quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Artigo: A lei nº 11.719/08 e a releitura necessária do artigo 366 do CPP

Ao tempo em que advém a incidência de três leis processuais penais que trazem profundas alterações ao Código de Processo Penal (ao que parece, duas outras ainda virão(1)), muito se tem dito a respeito das alterações promovidas no procedimento relativo ao Tribunal do Júri, ignorando-se, por vezes, que outros institutos também sofreram relevantes modificações.

Malgrado em diversos aspectos as Leis nº 11.689, 11.690 e 11.719 tenham previsto regras que, na sua maioria, já vinham sendo aplicadas por boa parte dos aplicadores, atentos que estavam aos comandos impostos pelos princípios constitucionais, parece oportuno que, dentre as novas regras, passemos a analisar uma que também merece reflexões mais cuidadosas, sob pena de ferir de morte um instituto processual existente desde 1996 e de fundamental importância na constitucionalização do sistema processual penal pátrio. Referimo-nos à suspensão do processo, que continua prevista no art. 366.

É sabido que o instituto em questão ingressou no ordenamento através da Lei 9.271/96, a qual trouxe nova redação ao então art. 366 passando a estabelecer que se o acusado, citado por edital, deixasse de comparecer ao interrogatório e de constituir defensor, ficariam suspensos o processo e curso do prazo prescricional.

Há de se perceber que, referida modificação, já naquela época, nada mais desejava do que estender à fase citatória uma incidência integral e real do princípio constitucional do contraditório (CF, art. 5º, LV). Isto porque, longe de significar tão-só uma garantia de participação no processo — através da qual se permite às partes a contribuição na formação do convencimento do julgador —, reconhecia-se que tal princípio trazia em seu bojo a regra da paridade de armas, significando a busca de uma efetiva igualdade processual.

Neste sentido, já vinha reconhecendo a moderna doutrina que o contraditório, além de garantir às partes o direito à informação (de qualquer alegação contrária ao seu interesse) e o conseqüente direito à reação, também garantiria “que a oportunidade da resposta pudesse se realizar na mesma intensidade e extensão. Em outras palavras, o contraditório exigiria a garantia de participação em simétrica paridade”(2).

Daí se concluir que a alteração trazida pela Lei 9.271/96, na verdade, tão-somente era um reconhecimento de que não havia uma real informação da imputação ofertada ao réu que estivesse nas condições do art. 366. É dizer, a ele teria havido uma fictícia informação; fictícia igualmente seria sua reação. Longe, portanto, da reação integral exigida pela dita “simétrica paridade”. Reconhecia-se, então, normativamente que fictamente informado da ação era o mesmo que não estar informado, daí a necessária suspensão do processo, pois só assim se poderia resguardar o seu direito a uma futura reação e, por conseguinte, preservar a exigida igualdade processual referida. A suspensão do processo, desta forma, significava (e deve continuar significando) um corolário do princípio constitucional do contraditório, reconhecendo que só quando efetivamente informado de uma ação penal poderia o denunciado apresentar a reação exigida pelo sistema processual penal (que se deseja) acusatório.

Pois bem, esta a sistemática em vigor até a vinda da Lei 11.719/08.

Uma leitura mais apressada na referida lei poderia gerar uma primeira interpretação (equivocada) de que não houve qualquer alteração no instituto em questão, já que o novel art. 366 previsto na lei fora “vetado”, sob o argumento (cf. mensagem do veto) de “se assegurar vigência ao comando legal atual”. Analisando com vagar as alterações trazidas, porém, bem se vê a precipitação de tal interpretação(3).

Com efeito, tal qual referido, a suspensão do processo tem uma ratio bastante clara: preservar o princípio do contraditório, isto é, impedir que uma ação penal tenha início sem que o acusado saiba que a mesma existe, quiçá sendo condenado sem seu conhecimento, o que por vezes ocorria sob a vigência da previsão original do art. 366(4).

Mais. A suspensão do processo implica no reconhecimento de que só com a real possibilidade do acusado exercer o seu direito de presença no curso dos atos instrutórios estará mantido íntegro o respeito ao princípio constitucional da ampla defesa. Não por outra razão que a suspensão ocorria antes do início da fase instrutória, e não na fase decisória, hipótese que, por óbvio, desrespeitaria toda a bagagem principiológica citada. De fato, é esta base que bem demonstra a lógica da sistemática então adotada pelo legislador de 1996.

Se assim é, mostra-se incorreto que, a partir da Lei 11.719, o art. 366 persista sendo aplicado como se nada tivesse ocorrido. Tal geraria inevitável prejuízo aos princípios referidos, pois com a vinda do novo texto legal, o interrogatório, em boa hora(5), deixou de ser o primeiro ato posterior à citação.

