terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Artigo: Citação por hora certa no processo penal, contraditório e isonomia

No atual estágio de evolução do Direito Processual, todo o operador do Direito deve estar consciente de que a principal finalidade do processo é propiciar ao cidadão o acesso a uma ordem jurídica justa(1), percebendo-se, com relativa facilidade, o caráter de direito fundamental que é assegurado constitucionalmente ao cidadão de ter direito a acessar a esta ordem jurídica justa, de acordo com o estabelecido como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, no art. 3º, I, da Constituição Federal de 1988. E como forma de garantir proteção e efetividade a este direito fundamental, ele próprio exige que sejam construídos procedimentos destinados a protegê-lo, conforme valiosa lição de Robert Alexy(2).

Portanto, é tarefa primordial do legislador infraconstitucional observar o direito fundamental de acesso à ordem jurídica justa durante a fase legislativa de construção de um novo procedimento ou de alteração de um procedimento já existente, observando os postulados principiológicos que visam dar concretude a este direito fundamental, estabelecidos no art. 5º e inciso da Constituição Federal de 1988, dentre eles o devido processo legal, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, juiz natural, dentre outros.

Porém, não se verificou por parte do legislador a prudência em atender a estes princípios, principalmente no tocante ao contraditório e a isonomia, ao trazer para o processo penal a citação por hora certa, mediante a alteração do art. 362 do Código de Processo Penal e o acréscimo de um parágrafo único ao mencionado dispositivo do Código de Processo Penal, alterações essas promovidas pela Lei 11.719/2008.

Todavia, para que sejam exercidas as necessárias críticas à adoção da citação por hora certa no processo penal, é necessário fazer uma breve distinção entre a natureza jurídica do direito de defesa no processo civil e no processo penal.

No processo civil, o direito de defesa, com exceção nas ações que versam sobre direitos indisponíveis (art. 213 do Código Civil e art. 351 do Código de Processo Civil), assume a faceta de um ônus para a parte, ou seja, de um encargo que a parte deve suportar no interesse de atender as suas próprias pretensões. Neste sentido, ensina Tucci que “(...) no processo extrapenal, particularmente no processo civil, delineia-se satisfatório, com a citação inicial válida, a possibilidade de contraditório; até porque o réu, instado a comparecer e atuar, não tem o dever, mas, apenas, o ônus de defender-se, podendo, conseqüentemente, o procedimento tramitar a sua inteira revelia”(3).

Por outro lado, o direito de defesa no processo penal assume a natureza de um dever, conforme se conclui em face do disposto no art. 261 do Código de Processo Penal(4), ou seja, o Direito pátrio, em sede processual penal, não se contenta com a mera possibilidade de contraditório, como ocorre no processo civil, mas demanda a existência de defesa efetiva e real como condição de validade do processo penal, cuja ausência pode ser causa de nulidade absoluta ou relativa, conforme o caso(5).

Tendo sido estabelecida a premissa da obrigatoriedade de defesa no processo, imposta pela necessidade imprescindível da existência de contraditório real e efetivo, torna-se forçoso concluir que a adoção da citação por hora certa no processo penal não garante o contraditório real e efetivo e ainda gera uma situação de profunda desigualdade com o réu citado por edital, outra modalidade de citação ficta, situação pela qual, torna-se imperioso a aplicação analógica do art. 366 do Código de Processo Penal, determinando-se a suspensão do processo também nas hipóteses de réu citado por hora certa que não comparecer e não constituir defensor.

Conforme a nova redação do art. 362 do Código de Processo Penal, fica estabelecido que, na hipótese do réu se ocultar para evitar a citação, deverá o oficial de Justiça certificar o ocorrido e proceder à citação por hora certa, nos termos dos arts. 227 a 229 do Código de Processo Civil. Porém, a antiga redação do art. 362 do Código de Processo Penal, que previa a realização de citação por edital do réu que se ocultasse para evitar a citação, trazia conseqüências processuais penais mais condizentes com a necessidade de contraditório real e efetivo, na medida em o réu citado por edital não comparecesse nem constituísse defensor teria o processo suspenso, bem como teria o curso do prazo prescricional suspenso(6).

Porém, o legislador não previu para a citação por hora certa do novo art. 362 do Código de Processo Penal a suspensão do processo, podendo o processo seguir o seu trâmite normal à revelia do réu, o qual se presume estar se escondendo da citação, dando-o por cientificado da acusação que lhe é feita, contrariando justamente o espírito que motivou a alteração no art. 366 do Código de Processo Penal pela Lei 9.271/96.

Tal falha legislativa gera importantes conseqüências jurídicas: a primeira refere-se ao flagrante prejuízo imposto ao contraditório e a ampla defesa, na medida em que o réu não pode exercer sua autodefesa, com o processo tramitando a sua revelia, não tendo contato com o juiz natural da causa, não podendo, desta forma, oferecer-lhe a sua versão dos fatos. Também é prejudicial ao correto julgamento da causa, tendo em vista que o juiz extrai importantes elementos de convicção do seu contato com réu durante o interrogatório, propiciando-lhe mais elementos para poder proferir uma decisão de melhor qualidade.

