quinta-feira, 28 de maio de 2009

Artigo: GDUCC – Grupo de diálogo universidade, cárcere, comunidade - experiência que está dando certo

A ideologia, segundo a concepção marxista (Chaui, 1985; Marx & Engels, 1953), ao construir uma compreensão dos processos sociais e históricos e das relações de trabalho, inverte as relações de causa e efeito. Esta é uma de suas características básicas, sob a ótica da concepção marxista. O que é causa passa a ser interpretado como sendo efeito e, o que é efeito, como sendo causa. Assim, por exemplo, o poder social, condicionado pela divisão do trabalho, parece aos indivíduos ser um poder soberano e natural. O proletário percebe seu trabalho e seu estado (de assalariado, de explorado) como consequências naturais e inevitáveis desse poder natural. Na verdade, esse poder é o resultado, é dependente do trabalho dos assalariados. Os assalariados não se percebem como protagonistas da história, como (possíveis) sujeitos desse poder. Constitui-se aqui o que o marxismo chama de estado de alienação. A consciência alienada não percebe que o poder e força da classe dominante são consequências das ações humanas desenvolvidas a partir dos meios e modos de produção. A ideologia, portanto, tem a importante função de ocultar as verdades históricas, para atender os interesses das classes dominantes. Tem a função de ocultar a grande verdade histórica de que o trabalhador tem o poder de agir sobre a história e de se tornar o grande protagonista da mesma. A ideologia tem o condão de criar no proletariado um estado de alienação, que consiste nessa falta de consciência dos trabalhadores sobre seus direitos, seu poder e sua capacidade de agir e de redefinir as formas de sua inserção social.

Passemos ao domínio da Criminologia. Pela inversão ideológica de causa e efeito, o crime é tido como uma realidade ôntica e, o criminoso, como um ser diferente, que perturba e desequilibra as relações sociais. Na verdade, as relações econômicas de poder é que determinam a construção jurídica do crime, criam os desequilíbrios sociais e estes é que são as causas das condutas definidas como crime. Assim, a ideologia impõe-nos a ideia de que o crime e o criminoso (isto é, aquela conduta e aquele indivíduo que afrontam as normas estribadas na propriedade privada e em tudo o que dela deriva), são ameaças constantes ao equilíbrio social. Ao fazer isso, ela tem a função de ocultar a verdade histórica de que o crime e o criminoso, no lugar de causas, na realidade são produtos das relações sociais economicamente desequilibradas e injustas.

Nessa mesma linha de inversão ideologicamente forjada, a exclusão e a marginalização sociais do criminoso são tidas como consequências de sua conduta delinquente. A verdade, porém, é outra. A saber, quando o indivíduo adere à vida criminosa, ele adere, na grande maioria das vezes, por força de sua condição de exclusão e marginalização. Esta inversão ideológica toma conta dos presos e dos profissionais penitenciários. Reedita-se o supracitado estado de alienação, pelo qual o próprio criminoso ou, mais especificamente, o encarcerado não mais se percebe como partícipe da sociedade, portador de direitos, como alguém que é capaz de construir sua forma de inserção social.

Já que a inversão ocorreu na compreensão do crime e da conduta criminosa, ela também ocorrerá, por imposição da lógica, ao se traçarem políticas e estratégias da chamada “ressocialização” do preso. Ou seja, para que o preso possa se reinserir socialmente e se sentir cidadão como os demais, ele deverá antes tomar consciência dos valores e normas sociais, deverá acatá-los e readequar eticamente sua conduta de acordo com esses valores e normas. Noutros termos, a readequação ética é condição prévia para que possa ocorrer a reinserção social. Isto tem parecido e ainda parece óbvio ao ver de muitos “observadores” e de muitos profissionais, alienados que estão, por força da ideologia.

No entanto, atentando-se para essa artimanha da ideologia (da qual os próprios encarcerados podem se tornar presas fáceis), há que se pensar em inverter a ordem desses passos e exigências. Deve-se partir, antes, de experiências de inclusão social, de diálogo, de participação, de sujeito de ação, para, com isso, se proporcionar ao encarcerado a oportunidade de se posicionar frente aos valores sociais e de se decidir conscientemente em relação a eles.

