domingo, 22 de fevereiro de 2009

Artigo: Art. 22, parágrafo único, parte final, da lei nº 7.492/86

Título na Integra: Art. 22, parágrafo único, parte final, da lei nº 7.492/86: norma penal em branco, circulares bacen e sucessão de normas no tempo: possibilidade de retroatividade do complemento?

O presente artigo busca fazer algumas considerações sobre a possibilidade de retroatividade dos efeitos da norma penal em branco de acordo com sucessivas alterações no complemento administrativo do tipo penal, especificamente em relação ao art. 22, parágrafo único, in fine, da Lei nº 7.492/86(1), sobremaneira quando o acréscimo for mais benéfico ao indivíduo. Isso porque, conforme o mandamento de retroatividade da lei penal mais benigna, contido no art. 2º do Código Penal, a norma posterior (ao fato) mais favorável sempre deve ser aplicada a fatos anteriores para beneficiar o réu.

Ocorre que a questão se torna crítica quando em jogo as normas penais em branco, eis que são caracterizadas por constantes mudanças em seu complemento administrativo, sendo que surge a dúvida sobre a possibilidade (ou não) da retroatividade de seus efeitos para atingir fatos cometidos sob a égide de complemento revogado.

Muito ilustrativo é o exemplo utilizado por Andrei Zenckner Schmidt e Luciano Feldens para demonstrar a espinhosa situação que pode ser gerada:

“(...) imaginemos a hipótese de alguém que, em 2001, tenha mantido depósito no exterior em valor equivalente a R$ 50.000,00 à míngua de declaração ao Bacen (exigida, nos termos da Circular/Bacen nº 3.071/01, para depósitos superiores ao equivalente a R$ 10.000,00), sendo que, em 2002, na forma da Circular/Bacen nº 3.181/03, os depósitos inferiores ao equivalente a R$ 300.000,00 passaram a estar dispensados de declaração ao Bacen. Seria possível, com base nisso, falar-se em retroatividade do complemento administrativo que, ante a natureza de norma penal em branco do art. 22 da Lei nº 7.492/86, poderia beneficiar o agente?”(2)

Mas, em que pese os ponderados argumentos dos ilustres autores(3), ousamos discordar no tocante à possibilidade de retroatividade do complemento administrativo do art. 22, parágrafo único, in fine, sempre que o conteúdo da Circular do Banco Central for mais benéfico ao indivíduo em relação àquele em vigor ao tempo de cometimento dum fato supostamente subsumível àquele tipo penal.

É indiscutível que o art. 22, parágrafo único, in fine, da Lei nº 7.492/86, é norma penal em branco, pois de conteúdo incompleto, vago, lacunoso. O complemento necessário a esta norma deve ser ditado pelo Banco Central do Brasil, uma vez que a repartição competente de que trata o artigo não pode ser a Secretaria da Receita Federal do Brasil. A não declaração de valores ao Fisco é tratada em outra lei (Lei nº 8.137/90).

A respeito da expressão “sem autorização legal” contida no tipo em comento, Guilherme de Souza Nucci bem descreve:

“Norma penal em branco: é preciso tomar conhecimento da legislação específica, que regulamenta a saída de moeda ou divisa para o exterior e a mantença de depósito fora do Brasil.”(4)

Esta legislação, no caso de pessoa física que mantiver conta e numerário em banco sediado no exterior, está prevista nas Circulares do Bacen, as quais descrevem a forma, limites e condições de declaração de bens e valores detidos no exterior.

Sendo assim, as Circulares de nºs 3.384, 3.071, 3.181, 3.225, 3.278, 3.313 e 3.345 dispõem sobre o modus operandi a ser observado por aqueles que mantêm (ou mantiveram) valores no exterior, bem como estabelecem prazos e limites de exoneração.

Nesse contexto, apenas para efeitos de ilustração, veja-se aquilo que estabelecia o art. 2º, III, da Resolução 2.911, sobre as penas para quem mantivesse bens e valores sem declará-los ao Bacen:

“Art. 2º O não-cumprimento das disposições fixadas no caput do artigo anterior sujeita as pessoas físicas e jurídicas à aplicação de multa pelo Banco Central do Brasil de acordo com as seguintes ocorrências:

(...)

III - não-fornecimento de informação - 50% (cinquenta por cento) do valor previsto no art. 1º da Medida Provisória 2.224, de 2001, ou 5% (cinco por cento) do valor da informação que deveria ter sido prestada, o que for menor.”

Ocorre que, indiretamente, a sucessora Circular nº 3.181 estabeleceu uma manifesta abolitio criminis temporária quando, em seu art. 7º, prescreveu:

“Art. 7º A declaração relativa aos valores de qualquer natureza, aos ativos em moeda e aos bens e direitos detidos fora do território nacional será considerada não-fornecida ao Banco Central do Brasil, para efeitos do inciso III do art. 2º da Resolução 2.911, de 29 de novembro de 2001, a partir de:

I - 10 de março de 2003, para a declaração tratada pela Circular 3.071, de 7 de dezembro de 2001, relativa à data-base de 31 de dezembro de 2001; II - 1º de agosto de 2003, para a declaração tratada por esta Circular, relativa à data-base de 31 de dezembro de 2002.”

Como se vê, houve um permissivo normativo do Banco Central para que os possuidores de depósitos não declarados no exterior tivessem a chance de regularizá-los até determinada data, pois, só a partir deste marco, passaria a incidir a tipificação administrativa punível. Ou seja, não haveria o ilícito cambial se o indivíduo não dispunha de valores naqueles novos períodos anotados. Como a ocorrência do ilícito penal depende da existência da irregularidade administrativa, é certo que não é possível a punição de quem já não detinha valores não-declarados até as datas estipuladas pelo Bacen como limite para declaração.

Se esse benefício foi conferido àqueles que estavam em situação irregular ao tempo de edição da norma, o que dizer então de quem já não possuísse mais qualquer valor nesse novo período? Cremos que esses indivíduos não podem ser acionados criminalmente, exatamente pelo fato de não subsistir a punição administrativa, da qual a criminal depende. Portanto, tal como na situação onde o complemento posterior estabelece limite pecuniário maior para dispensa da declaração obrigatória, aqui estamos diante duma “anistia declaratória”, a qual também deve beneficiar o indivíduo.

Em verdade, trata-se de lex mitior que favoreceu aqueles que não haviam declarado os valores a seu tempo. A esse respeito, Camila Tagliani Carneiro aponta:

“A regulamentação do art. 2º, III, da Resolução 2.911, que trata do não cumprimento dos prazos dispostos nas Circulares 3.071, 3.181 e 3.225, traz consequências tanto na esfera administrativa quanto na esfera criminal. Neste sentido, as declarações serão consideradas não-informadas a partir de 10 de março de 2003, para a declaração tratada pela Circular 3.071, em 1º de agosto de 2003, para a declaração tratada por pela (sic) Circular 3.181 e em 1º de agosto de 2004, nos termos da Circular 3.225.

Ou seja, no caso da Circular 3.071 que prevê o prazo de 2 de janeiro a 31 de maio de 2002 para declaração, com a nova regulamentação, só poderá cometer a infração penal e administrativa em 10 de março de 2003. Respectivamente, no caso da Circular 3.181, mesmo tendo estabelecido o prazo para declaração de 10 de março a 31 de maio de 2003, o informante só poderá ser responsabilizado penal e/ou administrativamente a partir de 1º de agosto de 2003. No mesmo sentido, refere-se a Circular 3.225, determinando que só em 1º de agosto de 2004 é que os informantes poderão ser responsabilizados pela não informação.”(5)

Portanto, a subsunção do fato à conduta típica só se realiza com a realização daquilo que prevê a norma administrativa emanada do Banco Central.

Se tal norma confere novos prazos para que o agente informe a existência de conta não albergada pela cota de exoneração, então aquele que não mais possui valores na conta sequer deve ser acionado penalmente. O máximo que se pode exigir é a prestação tributária correspondente. Nessa esteira, calha lição de Cezar Roberto Bitencourt sobre os efeitos do complemento da norma penal em branco:

“Concluindo, as leis penais em branco não são revogadas em consequência da revogação de seus complementos. Tornam-se apenas temporariamente inaplicáveis por carecerem de elemento indispensável à configuração da tipicidade.”(6)

Se há temporária abolitio criminis para aqueles que estavam em situação defasada, visto que poderiam regularizar os depósitos mantidos acima da cota de exoneração, houve total descriminalização em relação àqueles que já não possuíam numerário em conta no exterior.

Vale fazer um breve paralelo com questão idêntica que permeia as discussões sobre Estatuto do Desarmamento. Os artigos 30 e 32 do mencionado diploma previam um prazo de 180 dias para que os possuidores de armas de fogo regularizassem a situação ou as entregassem à Polícia Federal. No entanto, tal prazo foi prorrogado diversas vezes, constituindo clara situação de abolitio criminis temporária, fato reconhecido pela própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça(7).

A questão da retroatividade (ou não) das normas penais em branco, em razão da revogação de seus complementos, passa pela aplicação dos arts. 2º ou 3º do Código Penal. No caso do primeiro dispositivo, haveria a aplicação retroativa pelo fato de o complemento da norma adquirir caráter de norma penal material, tal como defende Basileu Garcia:

“A disposição extrapenal de que se entretece a norma penal em branco (...) impregna-se do cunho penal, como parte que passa a constituir a figura delituosa. E, por isso, a retroatividade benéfica se impõe.”(8)

Esse pode ser considerado um posicionamento notadamente garantista, sendo que seu contraponto é apresentado por Nelson Hungria(9) e Damásio de Jesus(10), para quem ao complemento da norma penal em branco se aplica o art. 3º do Código Penal. Acrescentando, Damásio assevera que o complemento da norma penal em branco “pode ter aqueles caracteres que lhe dão ultra-atividade”.

