segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Artigo: A execução da pena privativa de liberdade (III)

A descontinuidade de gestão é um dos males crônicos da administração pública em nosso país.

A sociedade sofre a falta de planificação e de políticas públicas em áreas relevantes como a da segurança pública.

O mestre Belmiro Valverde Jobim Castor, em lúcida obra, O Brasil não é para amadores, observa muito bem: "Somos um país de improvisadores, palavra que vem do latim improvisu, aquilo que não foi visto antes. A escassez de referência históricas, culturais e políticas, que não fosse a pura transposição mecânica das referências históricas, políticas e socioculturais portuguesas, levou à adoção quase que universal da improvisação como método preferido da construção nacional. (2.ª ed., Curitiba: Travessa dos Editores, 2004, p. 48).
O terceiro grupo de sugestões oriundas da comissão instituída pelo secretário de Estado da Justiça e o presidente do Tribunal de Justiça, aborda um tema do maior relevo: o Plano Estratégico de Gestão do Sistema Penitenciário. É justamente nesse terreno que há deficiências crônicas comprometedoras dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da individualização da pena. Eles são essenciais para se efetivar o art. 1.º da Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84), ao dispor sobre a "harmônica integração social do condenado e do internado".

Com responsabilidade funcional e sem improvisar, a comissão admite que o atual governo tem revelado grande esforço, mas ressalva que ainda há muito a ser feito para melhorar o sistema penitenciário. E indica, com detalhes, as medidas necessárias para o bom êxito do Plano, as quais são reproduzidas fielmente a seguir:

***

"a) reestruturação organizacional do Departamento Penitenciário, conforme proposta em curso;
b) interiorização de unidade de regime fechado e semiaberto feminino;
c) interiorização do regime semi-aberto masculino, edificando, em todos os locais onde houver uma unidade de regime fechado, uma unidade de regime semiaberto;
d) no planejamento das unidades provisórias, contemplar estrutura física que permita o trabalho e o estudo, vez que muitos detentos demonstram interesse por tais atividades que, de todo modo, contribuem para a melhoria das aptidões do sentenciado e para o tranqüilo funcionamento da unidade;
e) dotar a direção das unidades de recursos financeiros para reparos emergenciais (fundo rotativo);
f) aumentar significativamente o investimento nos Patronatos Penitenciários e pró-egressos.
g) dotar os grandes centros urbanos de Unidades Penais de Regime Aberto.

JUSTIFICATIVA: A interiorização das Unidades Penais é absolutamente indispensável, considerando a necessidade de serem mantidos os vínculos afetivos familiares, a assistência ao egresso e sua fixação na região de origem.

De um modo geral, se trata de sentenciados de baixa renda, que já atendem com dificuldade aos custos mensais de sua manutenção e de sua família no interior, certo que o deslocamento para grandes centros urbanos, com custo de vida mais elevado e maior exigência de qualificação, acabam empurrando todos detento e familiares - para a marginalidade.

Assim não fosse, o deslocamento dos detentos para suas regiões de origem implica em recursos com passagem é melhor o Poder Público responder pelo custo do que permitir que os detentos obtenham recursos assaltando ou furtando.

Do item "d" já consta justificativa.

O item "e" dispensa maiores considerações, na medida em que reparos emergenciais merecem atenção especial e a lei contempla o atendimento destas situações emergenciais.
Quanto ao item "f", será tratado quando da abordagem do regime aberto.

No que concerne o item "g", embora a família, de modo geral, exerça papel crucial na recuperação dos sentenciados, há uma quantidade expressiva de situações em que a família ou exerce influência negativa ou não tem mais interesse em seu retorno.

Nestes casos, considerando que legislação estabelece o recolhimento em casa de albergado, seria recomendável que o Poder Público providenciasse estabelecimentos penais aptos para receber o sentenciado, possibilitando-lhe recursos mínimos (alimentação, estadia, disciplina, treinamento, etc.) ao retorno ao convívio social, permitindo a busca de emprego e futura habitação.

PROPOSTAS PARA AS UNIDADES PENAIS DE REGIME SEMIABERTO

10. Restrição à movimentação dos detentos nas Unidades de Regime SemiAberto, demarcando e limitando as áreas de circulação, de modo que se possa promover a separação de acordo com o grau de comprometimento com a transgressão e grau de risco que oferece à sociedade, aos funcionários e demais detentos, conforme projeto em andamento.

JUSTIFICATIVA: A principal Unidade de Regime SemiAberto encontra-se situada na Região Metropolitana de Curitiba e possui extensa área de terra (322 alqueires), de modo que há enorme dificuldade da administração para a contenção dos detentos, assim como para fiscalizar as suas atividades.

Ocorre o comércio de drogas, as fugas encomendadas, a pressão aos detentos que não pertencem aos grupos que detém algum poder de mando. Logo, sem demora, é preciso que a Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania engendre forma de aumentar o controle desta unidade, coibindo fugas e evasões de portaria, separando os presos segundo o grau de risco que oferecem e exercendo efetiva fiscalização sobre as atividades por eles exercidas - consta projeto em andamento com construção de 04 (quatro) novos alojamentos e um Centro de Triagem.

11. Redução no número de detentos em alojamentos coletivos, (inicialmente projetado para 80 detentos, são ocupados por 120). Esta Unidade conta com 1.360 presos.

