sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Artigo: O direito penal dos ricos

Todo mundo já ouviu falar, pelo menos uma vez, que no Brasil, apenas os famosos três "p's" vão para a cadeia.

A promulgação da Lei nº 9.430/96, que em seu artigo 34 trouxe de volta a extinção da punibilidade em matéria de crimes contra a ordem tributária, quando o pagamento do tributo é feito antes da denúncia, só vem a confirmar esta triste pérola da "sabedoria popular".

Não que a causa de extinção de punibilidade em foco não deva existir. Na verdade, se o direito penal é a "ultima ratio", quanto mais medidas despenalizadoras houver, tanto melhor. Especialmente num país onde a situação carcerária é terrível, onde a prisão deve ser reservada àqueles verdadeiramente incapazes de viver em sociedade.

Entretanto, se a gravidade de um delito é medida pela quantidade de pena que o legislador lhe atribuiu, o fato é que o delito de furto não é mais grave que o de sonegação fiscal. No caso de furto simples, as penas mínima e máxima (de um a quatro anos) são menores que as do art. 1º da Lei nº 8.137/90 (de dois a cinco anos). E mesmo em se tratando de furto qualificado, a pena mínima (dois anos) é a mesma, e ainda que dobrada, não atinge a máxima prevista no art. 1º da referida Lei.

Sendo assim, por que não declarar como causa extintiva da punibilidade a devolução da res furtiva antes da denúncia? Sim, pois, analogamente, o pagamento do tributo nada mais é do que isso. Ressalte-se que o sonegador não é o mero inadimplente, mas o fraudador, aquele que procura maquiar os dados para que sua obrigação tributária pareça menor ou mesmo inexistente.

Há quem argumente que a criação da causa extintiva de punibilidade para o furto em caso de devolução da res furtiva, na verdade, estimularia os furtadores à prática do delito, limitando-se a devolver o bem quando fossem descobertos. Porém, a mesma linha de raciocínio pode ser aplicada para os sonegadores, que podem ser estimulados a continuar praticando os delitos, limitando-se a pagar o tributo quando descobertos.

Na verdade, se diferença há entre o sonegador e o furtador é que aquele lesa um número muito maior de pessoas, pois (em geral) os valores são maiores. Ademais, os tributos arrecadados pela Fazenda destinam-se a toda a coletividade. Portanto, em última análise, é ela a lesada pelos sonegadores, ao passo que os furtadores, geralmente não lesam mais do que as vítimas individualmente consideradas.

Ademais, enquanto o furto se dá às claras (no sentido de que a vítima, fatalmente, irá dar por falta do bem, iniciando, assim, de imediato, a perseguição ao autor), a sonegação, na maioria das vezes, é feita dentro de uma empresa, de modo que sua descoberta é muito mais difícil. Poder-se-ia equiparar esta conduta à do furtador que age mediante "fraude ou destreza" (art. 155, § 4º, II).

Porém, há uma outra diferença: a camada sócio-econômica. Enquanto a maioria dos praticantes de furto são pobres, já os sonegadores são, geralmente empresários. E enquanto as vítimas de furto são indivíduos que têm bens para serem furtados, são apenas os pobres que necessitam dos serviços públicos (ao menos na área social) que são sustentados com a receita dos tributos. Simplificando, de forma até grosseira: em caso de furto, geralmente são pobres lesando um único rico; na sonegação, são ricos lesando inúmeros pobres.

Nada mais havendo que justifique a existência da causa extintiva de punibilidade apenas para os sonegadores, só se pode chegar à conclusão de que a diferença na camada sócio-econômica é o motivo para esta situação que fere o princípio constitucional da isonomia (pois, se a pena é a mesma, são criminosos iguais).

E nem se argumente com a hipótese da suspensão processual, possível no caso de furto simples, pois a extinção de punibilidade é muito mais favorável: além de não depender de qualquer requisito que não seja a reparação do dano, não causa nenhum ônus àquele que dela se beneficia.

Num regime verdadeiramente democrático, não se pode admitir o binômio: "dois pesos, duas medidas"; o que se espera é que o legislador tenha a mesma preocupação com pobres e ricos, independente do poder que eles tenham dentro da sociedade. Não é o que ocorre, remarque-se: ao se punir o furto, defendem-se os proprietários; punindo-se a sonegação, é toda a coletividade, especialmente a mais pobre. E é só para este último delito (mais grave que o furto simples) que se criou a causa extintiva de punibilidade.


Alexandra Lebelson Szafir, Advogada em São Paulo.

SZAFIR, Alexandra Lebelson. O direito penal dos ricos. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.54, p. 08, maio 1997.

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