De fato, sentindo-se o indivíduo excluído socialmente, as normas sociais não têm sentido algum para ele, ele não se sente motivado a acatá-las, mas, pelo contrário, tende a desenvolver em relação a elas uma atitude de antagonismo. Acatará, isto sim, as normas do grupo a que pertence, até por uma questão de sobrevivência. Por conseguinte, a reinserção social do encarcerado não terá como condição a sua readequação ética, mas, pelo contrário, sua readequação ética é que terá como condição a sua reinserção social. Ou seja, se quisermos promover a reinserção social do encarcerado, deveremos proporcionar a ele experiências significativas de inclusão social, pelas quais ele se sinta realmente partícipe da sociedade e redescubra seus valores como cidadão e como pessoa. Nas palavras de Baratta (1990), há que se buscar a abertura do cárcere para a sociedade e da sociedade para o cárcere. Na medida em que as normas passam a ter sentido para o encarcerado, ele, aos poucos, desenvolverá uma atitude de verdadeira e saudável autonomia perante os valores ético-morais vigentes. É a substituição da falaciosa “ressocialização”, na qual o encarcerado é simplesmente “objeto” de pretensas ações educativas, terapêuticas e moralizadoras, pela chamada “reintegração social” (Baratta, 1990), na qual o encarcerado é sujeito pensante da ação de reintegração, tal qual o segmento social que dela participa. Busca-se, na reintegração social, desenvolver um significativo diálogo entre partes que, tendo tido até então uma relação antagônica, comportam-se agora como iguais, numa relação simétrica, ainda que não se pretendendo esconder hipocritamente as diferenças reais e objetivas (sobre reintegração social dos encarcerados, ver também , 2007, cap. 6).

Pois bem, foi com essa forma de pensar criminologicamente e com esses objetivos de reintegração social que se criou o GDUCC - Grupo de Diálogo Universidade, Cárcere, Comunidade. O GDUCC é um grupo vinculado ao Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia, da Faculdade de Direito da USP. É formado por acadêmicos de Direito da USP, valorizando-se, porém, a interdisciplinaridade, pelo que ele é aberto a alunos de outros cursos e de outras universidades, bem como a profissionais de diferentes áreas.

O objetivo do GDUCC é o de implementar experiências de diálogo entre a Universidade e o cárcere, entre acadêmicos e profissionais, de um lado, e, de outro lado, os encarcerados, dentro de uma visão transdisciplinar. Pretende-se, com o tempo, envolver segmentos da comunidade em geral, entendendo-se que a Academia tem um papel importante de liderança a ser exercido nesse sentido (sobre o intercâmbio transdisciplinar academia – cárcere, ver , 2007, cap. 7).

Nos projetos do GDUCC, os internos não são tratados como meros “objetos” de assistência e de educação ética. Eles são tidos e compreendidos como sujeitos que pensam, têm sua história e têm suas versões sobre sua história e sobre a sociedade, assim como “nós”, da sociedade livre, temos a nossa história e as nossas versões. Tanto é assim que, em alguns dos encontros semanais, as atividades são programadas e dirigidas pelos próprios internos. A reintegração social é uma pista de mão dupla, na qual, tanto o preso caminha rumo à sociedade (que o excluiu), como a sociedade caminha rumo ao preso. É um processo no qual, espera-se, todos se transformam e crescem. Importante é lembrar que esse processo não se desenvolve através do cárcere, mas apesar do cárcere, pois ele caminha na contramão do mesmo. O trabalho se estrutura, em regra, em encontros semanais entre os membros do GDUCC e internos (sobre a experiência do GDUC, ver Braga & Bretan, 2008 [a], Braga & Bretan, 2008 [b] e Braga, 2007).

O GDUCC iniciou suas atividades no segundo semestre de 2006. Até o momento, tivemos três edições, com a duração média de três meses cada. Reconhecemos que o trabalho não é fácil. Não é fácil manter-se uma linha de coerência teórica e, ao mesmo tempo, desenvolver-se um diálogo autêntico, confiável e sincero, isto é, sem hipocrisias. Não é nada fácil definir-se um objetivo claro do trabalho, quando estamos comprometidos com a prática, num grupo complexo de pessoas das mais diferentes visões. Em todo caso, porém, pode-se dizer que a experiência do GDUCC tem sido muito gratificante para todos, acadêmicos e internos. Os acadêmicos conseguem rever seu conceito sobre crime e homem criminoso e se sentir integrados com os membros da população carcerária, descobrindo-os, na vivência, como seres humanos iguais a eles. Os internos conseguem viver, ainda que de forma momentânea, uma experiência de integração com membros da sociedade pela qual se sentiram rejeitados e à qual não se sentem pertencer. Eles conseguem ao menos vislumbrar, através da vivência, outras possibilidades de relações sociais e, a partir delas, outras dimensões de sua pessoa, de seus valores e potencialidades.