JUSTIFICATIVA: Atualmente cada alojamento da Colônia Penal Agrícola é ocupado por um número excessivo de sentenciados, o que acaba por favorecer toda espécie de ilícito, na medida em que impede um controle efetivo por parte da administração.

Os alojamentos são superlotados ficando impossível circular, logo, de fiscalizar as atividades ilícitas e identificar seus praticantes.

12. Pagamento de passagem rodoviária aos sentenciados, para deslocamento à residência, na capital e interior, por ocasião das saídas temporárias, progressão de regime ou livramento condicional, independentemente de eventual remuneração que receba durante o cumprimento da pena.

JUSTIFICATIVA: O deslocamento dos sentenciados para o interior e para suas residências, na capital ou região metropolitana, deve ser preocupação do Poder Público, pois a ausência destes recursos pode resultar na prática de ilícitos.

Convém lembrar que os sentenciados moradores do interior foram deslocados à Curitiba para cumprimento da pena, de modo que, em princípio, ao Poder Público cabe restituí-los aos seus locais de origem.

De outro lado, o trabalho remunerado, nas unidades penais, não contempla todos os sentenciados, de modo que parcela significativa deles, ou recorre ao ilícito, ou não terá recursos necessários para seu deslocamentos e contato com sua família.

Ainda, os que trabalham, ao retornar aos seus domicílios, como são eles os provedores, encontram uma situação de penúria, sendo razoável esperar que os recursos angariados com o trabalho no interior das unidades seja destinado aos familiares, visando amenizar a miséria.

PROPOSTAS PARA AS UNIDADES PENAIS DE REGIME ABERTO E PARA O LIVRAMENTO CONDICIONAL

13. Dotar Patronatos e Pró-Egressos de efetivas condições de acompanhamento e fiscalização das condições impostas pelo judiciário para o Regime Aberto e liberdade Condicional. Firmar convênios com instituições públicas e privadas.

JUSTIFICATIVA: O Regime Aberto é, sem sombra de dúvidas, o regime de cumprimento de pena mais importante para o detento e, paradoxalmente, o regime de cumprimento onde o Estado/Poder Público menos investe.

Para o preso condenado ao cumprimento de pena em regime aberto, a fiscalização efetiva, o acompanhamento para dependência química, o ensino formal ou profissionalizante, são fundamentais para impedir a reincidência.

Multiplica-se a idéia, equivocada, de que a impunidade é regra geral quando, se fosse, não haveria tantos cumprindo pena em regimes mais rigorosos.

A primeira pena, que serve de advertência, há de ser efetiva, devidamente fiscalizada e reabilitadora, alertando para a possibilidade de agravamento do regime de cumprimento na hipótese de novas práticas ou de descumprimento das condições impostas.

Quando decorrente de progressão, o regime aberto representa o esforço final do Poder Público, onde se ganham ou perdem os recursos até então aplicados. É onde o sentenciado, livre da permanente vigilância, poderá encontrar os mesmos estímulos que o levaram ao primeiro delito. Logo, faz-se necessário que ao progredir de regime ele esteja amparado psicologicamente, firme em seus propósitos e completamente ciente que na prática de um desvio, haverá sim fiscalização capaz de fazê-lo retornar a um regime mais severo.

Assim, se é aqui o momento da glória ou fracasso, deve haver a correspondente preocupação do Poder Público com os recursos até então empregados.

Hoje, lamentavelmente, como não há superlotação visível, Pró-Egressos e Patronatos lutam bravamente para manter suas atividades com alguma eficiência.

Em Curitiba, o Patronato necessita de um espaço adequado para atender a demanda, número elevado de detentos que cumprem pena em Regime Aberto ou Liberdade Condicional, e manter as suas atividades com eficiência.

O número de vagas em cursos profissionalizantes, em face da quantidade de detentos em livramento condicional ou regime aberto, é inexpressivo.

14. Recomendar que as empresas que utilizam a mão-de-obra do sistema penitenciário, assegurem um percentual de vagas aos egressos.

JUSTIFICATIVA: Há enorme dificuldade para colocação dos egressos no mercado de trabalho, de forma que seria razoável esperar que as empresas que utilizam a mão-de-obra dentro das Unidades Penais ou fora delas, no Regime Semi-Aberto, oferecendo treinamento e capacitação, posteriormente viessem oferecer oportunidade de trabalho aos egressos, cultivando uma cultura de responsabilidade social.

***

Ao reproduzir o valioso trabalho da Comissão para o Aprimoramento da Individualização da Pena no Sistema Penitenciário do Paraná, eu transcrevo dois parágrafos relevantes da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal: "14. Sem questionar profundamente a grande temática das finalidades de pena, curva-se o Projeto, na esteira das concepções menos sujeitas à polêmica doutrinária, ao princípio de que as penas e medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade; 20. É comum, no cumprimento das penas privativas da liberdade, a privação ou a limitação de direitos inerentes ao patrimônio jurídico do homem e não alcançados pela sentença condenatória. Essa hipertrofia da punição não só viola medida da proporcionalidade, como se transforma em poderoso fator de reincidência, pela formação de focos criminógenos que propicia". (Grifos do original).

Essas diretrizes estão, sem dúvida, incorporadas ao pensamento, aos ideais e ao texto dos ilustres membros da Comissão. (Segue)


René Ariel Dotti é advogado. Professor titular de Direito Penal na Universidade Federal do Paraná. Co-redator do anteprojeto que se converteu na Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84). Detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007).

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 04/01/2009.

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