Assim, é imperativo que, para as hipóteses onde ocorra a citação por hora certa, se aplique a previsão de suspensão do processo prevista no art. 366 do Código de Processo Penal. Pode ser oferecida a objeção de que a suspensão do processo é prevista somente no caso de citação por edital, porém tal argumentação se mostra deficiente, pois, no momento histórico em que fora aprovado à atual redação do art. 366 do Código de Processo Penal(7), existia apenas uma espécie de citação ficta, a citação por edital. Portanto, era indiferente para o legislador da época utilizar o gênero (citação ficta) na redação legislativa quando existia no processo penal apenas uma única espécie de citação ficta no processo penal (citação por edital). Atualmente, com a introdução da outra espécie de citação ficta no processo penal (citação por hora certa), a não aplicação analógica do art. 366, CPP, aos casos de citação por hora certa gera um tratamento desigual inaceitável em um processo penal de cunho garantista, posto que àquele que for citado por edital terá direito à suspensão do processo, tendo seu direito de defesa e de presença garantidos quando comparecer em juízo, porém aquele que for citado por hora certa terá tramitando, contra sua pessoa, processo criminal à sua completa revelia. Portanto, a mera interpretação gramatical do art. 366, CPP, de que este prevê a suspensão do processo e do prazo prescricional somente nas hipóteses de citação por edital, excluindo-se a aplicação analógica nos casos de citação por hora certa, nega concretude ao princípio da isonomia insculpido no art. 5º, caput da Constituição Federal de 1988.

A mera interpretação gramatical do art. 366, CPP, não estendendo sua aplicação aos casos de citação por hora certa, viola também o próprio espírito da lei que motivou a sua reforma (Lei 9.217/1996), cuja intenção era impedir que o réu que fosse fictamente citado por meio de edital e fosse processado sem ter plena ciência da acusação que lhe é imputada, que certamente será prejudicado no caso de não ser estendida a aplicação do art. 366, CPP, para os casos de citação ficta na modalidade de hora certa.

Diante desta breve exposição e dos argumentos expostos, torna-se forçoso concluir no sentido da aplicação analógica do art. 366, CPP, aos casos de citação por hora certa, como forma de garantir a isonomia entre àqueles que citados fictamente, não comparecem nem constituem defensor, e também como forma de garantir em ambas as situações o direito de defesa e de presença do acusado.

Notas

(1) Neste sentido CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 21ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 46. Saliente-se ser esta a postura adotada por alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros, tais como o Tribunal Constitucional Federal da República Federal da Alemanha, nos julgados BVerfGE 42, 64; 49, 220; 52, 131, enfatizando, em apertada síntese, que a missão do Direito Processual é a produção de decisões conforme a lei, desde que estas sejam corretas e justas, enfatizando, assim, a tarefa do direito processual de realizar justiça.

(2) ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamenta­les. Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales: Madrid, Trad. Ernesto Garzón Valdés, 2002, p. 473.

(3) TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 2ª ed., São Paulo: RT, 2004, p. 179. Em sentido similar CINTRA, DINAMARCO e GRINOVER, op. cit., p. 280, asseverando que se atribui ao réu a eventua­lidade da defesa.

(4) Novamente invocamos a lição de Tucci, que sustenta que “o direito deste à contrariedade real assume natureza de indisponível, dada, precipuamente a impessoalidade dos interesses em conflito, sendo, portanto, indispositivo” (TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal. São Paulo: RT, 2003, p. 181).

(5) Súmula 523 STF: “No processo penal, a falta de defesa técnica constituirá nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova do prejuízo do réu.”

(6) A suspensão do processo para o réu que fosse citado por edital e não comparecesse nem constituísse defensor foi objeto de reiterados pedidos por sua adoção, como forma de se garantir a efetividade do direito de defesa através da informação sobre a imputação que lhe é feita, que resta prejudicada na citação por edital (GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 8ª ed., São Paulo: RT, 2005. p. 124). Sobre a imprescindibilidade da informação, Canuto Mendes de Almeida acentua a impossibilidade de se defender sem o conhecimento dos termos da imputação (MENDES DE ALMEIDA, Joa­quim Canuto. Processo Penal: Ação e Jurisdição. São Paulo: RT, 1975, p. 114).

(7) A atual redação do art. 366 do Código de Processo Penal foi dada pela Lei 9.271/1996.


Christian Sthefan Simons, Advogado, mestre em Direito Processual Penal pela FDUSP e professor de Direito Processual da Universidade Nove de Julho

SIMONS, Christian Sthefan. Citação por hora certa no processo penal, contraditório e isonomia. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 17, dez. 2008.

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