quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Artigo: A nova lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais

A Lei 11.719/08 trouxe significativas alterações aos ritos ordinário e sumário, sendo a intenção deste artigo demonstrar que, também em relação ao procedimento da Lei 9.099/95, a nova lei trouxe dispositivos relevantes, que merecem atenção da doutrina.

Como se trata de norma recentíssima, ainda não existe, por óbvio, consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca de todos os seus efeitos, o que só costuma ocorrer depois de numerosas contribuições acadêmicas.

Na nova redação do artigo 394 do CPP estão definidas as hipóteses em que incidirão os ritos ordinário e sumário(1), constando, em seu § 1º, inciso III, que será aplicado o rito sumaríssimo “para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei”, numa redação que, à primeira vista, parece ter conservado intacto o rito da Lei 9.099/95, que já o intitulava de sumaríssimo.

Ocorre que o § 4º do mesmo artigo 394 dispõe o seguinte:

“§4º . As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código.”

Verifica-se claramente que o trecho “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código” alcança o rito das infrações de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) no que se refere a processos em trâmite no primeiro grau.

Não obstante ser a Lei 11.719/08 uma norma geral e a Lei 9.099/95 especial, o dispositivo acima citado, da forma como veio redigido, constitui exceção ao princípio Lex posterior generalis non derogat legi priori speciali. Segundo Carlos Maximiliano, o referido princípio pressupõe “não poder o aparecimento da norma ampla causar, só por si, sem mais nada, a queda da autoridade da prescrição especial vigente”(2), o que não ocorre no caso em tela onde as expressões “todos” e “ainda que não regulados neste Código” mostram com clareza o sentido da nova lei.

Interessa à presente análise, portanto, verificar o que dispõem os artigos 395 a 398(3), ou melhor, 395 a 397, já que o 398 está revogado.

A novidade dos ditos artigos, em síntese, foi a introdução da resposta escrita após o recebimento da denúncia (art. 396), com a subseqüente possibilidade de o juiz absolver sumariamente o réu (art. 397), além da menção, no art. 395, de causas de rejeição da denúncia, já previstas anteriormente no agora revogado art. 43 do CPP, e que passam a contar com o acréscimo de hipóteses e expressões como “falta de justa causa” e denúncia “manifestamente inepta”, que, na realidade, já integravam a ordem jurídica, devido a antiga e pacífica posição jurisprudencial e doutrinária.

Frise-se que a criação de uma resposta escrita do réu após o recebimento da denúncia, sucedida de uma oportunidade dada ao magistrado para dar fim à ação penal, representa um excepcional avanço, especialmente porque, antes disso, era inviável, segundo posição majoritária, o “trancamento” ou extinção da ação penal pelo próprio juiz do caso antes da sentença. Ou seja, imperava o entendimento de que, uma vez recebida a denúncia, não podia o magistrado reconsiderar a decisão que iniciou a ação penal, sendo necessária uma ordem de habeas corpus emanada de instância superior(4).

Quanto à existência de efeitos da nova Lei 11.719/08 sobre o procedimento dos Juizados, é possível que parte da doutrina venha a entender que o caput do art. 396 (“nos procedimentos ordinário e sumário...”) teria restringido os institutos da resposta escrita e absolvição sumária exclusivamente aos procedimentos ordinário e sumário, mas, se assim fosse, seria letra morta o § 4º do art. 394, que foi categórico ao estender sua aplicabilidade a “todos os procedimentos penais de primeiro grau ainda que não regulados neste Código”.

Fosse outro o sentido da recém editada norma, não haveria motivo para que o § 4º do art. 394 fizesse referência às “disposições dos arts. 395 a 398”, já que a resposta escrita e a absolvição sumária ocupam nada menos do que três dos quatro artigos ali mencionados (396, 396-A e 397), lembrando-se que o 398 foi revogado.

