sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Entrevista - Dom Marcelo Resende

'O grande instrumento para a paz é a palavra'

Prior do Mosteiro da Anunciação do Senhor na cidade de Goiás (GO), no Centro-Oeste do Brasil, Dom Marcelo Resende foi o único brasileiro a fazer uma palestra no Congresso da World Association for Christian Communication (WACC) que aconteceu em outubro, na África do Sul. Em francês.

Formado em Filosofia e Teologia e com doutorado em Educação, Dom Marcelo é autor de quatro livros sobre educação para a paz (“Educação para a paz – sentidos e desafios”; “Um novo mundo é possível”; “Cidadãos do presente”; e “Aprender a educar para a paz”). Tema, aliás, que defendeu no congresso, cuja temática era “Comunicação é Paz”. O que comunicação tem a ver com paz? “O grande instrumento para a paz é a palavra”, resume.

Para Dom Marcelo, tanto a paz como a guerra são conceitos culturais e, portanto, que se aprende. “Nós não somos nem naturalmente violentos, nem naturalmente pacíficos”, explica.

Caberia a nós mesmos, portanto, criar um espaço onde a paz poderia ser aprendida e multiplicada. Segundo o monge, a escola é o lugar ideal para a criação de “espaços organizados onde as pessoas sejam alfabetizadas dentro da cultura de paz”.

Dom Marcelo propõe que sejam criados círculos de cultura onde as pessoas se reuniriam para discutir alguns temas com a ajuda de um facilitador. Para Dom Marcelo, as discussões devem abranger, necessariamente, pelo menos dez áreas de conhecimento: violência, paz, conflitos, poder, desarmamento, direitos humanos, meio ambiente, gênero, cultura e futuro. “Não estamos condenados à violência. Precisamos treinar o olhar para começar a vislumbrar a realidade de um outro modo”, defende.

O senhor afirma que não haverá paz se não houver uma educação para a paz. Isso quer dizer que se aprende a fazer a paz?

A paz tem várias dimensões. Uma delas é a econômica. Uma das indústrias mais poderosas hoje é a indústria de armas. Hoje o mundo gasta um trilhão de dólares por ano com custos militares. A paz tem dimensões políticas, sociais mas também tem dimensões culturais. Ou seja, as noções de guerra e paz, são aprendidas.

Nós não somos nem naturalmente violentos, nem naturalmente pacíficos. Na verdade, nós nos construímos como violentos e nos construímos com pacíficos. São construções culturais. A gente aprende a guerra, a gente aprende a violência assim como a gente aprende a paz.

E onde nós aprendemos tudo isso?

Acho que aprendemos a fazer em todos os lugares. Hoje temos uma produção cultural da violência que faz com que aprendamos a justificá-la, a aceitá-la e a entendê-la como um componente natural da sociedade. E isso é demonstrado em vários níveis. Por exemplo, nas cantigas de roda infantis “Atirei o pau no gato” e “Marcha soldado”.

Dentro das instituições isso também está presente. Peguemos o exemplo da Academia Brasileira de Letras onde no rito de entrada o futuro imortal veste o fardão (que é um uniforme militar do século XIX) e recebe uma espada.

Existe uma militarização da sociedade que é imperceptível aos nossos olhos e que é replicada nas músicas, nas piadas e vai para a escola e para a família também. A família tem uma instituição que é a palmada pedagógica, "que educa". Essas são as violências aceitas – porque existem as violências não aceitas também.

E o que fazer para infiltrar a noção de cultura de paz dentro das famílias, escolas e comunidades?

Aí é que entra a educação para a paz, que se trata de um espaço organizado onde as pessoas podem aprender a discutir a paz. Onde as pessoas sejam alfabetizadas dentro da cultura de paz.

Eu entendo a educação para a paz como uma espécie de mapa que vai mostrar para as pessoas onde está essa paz. Hoje as pessoas procuram a paz, querem a paz mas elas não encontram o caminho.

Mas esse ensinamento tem uma sistematização? Quem é a pessoa que orienta a discussão?

Normalmente quem orienta é o educador, mas aí temos que resolver primeiro o problema de educar os educadores numa cultura de paz. Esse é o maior impecilho da educação para a paz atualmente.
As pessoas querem aprender a língua da paz, até já falam algumas palavras, mas tem que haver espaços onde essa alfabetização seja sistematizada. Isso não pode ser espontâneo. Por isso que eu digo que não vai haver paz sem a educação para a paz.

Mas o que é a paz? Me parece que a paz é entendida muito como ausência de guerra.

Com certeza. A noção de paz é ainda muito escorregadia. É por demais negativa porque não diz o que a gente quer, é por demais subjetiva porque perdeu a sua dimensão intersubjetiva e se restringe à dimensão interior. É uma noção ainda teórica e não social. É uma noção ainda vinculada a uma cultura e não multicultural. Por fim, a paz ainda é vista como um estado e não como um processo. Mas essa noção de paz vai sendo modificada à medida que a gente multiplicar o número de pessoas, espaços e grupos.

Mas essa explicação continua sendo muito subjetiva...

A minha proposta é que se façam círculos de cultura em que pessoas se reúnam para discutir alguns temas com a ajuda de um facilitador. Esse círculo de cultura pode ser feito na escola, que funcionaria como uma agência privilegiada para isso agregando seus alunos e a comunidade. Hoje a escola é a agência que pode desempenhar esse papel.

Eu vejo dez áreas de conhecimento que são fundamentais e devem ser discutidos em todas as camadas. Essas discussões têm que ser democratizadas: violência, paz, conflitos, poder,desarmamento, direitos humanos, meio ambiente, gênero, cultura e futuro.

Não estamos condenados à violência. Como é uma sociedade da paz, como seria uma cidade da paz? Precisamos treinar o olhar para começar a vislumbrar a realidade de um outro modo.

E qual seria o papel das igrejas?

As igrejas também têm legitimidade para funcionar como agências que promovem os círculos de cultura. O evangelho tem uma força pacifista. O que aconteceu com o Cristianismo é que ele perdeu o pacifismo. A partir do século V, o Cristianismo começou a aceitar a possibilidade de em alguns casos se usar a violência. Com essas exceções, aconteceram as Cruzadas, etc. Temos que recuperar esse pacifismo perdido do Cristianismo.

O conceito de paz passa também pela aceitação das diferenças. Como se constrói uma cultura de paz se existem questões como o homossexualismo ainda não aceitas?

Mas aí existe o seguinte: ninguém é isento. Tem uma ambigüidade que está presente em todos nós e as violências estão misturadas entre nós. Não existe a instituição perfeita. Todas têm potencialidades e limites. A questão é da própria discussão da instituição, as próprias instituições devem começar a avaliar como ajudam a paz e como ajudam a legitimar as violências.

Como ajudar as instituições a fazer uma auto-crítica das violências?

A educação para a paz tem dois objetivos básicos: o primeiro é fazer essa autocrítica das violências. Como dizia Ghandi ao vice-rei da Inglaterra na Índia, “não são seus fuzis que nos dominam, somos nós que nos deixamos dominar”. Da mesma forma, somos nós que sustentamos essa cultura da violência. A violência não é só do criminoso. Temos que fazer uma auto-avaliação de como reproduzimos, sustentamos e até produzimos essa cultura de violência. Precisamos retirar nossa adesão a essa cultura de violência. E esse é um processo lento como todo processo educativo.

Por isso a educação precisa ser sistematizada. Não se transformar em uma disciplina pois teríamos um professor de educação para a paz o que dispensaria os outros de educar para a paz. Por isso ela tem que ser transversal.

Não existe ciência neutra. Por exemplo, quais são os problemas apresentados aos alunos nas aulas de física? Um canhão atira uma bala a X metros por segundo em um alvo que está localizado a Y metros. Quanto tempo a bala vai levar para atingir o alvo? Essa ciência é neutra? Não, é guerra pura! E isso acaba levando à legitimação da guerra e da violência.

E qual seria o papel da comunicação e das novas tecnologias na educação para a paz?

Aí entre ao outro objetivo da educação para a paz que é colocar as pessoas em contato com o grande movimento pela de paz que já existe - ainda de forma artesanal e pouco articulado. E a mídia e as novas tecnologias teriam a função dejudar as pessoas a tomarem conhecimento desse movimento.

Por exemplo, o modelo que a mídia reproduz do conflito Israel-Palestina é o homem-bomba e o israelense repressor. Hoje, existem mais de mil oficiais do Exército de Israel presos porque se negaram a participar dessas ações repressivas. Existem também escolas onde israelenses e palestinos estudam juntos.

E como se muda esse tipo de abordagem feita pela mídia?

Uma opção é realizar círculos de cultura de paz com jornalistas, por exemplo.

O senhor afirma que a violência é muda, mas ela fala alto através do grito das armas. Como se cala o grito das armas?

Quando eu digo que a violência é muda, é porque muitas violências acontecem porque as pessoas não conseguem se fazer ouvir. A violência acontece quando as pessoas se calam e uma das maneiras de fazer a violência diminuir é fazer as pessoas falarem contra essas violências.

Com relação às armas, um dos componentes da educação para a paz é a educação para o desarmamento. Há uma legitimização das armas que é construída até com questões de gênero. A identidade masculina hoje é uma identidade armada. A legitimidade das armas é maior do que a gente imagina. Há todo um papel dos brinquedos de guerra na construção da identidade masculina.

O senhor afirma que a educação para a paz se apóia sobre três pilares. Poderia explicar?

Criação de uma comunidade pacifista – a paz não é uma experiência individual, é uma experiência comunitária. Precisamos vincular as pessoas na idéia da paz. Acho que essa é uma das razões para nossos fracassos na divulgação de uma cultura de paz. A paz deve ser intersubjetiva e não intra-subjetiva. A educação começa criando vínculos. É preciso estabelecer relações comunitárias.

Dizer a palavra paz – ajudar as pessoas a dizer e a se dizer a palavra da paz. Quando as pessoas não conseguem se expressar, lançam mão de atos de violência e também não conseguem escutar a palavra do outro. Hoje o grande instrumento para a paz é a palavra. Não podemos negar os conflitos mas temos que lidar com eles e a palavra é o meio para lidar com os conflitos. Quando se consegue falar algo para o inimigo, ele deixa de ser seu inimigo e passa a ser seu interlocutor.

Experiência de ações não violentas – a educação para a paz não é meramente teórica. É preciso ter experiências de ações não-violentas como as ações públicas por exemplo (passeatas, manifestações, abaixo-assinados) para intervir na realidade com ações pacíficas.

O ano de 2000 foi declarado pelas Nações Unidas o Ano Internacional da Cultura de Paz. O que mudou de lá para cá ?

O tema da cultura da paz se impôs na agenda pública mas ainda é um conceito novo – a primeira vez que se usou esse conceito foi em 1990. Hoje existe uma série de organizações que estão lidando com isso tanto no setor estatal como da sociedade civil.

No Brasil, temos exemplos de iniciativas públicas direcionadas para a cultura de paz. É preciso se pensar em políticas públicas de cultura de paz para não sobrecarregar os ombros morais. Fazer a sua parte é uma condição necessária mas não é o suficiente. É preciso pensar numa política pública de cultura de paz para as escolas mas também para a cidade.

Comunidade Segura.

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