sábado, 10 de janeiro de 2009

Artigo: Tortura ainda mais

Numa luta, o pior inimigo é aquele sem rosto e que se esconde mediante disfarces dificilmente identificáveis. Assim são os que em delegacias de polícia, prevalecendo-se mais da força que da inteligência, continuam sorrateiramente a praticar talvez o mais odioso de todos os crimes: a tortura.

O secretário da Segurança de São Paulo, Ronaldo Marzagão, advogado, ex-oficial da Polícia Militar, ex-procurador de Justiça, costuma dizer que a tortura serve unicamente para identificar quem é mais e quem é menos resistente a ela. Com isso ele quer dizer que a tortura é absolutamente inútil.

Apesar desse exemplo da cúpula do aparelhamento policial paulista, com frequência chegam aos ouvidos de juízes e promotores de Justiça sofríveis notícias sobre a ocorrência de tortura nas prisões, praticadas com o propósito de obter informações, que, no final das contas, são mesmo inúteis.

Os juízes estão cansados de saber que determinadas provas produzidas na esfera policial ganham validade somente quando confirmadas em Juízo. Caso não ocorra essa confirmação, por força do depoimento tomado dos torturados, todo o esforço dos torturadores acaba servindo unicamente para evidenciar a falta de inteligência.

Esse crime, tão comum em todo o País, costuma atirar o Brasil para um péssimo lugar na lista internacional dos torturadores e concorre para impor sobre as instituições uma sombra de suspeição. Ainda hoje, passados mais de 20 anos do período da ditadura militar, os efeitos da tortura praticada naqueles tempos irradiam por todos os campos um justificável sentimento de revolta.

Nota-se até mesmo um contundente debate político entre os que se empenham em obter a punição dos torturadores daquela época e os que entendem ser isso inadmissível, por força dos efeitos jurídicos da Lei de Anistia, aprovada pelos representantes do povo.

Sempre se vê nos filmes que os torturadores não têm coragem de mostrar a cara. A própria circunstância de o torturador aparecer perante a vítima com o rosto encoberto, assim como deixá-la nua, para aumentar geometricamente o constrangimento, já representa por si só uma violação inadmissível da dignidade humana.

Já foi dito milhares de vezes que o homem é o único ser capaz de praticar a tortura. Todos os outros, mesmo aqueles que saciam a fome alimentando-se da vítima, não são capazes de impor esse sofrimento degradante.

Com o propósito de auxiliar na luta contra esse inimigo invisível, foi distribuído a juízes e promotores de Justiça brasileiros um manual elaborado pelo ex-subsecretário de Direitos Humanos do governo federal Mário Mamede e pelo embaixador do Reino Unido no Brasil, Peter Collecott.

Nele se destaca que a prática da tortura, apesar de degradante à dignidade da pessoa humana, e a despeito de sua proibição pelas normas internacionais e nacionais, continua a ser praticada impunemente.

É evidente que os juízes brasileiros não necessitam de um manual para saber como enfrentar e combater a tortura. Mas, de qualquer forma, o documento referido enfeixa as regras internacionais e nacionais destinadas a assegurar o direito de todos à proteção contra a tortura e outras formas de maus-tratos. Daí a sua inegável utilidade.

O manual relembra, por exemplo, como definição de tortura, o ato pelo qual dores ou sofrimentos graves, de natureza física ou mental, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeito de ter cometido; de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.

Enfim, torturar não é somente aplicar choque elétrico, colocar o paciente na cadeira do dragão, no pau-de-arara, sufocá-lo com saco plástico e outras práticas que a falta de inteligência prodigamente produz. O limite entre tortura e outras formas de penas cruéis, desumanas e degradantes dependerá sempre da valoração das provas materiais por juízes e promotores.

A Lei Federal brasileira 9.455 define com clareza o que vem a ser crime de tortura e estabelece a pena de dois a oito anos de reclusão para aquele que o praticar, por ação ou omissão. Quando o Estado priva uma pessoa de sua liberdade, assume a obrigação de mantê-la sob segurança, salvaguardando os seus direitos.

Se ocorre um ato de tortura, a culpabilidade se estende a qualquer pessoa que ocupe um cargo de responsabilidade dentro da instituição onde o detento esteve mantido. Ou seja, se foi praticada tão-somente por um investigador ou carcereiro, também responderá pelo crime o delegado de polícia titular da cadeia. A omissão, em muitos casos, a julgar pelos processos que chegam aos juízes, é dolosa e resulta frequentemente de espúrias parcerias que nem sempre buscam combater a criminalidade, mas dela tirar proveito.

O Brasil já sofreu o suficiente com a prática da tortura por razões políticas durante o período da ditadura militar e por isso mesmo violenta o sentimento de justiça continuar a conviver com as notícias frequentes de que segue sendo praticada, agora em relação a crimes comuns.

Quando Vladimir Herzog, Rodolfo Konder, Paulo Markun e tantos outros foram torturados em São Paulo, tinha-se esperança de isso nunca mais acontecesse.

Mas ainda acontece, silenciosamente.

Aloísio de Toledo César é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. E-mail: aloisioparana@ip2.com.br

Estadão.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog