sexta-feira, 27 de março de 2009

Artigo: O sigilo do voto – interpretação do art. 483 do CPP, com a redação dada pela lei 11.689/2008

Os parágrafos 1º e 2º do art. 483 do CPP, com a redação dada pela Lei 11.689/08, têm sido interpretados por parte da doutrina como inovação no sentido de que, agora, a contagem dos votos será interrompida quando forem computados, relativamente aos quesitos sobre a materialidade ou autoria dos fatos, quatro votos negativos ou afirmativos, não se prosseguindo a contagem até o sétimo voto. Sustenta-se que assim se estaria a dar efetividade à garantia constitucional concernente ao sigilo da votação.

Guilherme de Souza Nucci compartilha desse entendimento. Assim interpreta o dispositivo legal em comento:

“A reforma privilegiou o princípio constitucional do sigilo da votação no Tribunal do Júri, uma vez que faz cessar a divulgação do quorum total obtido pelos votos dados pelo Conselho de Sentença. (...) A partir de agora, o juiz presidente deve apurar os votos até chegar à maioria, ou seja, até atingir o quarto voto “sim” ou “não”, válido para determinada questão.”(1)

Essa interpretação, sem embargo da autoridade de quem a faz, não parece ser a mais correta.

Com efeito, embora tenha havido inovação na quesitação, não houve alteração quanto à forma de se apurar os votos. Vale dizer, os votos devem continuar sendo contados até o sétimo, extraindo-se daí o resultado: 6 a 1, 5 a 2, e assim por diante. Vejamos.

Reza o art. 483 do CPP:

“Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:

I – a materialidade do fato;

II – a autoria ou participação;

III – se o acusado deve ser absolvido;

IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;

V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.

§1º A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica absolvição do acusado.

§ 2º Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:

O jurado absolve o acusado?

§3º Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue, devendo ser formulados quesitos sobre:

(...)”

Os trechos que permitem a interpretação de que não se apura a totalidade dos votos estão sublinhados.

Note-se, antes de mais nada, que o parágrafo 1º diz que a resposta negativa de mais de três jurados encerra a votação. Não diz que encerra a apuração. Votação e apuração são coisas distintas. Votação é ato pelo qual o jurado manifesta sua vontade, respondendo “sim” ou “não” aos quesitos formulados; apuração é ato pelo qual o juiz presidente, contando os votos, sabe e faz saber a vontade manifestada pelo Conselho de Sentença.

A apuração deve seguir-se até o final, ou seja, até o sétimo voto relativo àquele quesito. Já a votação se encerra, vale dizer, restam prejudicados os demais quesitos. Ora, se os jurados, por maioria (e mais de 3 jurados significa apenas maioria), negaram a materialidade ou a autoria, não há que se prosseguir na votação, o réu estará absolvido. O termo “finda a votação” é empregado pelo CPP, em outras oportunidades, nesse sentido (por exemplo, art. 490 “Se pela resposta dada a um dos quesitos, o juiz verificar que ficam prejudicados os seguintes, assim o declarará, dando por finda a votação”).

Por outro lado, se mais de 3 jurados, isto é, se a maioria, responder afirmativamente a esses quesitos, a votação prossegue com o terceiro quesito, que diz respeito a outras teses que tenham sido sustentadas pela defesa, que é formulado através da simples proposição: “o jurado absolve o acusado?”, e que deve ser respondido também de forma objetiva “sim” ou “não”, extraindo-se o resultado pela maioria dos votos. A principal inovação na quesitação reside exatamente na formulação desse terceiro quesito. E foi para explicar o seu alcance e cabimento é que foram redigidos os parágrafos 1º e 2º do art. 483.

Com relação a esse terceiro quesito não há sequer o trecho que ensejaria a interpretação ora questionada. “Decidindo os jurados pela absolvição”, diz o texto, pressupondo o conhecimento da vontade dos jurados a partir da apuração de todos os votos, tal qual sempre foi. Nada há a indicar o contrário.

Ora, nenhum sentido haveria em se apurar, nos dois primeiros quesitos, os votos somente até o quarto “sim” ou quarto “não”, e nos demais fazer a apuração até o final. O sistema de apuração deve ser o mesmo para todos os quesitos. Devem sempre ser computados todos os votos.

Não há na apuração de todos os votos qualquer violação ao sigilo das votações. A Constituição sempre o previu e sempre se computou até o sétimo voto sem que se tivesse ferido tal princípio. E, nesse aspecto, a Lei 11.689/08 em nada inovou.

Anote-se, ainda, em reforço à tese de que não houve inovação na contagem dos votos, o fato de que a questão do sigilo está cuidada pelo CPP no art. 487, que determina: “Para assegurar o sigilo do voto, o oficial de justiça recolherá em urnas separadas as cédulas correspondentes aos votos e as não utilizadas.” Essa foi a providência adotada pelo legislador para garantir o sigilo do voto, e não a interrupção da contagem.

Tanto é que o artigo subsequente, 488, diz que “após a resposta, verificados os votos e as cédulas não utilizadas, o presidente determinará que o escrivão registre no termo a votação de cada quesito, bem como o resultado do julgamento”.

Não há dúvida, portanto, de que a contagem dos votos deve ser feita até o final, ou seja, contam-se os sete votos, e de que essa contagem deve ficar registrada.

A contagem total dos votos e o seu registro, ademais, é o que possibilita a plena aplicação do art. 490, que determina a submissão do quesito à nova votação quando houver contradição nas respostas. Ora, em muitos casos, a contradição estará evidenciada a partir da contagem da totalidade dos votos e a comparação dos resultados dos quesitos anteriores.

Assim, seja pela literal interpretação dos parágrafos 1º e 2º do art. 483 do CPP, seja pela interpretação conjunta com os demais dispositivos, parece mais adequado o entendimento pelo qual não se interrompe a contagem dos votos a partir do quarto afirmativo ou negativo, mas sim, se contam todos os sete votos, registrando-se no termo essa contagem, tal qual sempre foi. A Lei 11.689/08, embora tenha inovado em vários aspectos relativos à quesitação, não o fez nesse particular.

Nota

(1) NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 8ª ed. ver., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 817.

Guilherme Madi Rezende
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; advogado e professor de Direito Penal.


REZENDE, Guilherme Madi. O sigilo do voto: interpretação do art. 483 do CPP, com a redação dada pela Lei 11.689/2008. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 8, mar. 2009.

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