Com efeito, nos termos da nova redação dos arts. 394 e seguintes, o interrogatório será o último ato da audiência, que agora se pretende seja de instrução e julgamento (CPP 400). É dizer, o interrogatório, pela nova sistemática, só precederá o requerimento de diligências finais e as derradeiras alegações (CPP 402).

Logo, parece evidente que a atual redação do art. 366 há de ser interpretada sistematicamente. É dizer, não há que se aguardar o não comparecimento do acusado citado por edital no atual momento do interrogatório para que haja a aplicação da suspensão. Ao assim agir, o intérprete certamente estaria violando a ratio do instituto e, por conseqüência, os princípios constitucionais que o embasam.

Para que o instituto permaneça íntegro, não parece existir outra leitura que não a de se perceber que o ato cuja ausência deve servir de referência para a aplicação do art. 366 não mais é o interrogatório, mas o primeiro ato processual posterior à citação trazido pela nova legislação. Em outros termos, se com a Lei 9.271/96 havia a suspensão do processo quando o denunciado fosse citado por edital, não comparecesse ao interrogatório (então o 1º ato posterior à citação) e nem constituísse advogado; atualmente, o processo ficará suspenso sempre que o denunciado, em sendo citado por edital, não constituir defensor para apresentar a resposta à acusação, a que faz referência o atual art. 396 do Código(6). Parece reforçar este entendimento a própria previsão do parágrafo único do dispositivo, ao estabelecer que “No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor consti­tuído”. É dizer, numa interpretação a contrario sensu, não comparecendo o acusado (para apresentar a chamada “resposta à acusação”), nem constituindo defensor para tanto, há de se aplicar a suspensão do processo(7).

Atente-se que mesmo o § 2º do art. 396-A, trazido pela lei, não soluciona o caso em apreço, devendo o mesmo ser compatibilizado com o art. 366 e o próprio parágrafo único do artigo 396(8). Neste sentido, há de se reconhecer que só estará respeitado o princípio do contraditório, nos moldes antes referidos, se entendermos que a previsão do § 2º em questão se refere única e exclusivamente aos acusados realmente citados, isto é, aos acusados citados pessoalmente (ou, no máximo, por hora certa).

Enfim, por força de uma interpretação sistemática, ao invés do interrogatório ser tido como o marco processual definidor da aplicação do art. 366, por força das modificações trazidas pela Lei 11.719, deve-se levar em conta para a aplicação do instituto da suspensão do processo o 1º ato posterior à citação, que, agora, é a resposta à acusação, conforme a nova redação do art. 396. Só assim, acredita-se, estará sendo respeitada a ratio do instituto em questão e toda sua base principiológica constitucional.

Notas

(1) Conforme notícia extraída do site http://www.senado. gov.br/novocpp/default.asp, sem embargo de uma reforma geral, encontra-se em discussão projetos de lei voltados a alterações nos procedimentos cautelares e nos recursos.

(2) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7ª ed., rev., atual. e ampl., Belo Horizonte: 2007, p. 28 (grifos no original).

(3) Foge à pretensão deste trabalho discutir a correção (ou não) do veto em questão. Neste particular, recomenda-se interessante análise realizada por ESTEFAM, André. (O veto equivocado à Lei 11.719/2008. Disponível em . Acesso em: 01 de agosto de 2008).

(4) “Art. 366. O processo seguirá à revelia do acusado que, citado inicialmente ou intimado para qualquer ato do processo, deixar de comparecer sem motivo justificado.”

(5) Fala-se “em boa hora”, porque há muito a doutrina mais abalizada já vinha ressaltando que, dada a natureza atual do interrogatório (muito mais um ato de defesa, do que um meio de prova), imprescindível que sua realização ocorresse após a fase instrutória, tal qual inclusive já era reconhecido, em caráter excepcional, no rito sumaríssimo da Lei 9.099/95 para as infrações de menor potencial ofensivo.

(6) “Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”

(7) Neste sentido: Pacelli de Oliveira asseverou que “deve-se reler o art. 366 do CPP, substituindo-se a expressão ‘comparecer’ por ‘apresentar defesa escrita’” (in Curso de Processo Penal. 10ª ed., rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: 2008, p. 487). No mesmo sentido, embora sem aprofundamento, manifestou-se Estefam no artigo referido.

(8) “Art. 396-A, § 2º. Não apresentada a resposta no prazo legal, ou se o acusado, citado, não constituir defensor, o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias.”


Alexey Choi Caruncho, Pós-graduado, professor universitário, especialista em Direito Criminal e promotor de Justiça/PR.

CARIMCHO, Alexey Choi. A lei n. 11.719/08 e a releitura necessária do artigo 366 do CPP. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 15-16, dez. 2008.

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