Estamos usando aqui as expressões “forma momentânea”, “vislumbrar”, com o intuito de deixar claro que não se tem a pretensão de promover grandes mudanças no padrão de relações sociais dos internos participantes, na consciência de seus valores e em sua autoimagem. Não se pode pretender mudanças estruturais e definitivas, através de uma experiência de três meses, em esquemas que se formaram ao longo de uma vida. No entanto, os internos, ao término dos encontros, têm-se mostrado muito gratos, muito gratificados, satisfeitos, verbalizando terem tido vivências de aceitação e de valorização de si, de serem tratados como seres humanos iguais a todos os outros.

Não nos parece ousado afirmar que um trabalho como esse é uma espécie de semente, que poderá, ao longo do tempo, germinar e produzir efeitos positivos e mais estruturantes. Isso, tanto para os acadêmicos (ou representantes da comunidade em geral), como para os internos. Entretanto, além disso, o que se pretende é também plantar uma semente para que germine, quem sabe, paulatinamente, uma nova visão de política criminal e de estratégias de reintegração social.

Para que se desenvolvam efetivas estratégias de reintegração social, dois passos importantes devem ser dados, ambos reconhecidamente difíceis. O primeiro é a integração entre técnicos e os outros profissionais penitenciários, particularmente os de segurança. O segundo é a integração sociedade-cárcere. Sociedade, não enquanto ente abstrato, mas enquanto representada por seus diferentes segmentos. A sociedade deve tomar consciência de que ela tem grande parcela de responsabilidade nas questões do cárcere, de que os que lá se encontram dela fazem parte e que a ela retornarão. Ao finalizar, quero repetir uma frase que, com frequência, tenho dito em palestras, quando me refiro à resistência que as pessoas oferecem em relação a fazer qualquer tipo de benefício em prol da reinserção social do preso: lembra-te que hoje ele [o preso] está contido, mas que amanhã ele estará contigo. Entretanto, o verdadeiro alerta deve ser o que nos lembra as artimanhas das farsas ideológicas que sustentam a construção jurídica do crime, a seleção dos que devem ser punidos e as estratégias tradicionalmente propostas de reinserção social dos encarcerados.

Referências Bibliográficas

BARATTA, Alessandro. “Ressocialização ou controle social”, in: Criminologia y Sistema Penal. Buenos Aires: B de F, 2004, pp. 376-393.

BRAGA, A.G. Mendes & BRETAN, M. Emília (a). “GDUCC: o dialógo que transcende os muros”, in: Jornadas de Estudos Criminológicos, 2008, Porto Alegre. Revista de Estudos Criminais. Sapucaia do Sul: Editora Fonte do Direito, 2008. v.28. p. 125-135

BRAGA, A.G. Mendes & BRETAN, M. Emília (b). “Teoria e prática da reintegração social: o relato de um trabalho crítico no âmbito da execução penal”, in: SÁ, Alvino A. de & SHECAIRA (org.), S. Salomão, Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Editora Atlas, 2008, 255-275.

BRAGA, A.G. Mendes. “Magia no cárcere: a possibilidade do encontro”, Boletim do IBCCRIM. Ano 14, nº 171, fev. de 2007: pág. 11-12.

CHAUI, Marilena de Souza. O Que é Ideologia. 18ª. edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

MARX, Karl, e ENGELS, Friedrich. L’idéologie Allemande. Première Partie: Feurbach. Traduction de Renée Car­telle. Paris: Éditions Sociales, 1953.

, Alvino A. de. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Alvino Augusto de Sá
Professor de Criminologia (Clínica) da Faculdade de Direito da USP


SÁ, Alvino Augusto de. GDUCC: Grupo de Diálogo Universidade, Cárcere, Comunidade; experiência que está dando certo. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 198, p. 11, maio 2009.

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