Afinal, conforme sustenta Carlos Maximiliano, “precisa ser inteligentemente compreendido e aplicado com alguma cautela o preceito clássico: ‘a disposição geral não revoga a especial’. Pode a regra geral ser concebida de modo que exclua qualquer exceção; ou enumerar taxativamente as únicas exceções que admite; ou, finalmente, criar um sistema completo e diferente do que decorre das normas positivas anteriores: nesses casos o poder eliminatório do preceito geral recente abrange também as disposições especiais antigas”(5).

Maria Helena Diniz sustenta que “a lex posterior apenas será aplicada se o legislador teve o propósito de afastar a anterior”(6), e, pela forma como está redigido o novo art. 394, § 4º do CPP, não se consegue vislumbrar outro propósito.

O detalhe a exigir maior atenção, e que pode ser causa de divergências doutrinárias ou questionamentos quanto à constitucionalidade da Lei 11.719/08, é que o art. 81 da Lei 9.099/95 prevê o recebimento da denúncia em audiência, após manifestação oral do defensor pugnando por sua rejeição:

“Art. 81. Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa; havendo recebimento, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença.”

Se a nova lei prevê, no art. 396, que, “oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias”, verifica-se uma derrogação ao art. 81 da Lei 9.099/95.

Trata-se de derrogação, e não ab-rogação ou revogação, porque o rito dos artigos 396 a 397 do CPP não chega a atingir os atos de instrução e julgamento propriamente ditos, conservando-se intacta a vigência da parte final do art. 81 da Lei 9.099/95, a saber, “... serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença”.

E “a abolição das disposições anteriores se dará nos limites da incompatibilidade” entre a norma nova e a antiga, ou seja, “se em um mesmo trecho existe uma parte conciliável e outra não, continua em vigor a primeira”(7).

Segundo a interpretação aqui exposta, portanto, sofreu modificação o procedimento adotado nos Juizados entre o momento do oferecimento de denúncia e o início efetivo da colheita da prova, ficando suprimida a manifestação oral da defesa antes do recebimento da peça acusatória e o juízo de prelibação exercido na própria audiência.

É que, evidentemente, não se pode simplesmente, “inserir a força” ou “encaixar” o rito previsto nos arts. 395 a 397 no procedimento da Lei 9.099/95 mantendo-o intacto em todas as suas demais etapas processuais, eis que algumas são desarmônicas e inconciliáveis com a nova lei. Nesse sentido, não se poderia manter a manifestação oral da defesa e o subseqüente recebimento ou rejeição da denúncia em audiência, e, ao mesmo tempo, promover a citação para resposta escrita em 10 dias caso restasse recebida a inicial acusatória, sob pena de se desdobrar a audiência do art. 81 da Lei 9.099/95 em duas. Esta opção, portanto, exigiria adicionar ao rito dos Juizados Criminais mais uma audiência, não prevista em nenhuma das duas leis.

Assim, tendo em vista a inconciliabilidade e desarmonia do novo procedimento dos arts. 395 a 397 do CPP com a primeira parte do rito do art. 81 da Lei 9.099/95, é de se concluir que este restou derrogado pela Lei 11.719/08.

A partir de agora, portanto, segundo a interpretação aqui sustentada, o juiz apreciará a denúncia em seu gabinete, de forma mais cautelosa e fundamentada, e seguirá o rito dos artigos 395 a 397 do CPP.

Ao analisar a denúncia, vislumbrando o magistrado alguma das hipóteses do art. 395, rejeita-la-á de plano. Se entender por rece­bê-la, fará isso em seu gabinete, em data anterior à AIJ, determinando, em seguida, a citação do réu para apresentar resposta escrita em 10 dias (art. 396). Apresentada esta, o juiz verificará se ocorrem as circunstâncias para absolvição sumária (art. 397), após o que ou absolverá o réu, ou designará audiência de instrução, que se iniciará já pelas oitivas, exatamente na ordem prevista na parte final do art. 81 da Lei 9.099/95.

É certo que a instituição da resposta escrita pela Lei 11.719/08, em se tratando de nova oportunidade de manifestação da defesa técnica, é algo em evidente consonância com a garantia constitucional da ampla defesa e contraditório (art. 5º, LV), bem como com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), já que se passa a permitir ao juiz da causa fazer cessar imediatamente o constrangimento ilegal em caso de ação penal indevida.

