielle Modus der Anerkennung) deve ser compreendido como uma forma mais fundamental do reconhecimento recíproco dos seres humanos como seres dignos de respeito e igual tratamento jurídico (di­mensão antropológica do reconhecimento). O fenômeno da coisificação, da reificação e da instrumentalização de seres humanos para fins políticos é compreendido, portanto, por uma criminologia do reconhecimento, como uma forma peversa e perniciosa do Esquecimento-do-Reconhecimento (Anerkennungsvergessen­heit)(2).

Em geral, pode-se identificar três dimensões do fenômeno da reificação ou do Esquecimento-do-Reconhecimento (Aner­ken­­nun­gs­vergessenheit): as dimensões da Au­­to­rre­lação (Selbstbeziehung), da Intersubjetividade (Intersubjektivität) e da Relação-com-o-Mundo-Objetivo (Beziehung zur objektiven Welt). Dessas três formas do Esquecimento-do-Reconhecimento (Anerken­nun­gsvergessen­heit), aquela que nos interessa aqui é a forma do Esquecimento-do-Re­conhecimento (Aner­ken­nungs­­verges­sen­heit) em relações intersubjetivas. As consequências negativas dessa forma Esquecimento-do-Reconhecimento (Aner­ken­nungs­ver­gessenheit) podem ser explicitadas com o exemplo da tortura. Sabe-se hoje, a partir de estudos empíricos, que os torturadores que fazem parte de um sistema de repressão, normalmente, frequentam “aulas”, nas quais eles aprendem o “método científico” da tortura:

“De abuso cometido pelos interrogadores sobre o preso, a tortura passou, com o Regime Militar, à condição de ‘método científico’, incluído em currículos de formação de militares. O ensino deste método de arrancar confissões e informações não era puramente teórico. Era prático, com pessoas realmente torturadas, servindo de cobaiais neste macabro aprendizado. Sabe-se que um dos primeiros a introduzir tal pragmatismo, no Brasil, foi o policial norte-americano Dan Mitrione, posteriormente transferido para Montevidéu, onde acabou seqüestrado e morto. Quando instrutor em Belo Horizonte, nos primeiros anos do Regime Militar, ele utilizou mendigos recolhidos nas ruas para adestrar a polícia local. Seviciados em salas de aula, aqueles pobres homens permitiam que os alunos aprendessem as várias modalidades de criar, no preso, a suprema condição entre o corpo e o espírito, atingindo-lhes os pontos vulneráveis.”(3)

A capacidade de sofrer com o sofrimento alheio é uma capacidade humana normal. Infligir dor em corpo alheio, portanto, não pertence ao comportamento normal dos seres humanos. Isso acontece, porque nos reconhecemos mutamente como membros da mesma raça, a raça humana. Aprender a ver-se no outro é, portanto, parte do Ser-Humano. Exatamente por isso, para que alguém se torne um torturador, é necessário que ele primeiro passe por um processso de aprendizagem negativo. Ele precisa aprender a perder essa capacidade, essa percepção do sofrimento do outro, de sofrer-com, de compaixão. Ele precisa aprender a não se ver mais no outro. Ele precisa aprender a não ser mais humano. Nós podemos, portanto, traduzir o que acontecia nesses cursos de tortura com os termos de uma criminologia do reconhecimento: esses cursos de tortura tinham o condão de ensinar os alunos a esquecer o Modo-do-Reconhecimento típico das relações normais entre seres humanos.

Outra forma de se aprender a esquecer o Modo-do-Reconhecimento é a criação da figura do Inimigo. Depois do 11 de setembro, o governo norte-americano se valeu da situação para aprovar o USA Patriot Act que permite, dentre outras coisas, que os policiais se valham de métodos de tortura para obtenção de provas(4). Além disso, o uso de tortura não é uma prática exclusiva dos U.S.A.. Como mostram uma série de estudos empíricos, a prática de tortura no Brasil não é somente parte do nosso passado, mas também do dia a dia “do combate à criminalidade”:

“A tortura e os maus-tratos não são exclusividades das instituições voltadas para adolescentes em conflito com a lei. A relação com a polícia também é marcada pela extrema violência e corrupção. Como demonstram estudos desenvolvidos nos últimos anos no Brasil, as prisões arbitrárias sem fundamento legal, as execuções sumárias e as práticas de tortura não são externalidades do trabalho policial ou práticas isoladas de policiais violentos. São ações sistemáticas, expressões de procedimentos de combate à criminalidade, avaliadas como legítimos por agentes das corporações policiais.”(5)

Esse processo de aprendizado negativo tem consequências tão reais quanto perniciosas e precisa, portanto, ser analisado mais de perto. A filosofia de Hegel parece fornecer o arcabouço adequado para explicitar os estágios fenomenológicos tanto desse processo de aprendizagem negativo de desenvolvimento dessa consciência reificante ou coisificante, quanto do processo de aprendizagem positivo de desenvolvimento de uma consciência-que-reconhece. No primeiro estágio de sua análise fenomenológica da Autoconsciência (Sel­bstbewusst­sein), Hegel descreve um tipo de Consciência (Be­wus­stsein) que pos­sui atividades mentais, porém ainda não está em condições de com­preen­dê-las como uma diferença, isto é, neste estágio da análise fenomenológica não é possível que uma noção de Auto­consciência (Sel­bst­bewusstsein) venha à tona. Para que o sujeito se torne consciente dessa diferença, ele precisa aprender a apreender a sua atividade corporal. Ele precisa, portanto, primeiro aprender, a partir da relação consigo mesmo, a apreen­der a realidade de tal forma, que a realidade passe a lhe aparecer como uma realidade intencional, cujo objetivo é a satisfação de necessidades elementares. O sujeito aprende que ele não pode apreender a realidade apenas do ponto de vista epistemológico, mas também como um ser vivo que se reproduz naturalmente. O sujeito faz, dessa forma, nessa primeira passagem, uma experiência transcendental: ele experiencia retrospectivamente que ele só pode desenvolver as condições necessárias para a apreensão do conceito de vida, porque ele já desenvolveu uma relação prática e ativa com um objeto, com um mundo exterior. Hon­neth interpreta essa passagem a partir da teoria de McDowell: ele procura mostrar que também Hegel compreende essa passagem como um conti­nuum entre “primeira” e “segunda natureza humana”. Somente depois dessa passagem, o sujeito desenvolve uma consciência da sua dupla natureza(6).

A passagem do segundo estágio para o terceiro estágio é interpretada por Hon­neth a partir da teoria de Winnicott. No início deste segundo estágio, o sujeito compreende a totalidade da realidade como um produto da sua capacidade mental e age de acordo. Somente a experiência de que a realidade possui exigências próprias, isto é, de que ela é independente da sua capacidade mental, leva o sujeito a compreender a si mesmo como um ser autoconsciente(7). Segundo Honneth, Hegel pretenderia descrever aqui, portanto, um processo similar ao que Winnicott descreve em seus estudos: assim como a criança na análise de Winnicott teve que aprender a perceber a mãe como um sujeito “com exigências pessoais independentes da criança”, também o sujeito hegeliano precisa compreender que a realidade à sua frente, diferentemente de um objeto, tem exigências pessoais, é um ser-humano. Somente essa experiência vai levar o sujeito a compreender-se como um ser humano autoconsciente diferente dos outros. Com essa passagem, o sujeito aprende a apreender os outros sujeitos como sujeitos com intencionalidade, ou seja, que não agem necessariamente conforme a sua vontade e que não são, portanto, seus instrumentos(8). Com esse passo, está completamente realizada a passagem fenomenológica para a dimensão do reconhecimento. Reconhecimento e Auto­cons­ciência (Selbstbewusstsein) estão, portanto, diretamente vinculados. O fenômeno da Reificação nada mais é do que uma falha nesse processo de aprendizagem.

A teoria da Reificação de Honneth esclarece outra dimensão digna de crítica do Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht): a aceitação de uma compreensão do direito penal a partir dos conceitos amigo e inimigo abre as portas, que já tinham sido fechadas pela introdução da garantia da dignidade da pessoa humana nas constituições contemporâneas, para a institucionalização de processos de Reificação ou de Coisifição de seres humanos. O Estado passa a ter o direito de definir quem são seres humanos dignos de proteção estatal e quais são os seres não-humanos que poderão ser tratados como coisas, que poderão ser reificados e, portanto, instrumen­ta­lizados para fins políticos de proteção da segurança e da ordem. Dado então que o fenômeno da surgimento do Direito Penal do Inimigo (Feinds­trafrecht) nada mais é do que uma forma de Esquecimento-do-Reconhecimento (Anerken­nungs­vergessen­heit)(9), proteger a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana hoje significa nada mais do que lembrar os juristas e políticos da importância do Reconhecimento para a compreensão da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana.

Daí a consequência a ser ressaltada em nosso contexto: nenhuma regulamentação, por mais sensível que seja ao contexto, poderá concretizar adequadamente o direito igual a uma configuração autônoma de vida privada e da dignidade da pessoa humana, se ela não fortalecer, ao mesmo tempo, a posição dos atingidos (excluídos) na esfera pública política e as relações sociais positivas de Reconhecimento, promovendo a sua participação em comunicações políticas, nas quais é possível esclarecer os aspectos relevantes para uma posição de igualdade. Segundo esta compreensão, a concretização de direitos fundamentais e da garantia constitucional da dignidade da pessoa humana constitui um processo que deve garantir a autonomia privada dos sujeitos privados iguais em direitos, porém, em harmonia com a ativação de sua autonomia como cidadãos e com a proteção das relações de Reconhecimento.

Notas

(1) Ver, a esse respeito: Dworkin, Ronald. Is De­mo­cra­cy Possible Here? Principles for a New Political Debate. Princeton und Oxford: Princeton University Press, 2006, cap. 2.

(2) HONNETH, Axel. Verdinglichung. Eine anerken­nun­gs­­theo­retische Studie. Frankfurt am Main: Suhr­kamp, 2005.

(3) Arquidiocese de São Paulo, Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 32.

(4) Ver, a esse respeito: Naumann, Michael/Spen­gler, Tilman (orgs.). Die Zeit. Kursbuch. Folter und Feste. Hamburg: Zeitverlag Gerd Bucerius, 2006.

(5) Fraga, Paulo Cesar Pontes, “Tortura contra pessoas acusadas de crimes no Rio de Janeiro: A funcionalidade da violência institucional e policial contra os ilegalismos”, in: Teoria e Cultura, Revista do Mestrado em Ciências Sociais da UFJF, Juiz de Fora, v. 1, n. 2, jul./dez. 2006, p. 67.

(6) Honneth, Axel (2007): Von der Begierde zur Aner­ken­­nung. Hegels Begründung von Selbstbe­wusstsein, 15 (Manuscrito cedido gentilmente pelo autor).

(7) Idem, p. 16.

(8) Idem, p. 16.

(9) “Es kann nicht darum gehen, daß jenes Faktum einfach dem Bewusstsein entzogen wird und insofern gewissermaßen >>verschwindet<<, sondern es muß sich um eine Art von Aufmer­k­sam­keitsminderung handeln, die jenes Faktum bewuß­tseins­mäßig in den Hintergrund treten und daher aus dem Blick geraten läßt. Verdinglichung im Sinne der >>Anerkennungsvergessenheit<< bedeutet also, im Vollzug des Erkennens die Aufmerksamkeit dafür zu verlieren, daß sich dieses Erkennen einer vorgängigen Anerkennung verdankt” (Honneth, Axel. Verding­lichung. Eine Anerkennungstheoretische Studie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005, p. 71).

Giovani Agostini Saavedra
Doutor em Direito e Filosofia pela Johann Wolfgang Goethe - Universität Frankfurt am Main e professor do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais.

SSAVEDRA, Giovani Agostini. Violência e reificação: linhas fundamentais da criminologia do reconhecimento. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 198, p. 16, maio 2009.

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