terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Artigo: Um veto e o malabarismo psicológico

O Código de Processo Penal, por mais que tenha tentado resguardar a imparcialidade do juiz (arts. 252, 254 e 427), nunca foi pródigo em evitar ou coibir a prevenção do magistrado. Pelo contrário, o Direito Processual penal pátrio, como bem adverte Au­ry Lopes Jr., escolhe a prevenção como critério de definição de competência(1), pois, em concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, prevalecerá aquele que, antecedentemente, praticar algum ato do processo ou conhecer de medida a este relativa. De acordo com essa orientação, regimentos internos de tribunais costumam definir a prevenção do relator em variadas hipóteses. O art. 69 do regimento interno do Supremo Tribunal Federal dispõe que “o conhecimento do mandado de segurança, do habeas corpus e do recurso civil ou criminal torna preventa a competência do relator, para todos os recursos posteriores, tanto na ação quanto na execução, referentes ao mesmo processo”. Não é diferente a regulamentação contida no regimento do Superior Tribunal de Justiça, com o acréscimo de que “a distribuição do inquérito e da sindicância, bem como a realizada para efeito da concessão de fiança ou de decretação de prisão preventiva ou de qualquer diligência anterior à denúncia ou queixa, prevenirá a da ação penal” (art. 71).

Por outro lado, os países europeus parecem caminhar em sentido oposto. A Corte Costituzionale, ao proferir a sentenza n. 432/1995, decidiu que não poderia participar da instrução criminal o juiz que, durante as indagini preliminari, tenha aplicado medida cautelar pessoal contra o acusado. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no julgamento do caso Castillo-Algar contra Espanha, em 28/10/98, declarou vulnerado o direito a juiz imparcial o fato de dois magistrados, que haviam formado parte de uma Sala que denegou recurso interposto na fase pré-processual, também terem participado do julgamento(2).

As duas tendências baseiam-se em premissas distintas que afetarão ou não a imparcialidade, dependendo do tratamento que se dá à prevenção. O juiz que já tomou conhecimento, mesmo que em escala superficial, de fatos cujo mérito será por ele apreciado, segundo a regulamentação nacional, torna-se mais habilitado ao julgamento da causa. O prévio conhecimento obtido, indiciária ou integralmente, propiciaria melhor julgamento em virtude da maior soma de elementos que compõem a esfera de saber do julgador. E se no Direito Processual Civil e Penal permite-se ao magistrado ordenar, de ofício, a produção de provas, o ativismo judicial em busca da mais profícua elucidação dos fatos converge com a necessidade de se prevenir o juiz que, comparativamente a seus pares, guarda maior grau de cognição sobre o caso submetido a sua apreciação.

Em terras além-mar, a prevenção não apenas obsta o julgamento da causa pelo mesmo magistrado, como também importa em nulidade da decisão proferida por quem já obtivera conhecimento anterior da matéria em análise. A valoração efetuada pelo juiz em sede de imposição de medidas cautelares, por exemplo, não é considerada meramente processual e configura exame de mérito, sobretudo porque não se pode excluir que os elementos avaliados na fase antecedente sejam os mesmos que se fazem disponíveis para apreciação por ocasião da sentença. A exteriorização de julgamento em fase anterior ao procedimento principal, tal como na imposição de medida restritiva de liberdade pessoal, geraria dúvida sobre a imparcialidade e serenidade na sucessiva valoração que ocorre após a instrução criminal ou, ao menos, infundiria suspeita sobre a genuinidade e correição da formação do convencimento judicial.

Em específicas situações, a pretérita atuação do juiz é capaz de comprometer a imparcialidade, caso a sentença seja por ele prolatada: na lavratura do auto de prisão em flagrante em audiência, como permite o art. 307 do CPP, comumente quando da prática de falso testemunho; na determinação para que se ofereça denúncia uma vez constatada a existência de crime em autos ou papéis de que o magistrado conhecer (art. 40); na remessa do inquérito ou de peças de informação ao procurador-geral em caso de discordância com pedido de arquivamento formulado pelo órgão ministerial (art. 28); na hipótese de mutatio libelli, com a nova imposição de se aplicar o art. 28, em caso de discordância da acusação (art. 384).

Em todos esses exemplos, certo magistrado manifestou-se sobre a ocorrência ou não de determinada infração penal, e atribuir a ele a competência para julgamento seria simplesmente inserir uma série de atos entre duas convicções que, ordinariamente, serão equivalentes. Não se pode olvidar da existência de uma natural tendência em manter a convicção já expressa ou o posicionamento já assumido em outro momento do mesmo procedimento.

Tudo isso que se disse serviu para introduzir um juízo de desaprovação, ou melhor, para externar um lamento. Conquanto tenha sido afirmado que o Código de Processo Penal pouco regule as situações que possam lesar a imparcialidade judicial, a reforma operada por meio da Lei n. 11.690/08 tentou ajustar esse ponto e navegar em outra direção. Previu-se, a respeito das provas ilícitas, a impossibilidade de o julgador que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível proferir a sentença ou o acórdão. Em sua raiz, a disposição tencionava preservar a imparcialidade do juiz que tivera contato anterior com os fatos. Entretanto, houve veto do dispositivo legal, sob o argumento de que o afastamento do magistrado que conheceu da prova declarada inadmissível pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, por obrigá-lo a ser eventualmente substituído por outro que nem sequer conhece a causa penal. É o direito que se pratica com pressa...

Perdeu-se uma boa oportunidade para manter a isenção de ânimo do julgador, porquanto preferível seria evitar esse malabarismo psicológico de excluir a convicção da culpabilidade, formada através da prova inservível, a manter o juiz que, dificilmente, conseguirá livrar-se de percepções em si enlaçadas. O magistrado, ciente da existência de elementos incriminatórios reputados ilegítimos, pode firmar a culpabilidade do acusado de antemão, com a expectativa de que provas outras possam suprir a impossibilidade de valoração daquela reputada imprestável.

O juiz não está imune de influências psicológicas a ponto de seu raciocínio livrar-se de idéias preconcebidas. Por isso, o sistema brasileiro é muito mais austero com o órgão julgador porque exige que ele faça redobrado esforço para apagar as impressões iniciais geradas pela lavratura do auto de prisão em flagrante, pela remessa dos autos ao procurador-geral, pelo anterior contato com a prova inservível, enfim, impõe a ele torne sua persuasão moldável como argila. Essa amnésia forçada, para que o juiz livre-se de convicções precedentes e tente julgar como se pela primeira vez mantivesse ligação com os fatos, por ser espinhosa ou inexecutável, compromete a almejada imparcialidade. Isso significa que, se realizou alguma atividade antecedente que contribuiu para a instauração da ação penal ou tomou conhecimento de fato que demande a supressão de percepções insuprimíveis, melhor que se afaste da causa e atribua a outro o mister de julgar com imparcialidade. O grande problema é que o voluntarismo que marca a auto-declaração de parcialidade não se compara, em efetividade, ao que determina a força peremptória da lei.

Notas

(1) LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 93.

(2) Ibidem, p. 92.


Carlos Henrique Borlido Haddad, Mestre e doutor em Ciências Penais pela UFMG e juiz federal.

HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Um veto e o malabarismo psicológico. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 18, dez. 2008.

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