Por outro lado, a dilatação do procedimento dos Juizados com um novo ato, com prazo de 10 dias, e, ainda por cima, escrito e formal, pode ser vista como afronta à exigência constitucional de oralidade e celeridade (art. 98, I, CR: “procedimentos oral e sumaríssimo”).

Ocorre que, analisadas tais mudanças sob o prisma das garantias individuais, verifica-se que a imposição de uma defesa escrita, elaborada por advogado constituído ou defensor nomeado pelo juiz (art. 396-A, § 2º) veio cumprir uma missão extremamente necessária nos Juizados, onde a noção de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade, conciliação e transação (art. 2º, Lei 9.099/95) vinha induzindo o indivíduo acusado a não buscar a assistência técnica na fase preliminar, levando-o, muitas vezes, a admitir ônus e restrições em sua liberdade sem a necessária justa causa, num país em que a Constituição Federal “lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado” (STF - HC 82.354/PR - min. Sepúlveda Pertence - DJ 24/9/04)(8).

E, mesmo em relação à efetividade da defesa técnica na própria audiência de instrução e julgamento nos Juizados, onde a presença do defensor do réu já era obrigatória, o dia-a-dia forense demonstra que os jurisdicionados dependentes da Defensoria Pública costumam ter ali, na própria audiência, o seu primeiro contato com o defensor. Agora, com a Lei 11.719/08, a exigência de uma peça de defesa escrita, cuja falta acarretará nulidade absoluta(9), exigirá o encontro prévio entre defensor e acusado, fazendo com que a imprescindível “assistência de advogado” (art. 5º, LXIII, CRFB) seja mais do que um mero simulacro.

Nesse sentido, o raciocínio aqui exposto aponta para a derrogação do art. 81 da Lei 9.099/95 pela Lei 11.719/08, não se vislumbrando inconstitucionalidade nesta, já que a doutrina garantista recomenda que, diante de conflitos entre normas constitucionais (art. 98, I versus art. 5º, LV e LXIII), a balança penda em favor da liberdade e das garantias individuais, porquanto estas últimas ostentam o status constitucional de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV).

Notas

(1) “Art. 394. O procedimento será comum ou especial. § 1º O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo: I - ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; II - sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; III - sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei.”

(2) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense: 2006, p. 294.

(3) “Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.” “Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias. Parágrafo único. No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.” “Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário. §1º A exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste Código. §2º Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.” “Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV - extinta a punibilidade do agente. Art. 398. Revogado.”

(4) STJ, HC 86.903/DF, min. Napoleão Nunes, 5ª T. - j. 28/5/2008, DJ 30/6/2008; STJ, EDecl no REsp. 173.395/PA, min. Fernando Gonçalves, 6ª T - j. 27/6/2000, DJ 2/10/2000; e STF, RHC 51423/PA, min. Aliomar Baleeiro, Pleno, j. 17/10/1973, DJ 2/1/1974.

(5) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 294.

(6) DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 35.

(7) MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 293.

(8) Este acórdão, que inaugurou uma linha jurisprudencial firme na Suprema Corte acerca do direito do investigado acessar autos de inquérito, deixou claro que, não obstante a não incidência de contraditório e ampla defesa na fase inquisitorial, o investigado é sujeito de direitos, devendo-se lhe assegurar garantias como a assistência de advogado e proteção contra a auto-incriminação (art. 5º, LXIII, CRFB).

(9) Diferentemente da controvérsia acerca do art. 514 do CPP (nulidade relativa ou absoluta), a “resposta escrita” da nova Lei 11.719/08 constitui peça a ser apresentada após o recebimento da denúncia, portanto, quando já em curso a ação penal, momento em que a incidência das garantias de ampla defesa e contraditório é inquestionável.


Ricardo Sidi, Advogado criminalista e pós-graduado em Direito Penal Empresarial pela PUC/RJ

SIDI, Ricardo. A nova Lei 11.719/08 e seus efeitos sobre o rito dos juizados especiais criminais. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 12-13, dez. 2008.

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