No entanto, cremos que a melhor posição sobre o tema seja aquela proferida por Américo Taipa de Carvalho(11) e José Hen­rique Pierangelli(12), os quais analisam a possibilidade de retroatividade a partir da natureza jurídica da norma penal em branco, se homogêneas ou heterogêneas, tal como vimos anteriormente. A norma penal branco retroagirá quando seu complemento advier da mesma fonte legislativa da norma principal, ou seja, no caso de remissão normativa. Isso porque, nessa situação, o complemento adquire o mesmo status da norma material, podendo ser tranquilamente aplicado o art. 2º do Código Penal.

Hipótese diversa ocorrerá quando o complemento emanar de fonte normativa diversa, quando será necessário identificar seu caráter, se excepcional ou temporário. Poderá ser aplicada a regra da retroatividade caso o complemento demonstre ser temporário, trazendo consigo a característica da auto-revogação, sob pena de conferir a uma norma penal variabilidade tamanha que a torne incompatível com a própria ideia de ultima ratio do Direito Penal. Dizemos isso, pois, se a possibilidade de incursão numa norma penal depender tão-somente do alvitre dum órgão do Poder Executivo, então restarão esvaziados os mais comezinhos postulados do Direito Penal, o resumido a cabresto da política econômica do governo de plantão.

Por último, há que se reconhecer que, sendo o complemento uma norma dotada de excepcionalidade, quando a legislação é editada em situação de anormalidade econômica ou social, aí sim cremos ser aplicável o art. 3º do Código Penal, segundo o qual a norma não poderá retroagir para beneficiar o indivíduo. Somente nesses casos de extrema necessidade, quando a alteração do complemento tender ao restabelecimento d’alguma catástrofe econômica ou social.

Notas

(1) Dispõe o Art. 22: “Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.”

(2) SCHMIDT, Andrei Zenkner; FELDENS, Luciano. Ob. cit. , p. 156.

(3) Para esse autores: “a superveniência de norma complementadora benéfica (lex mitior) não deve, a rigor, retroagir seus efeitos a supostos fáticos anteriores, na forma do art. 3º do CP (ultra-atividade da norma complementadora)”; contudo ressalvam que: “A aplicação da regra da irretroatividade do complemento benéfico, entretanto, não nos impede de verificar, sempre diante da análise de um caso concreto, a persistência da ofensividade da conduta frente à nova regulamentação editada.” Cf. SCHMIDT, Andrei Zenkner; FELDENS, Luciano. Ob. cit., pp. 157/158.

(4) NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 3ª ed. rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 1.079.

(5) CARNEIRO, Camila Tagliani. “Uma visão crítica do crime de manutenção de depósitos no exterior”. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 350, 22 jun. 2004. Disponível em: . Acesso em 30 jun. 2008 - p. 13.

(6) BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 171.

(7) Tome-se como exemplo o julgado seguinte: “Habeas corpus. Penal. Estatudo do Desarmanento. Posse ilegal de arma (artigo 16 da Lei 10.926/03). Abolitio Criminis temporária. Extinção da punibilidade. Trancamento da ação penal. 1. Consoante o entendimento desta Corte, diante da literalidade dos artigos relativos ao prazo legal para regularização do registro da arma (artigos 30, 31 e 32 da Lei 10.826/03), a descriminalização temporária ocorre exclusivamente em relação às condutas delituosas relativas à posse de arma de fogo. 2. Não se pode confundir a posse de arma de fogo com o porte de arma de fogo. Segundo o Estatuto do Desarmamento, a posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo, enquanto que o porte, por sua vez, pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou do local de trabalho. 3. Na espécie, o ora paciente restou denunciado pela posse ilegal de arma (art. 16, da Lei nº 10.826/03). Nesse contexto, a hipótese de abolitio criminis temporária alcança a sua conduta praticada, tornando-se, pois, viável o acolhimento da pretensão ora deduzida. 4. Ordem concedida para trancar a ação penal movida em desfavor do paciente” (STJ, 5ª T., HC 48.710/RJ, v.u., rel. min. Laurita Vaz, j. 23.05.06, DJ 19.06.06).

(8) GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 1ª ed., v. I, t. I, São Paulo: Max Limonad, 1951, p. 155.

(9) HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4ª ed., v.1, t. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1958, p.129.

(10) JESUS. Damásio Evangelista de. Direito Penal. 10ª ed., v. 1, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 88.

(11) CARVALHO, Américo Taipa de. Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Editora Coimbra, 1990, pp. 162/163.

(12) “A norma penal em branco e sua validade temporal”, in RJTJSP 85/28-29.


Anderson Bezerra Lopes, Advogado criminal, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM.

LOPES, Anderson Bezerra. Art. 22, parágrafo único, parte final, da Lei 7492/86: norma penal em branco, circulares BACEN e sucessão de normas no tempo: possibilidade de retroatividade do complemento? Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 15-16, fev. 2009.

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